Nada que eu escreva aqui será suficientemente completo para descrever a beleza do espetáculo coreano Pansori Brecht UKCHUK-GA e a atuação sensacional da atriz/cantora JaRam Lee. Com a companhia Pansori Projects ZA, ela fez duas sessões no Teatro Positivo, dentro da programação do Festival de Teatro de Curitiba.
JaRam Lee assina o roteiro, as canções e também assume para si a tarefa de interpretar cerca de 20 personagens diferentes, que narram a padecida trajetória de Sun-Jeong Kim, baseada na Mãe Coragem, de Bertolt Brecht.
O pansori do título é um gênero de narrativa musical de tradição popular, que nasceu na Coreia no século 17, provavelmente como uma nova expressão das canções narrativas de xamãs. Em 2003 foi consagrado pela Unesco como Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade. O canto expressivo, o discurso estilizado, um repertório de narrativas e gestos são características da manifestação. No espetáculo, JaRam Lee dá um toque mais contemporâneo e amplia de um para três o número de músicos.
Da Guerra dos Trinta Anos, no século 17, a trama de Brecht é transposta para as legendárias guerras chinesas no período dos Três Reinos, no século 2. Durante o seu trajeto, Sun-Jeong Kim (que significa “obediente”) vai virar outra mulher. Ela é rejeitada pela família do marido com um bebezinho ainda de colo. Segue para outro lugar com a criança, onde encontra o segundo marido, que não lhe dá alegrias. O homem é viciado em bebida, jogos e mulheres. Ela o deixa e vai para outra região da China, onde conhece seu terceiro marido, que não é melhor que o segundo e ainda a maltrata.
Sozinha, ela luta para sobreviver com os três filhos. Muda seu nome para Anna, na intenção de mudar seu destino, e finalmente para Ukchuk, que significa “dura e implacável” em coreano.
O espetáculo é emocionante, com pitadas de humor e carregado de tristeza. O melhor de tudo é a atuação dessa grande artista mignon, mas de uma presença cênica exuberante. Quem não conferiu com os seus próprios olhos não pode fazer ideia da capacidade JaRam Lee se transformar com inflexões de voz, gestos plenos de cada personagem, andar e respirar diferente para cada um dos papéis. Ela interpreta o narrador, a protagonista Kim, seus três filhos, soldados, cozinheiro, e um fazendeiro.
Um leque que ela segura quase o tempo todo faz algumas pontuações na transição de personagens. Leve e intenso. A artista explora a sutileza dos movimentos orientais e a profundidade da dor de uma mãe que perde seus três filhos. Ou a dureza de uma mulher que tira sobrevivência da guerra, da morte de outras pessoas, e passa a conhecer “por dentro” e em sua própria pele e coração o preço dessas batalhas insanas.
A atriz divide o palco com uma banda formada por três músicos, dois percussionistas e um baixista. Na cena praticamente vazia, ela conta com as cortinas ao fundo e com a iluminação para garantir o clima.
Carismática, ganha o público logo no começo da apresentação, ao explicar em coreano, com legendas em português, sobre o que é pansori. Ou ao agradecer a presença do público em português. “Estou muito feliz por estar com meu grupo neste lugar sorridente”. Para em seguida convidar: “venham brincar com a gente!”
Com um sofisticado domínio técnico, JaRam Lee passa de um personagem a outro com mudança de voz e expressões faciais, com a utilização de pequenos objetos de indumentária, ou a batida do leque, que ela maneja com maestria.
O espetáculo oferece pelo menos dois momentos sublimes. Quando a protagonista, diante da cabeça cortada de seu segundo filho, nega conhecê-lo. É de uma determinação e dor profundas. Mas o que se segue funciona como uma verdadeira lâmina para cortar e extrair o que existe de humanidade em qualquer um. O seu choro desesperado pela perda do filho e pela negação de mãe vibra com a ação dos instrumentos da banda e faz o teatro trepidar. É comovente.
O segundo momento é quando sua filha surda desafia os soldados para tentar salvar a comunidade. Ela bate o tambor para acordar a cidadela. Eles atiram no seu braço para tentar pará-la. Com o outro braço, a filha continua a bater mais alto. A atriz sobe numa rampa sobre o palco e a iluminação transforma o palco e a cortina do fundo em vermelho. O gestual é da personagem que a vida inteira se escondeu por trás da saia da mãe; é de revolta e de vingança, tudo que está lá em Brecht, com uma maneira de contar que vai no crescendo de uma atuação extraordinária.
Uma oportunidade rara de conhecer um pouco da cultura sul-coreana. Por cerca de duas horas e meia, com um intervalo de 15 minutos, os espectadores viveram uma experiência inédita de drama e poesia. JaRam Lee e seu grupo também ofereceram “makgeolli” (vinho de arroz da Coreia) para o público como parte dessa vivência.
Na primeira noite, pouco mais de 400 lugares foram ocupados das 2400 cadeiras da plateia do Teatro Positivo. Na segunda noite, com o boca a boca, esse número subiu.
Ao final, a artista levantou o polegar em sinal de aprovação, seguida por seus músicos. O público aplaudiu de pé. O grupo foi ovacionado. Ela voltou várias vezes ao palco. E quem esteve lá deve guardar na memória esse prodígio.
Fiquei muito curiosa!
Divino! A simplicidade maravilhosa! Gente, só vendo para crer! Adoraria que toda classe artística tivesse a oportunidade de assistir!
Embora Ivana tenha inicialmente declarado dificuldades ao descrever o espetáculo, creio que seus comentários estiveram à altura do mesmo. As belas fotos e as descrições de algumas passagens me transportaram ao teatro naquela noite de sexta feira (fui à segunda apresentação). Foi uma experiência única, proporcionada por uma combinação muito de feliz do texto, “mise en scene” e claro, da espetacular Ja Ram Lee. Bravo.