Marta Suplicy, ministra da Cultura, Guido Mantega, ministro da Fazenda, Danilo Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo, Juca Ferreira, secretário municipal de Cultura de São Paulo e alguns outros políticos e gestores de instituições culturais. Neste último sábado (8), todos estavam presentes na plateia do auditório do Ibirapuera para a cerimônia de abertura da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que vai até o dia 17. Os nomes dão uma ideia da importância cultural e do prestígio político que o festival alcançou ao propor uma programação interessante e consistente, pautada no teatro contemporâneo. O espetáculo dessa primeira noite da MITsp foi Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, do italiano Romeo Castellucci. E, como registro, vale dizer que, apesar dos discursos, nem todos os políticos ficaram para ver a peça – Marta saiu do palco e já se dirigiu a uma saída lateral.
Mas, voltando à MIT, desde os festivais comandados por Ruth Escobar, realizados até a década de 1990, São Paulo carecia de uma mostra internacional. O diretor Antonio Araújo, do Teatro da Vertigem, e Guilherme Marques, do CIT-Ecum, foram os responsáveis por idealizar e colocar em prática um festival aliando espetáculos contemporâneos de várias partes do mundo, que seguem o caminho da radicalidade e da pesquisa, e ainda ações de pensamento crítico e discussão, reunindo especialistas de diversas áreas e não só do teatro. É, sem medo de precipitações ou presunções, o evento mais importante do ano nas artes cênicas.
O Satisfeita, Yolanda? está participando do festival através das ações do Coletivo de críticos, que reúne jornalistas e pesquisadores de vários veículos que tem a internet como suporte de distribuição de pensamento: Teatrojornal (SP), Horizonte da cena (MG), Questão de crítica (RJ) e Antro Positivo (SP). As nossas críticas vão circular encartadas na publicação da MIT distribuída nos teatros e serão postadas tanto nos nossos blogs quanto no do festival. E ainda vamos fazer um exercício de metacrítica: os textos serão postados no Facebook e discutidos não só por todos os outros críticos (que não necessariamente escreveram sobre os espetáculos) quanto pelo público. A partir daí, um novo texto será confeccionado, incorporando e problematizando as considerações vindas através do face.
A matéria abaixo foi escrita originalmente para a edição de março da revista Continente. Fala um pouquinho sobre o conceito da MIT e sobre a programação. Só para dar o gostinho e vocês continuarem acessando o blog durante todo o festival!
Teatro contemporâneo do mundo inteiro
Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, idealizada por Antonio Araujo e Guilherme Marques, leva 11 espetáculos para a capital paulista, além de atividades de reflexão e crítica
Por Pollyanna Diniz
Os trabalhos do Teatro da Vertigem são fundamentais na historiografia do teatro brasileiro contemporâneo. Desde 1992, quando estreou Paraíso perdido, as montagens dirigidas por Antonio Araujo investigam procedimentos teatrais e se debruçam sobre problemas e temáticas bastante coerentes com o cotidiano de uma metrópole e do homem circunscrito nesse espaço. Já Guilherme Marques, produtor, gestor cultural e ator, é o idealizador e diretor geral do Centro Internacional de Teatro Ecum (CIT-Ecum), um dos espaços mais profícuos na cena paulistana atualmente. Inaugurado em 2013, o local abriga espetáculos e projetos que relacionam arte e pedagogia.
Pois bem: há alguns anos, Antonio Araújo e Guilherme Marques discutem o fato de São Paulo não possuir um festival de teatro internacional. Mesmo sendo destino de muitas produções estrangeiras, inclusive por conta do apoio e do trabalho de instituições como o Sesc, a cidade não contava com uma mostra específica. “As pessoas sempre me dão alguns motivos para isso. Dizem que São Paulo é uma cidade desagregadora, grande, de deslocamento difícil. Não discordo desses argumentos, mas, para mim, não há justificativa”, avalia Antonio Araújo. “Nós tínhamos até os anos de 1990 os festivais promovidos por Ruth Escobar e depois ninguém assumiu essa função”, comenta Guilherme Marques. Ruth Escobar, atriz e produtora cultural, realizou o 1º Festival Internacional de Teatro em 1974, quando vieram ao Brasil trabalhos de nomes como Jerzy Grotowski (1933-1999), dramaturgo, diretor e teórico polonês; e Bob Wilson, diretor americano. O último foi em 1999, dedicado à cultura cigana.
Nesse cenário de lacunas, Araújo e Marques idealizaram a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, marcada para acontecer entre 8 e 16 de março. Deve ser o evento de artes cênicas mais importante do ano no país, ao menos no que diz respeito ao teatro contemporâneo – mesmo que programações de relevância como a do festival Porto Alegre Em Cena ainda não tenham sido divulgadas. A MITsp vai levar a São Paulo onze espetáculos, todos inéditos por lá. Apenas quatro deles – Sobre o conceito da face no filho de Deus, De repente fica tudo preto de gente, Eu não sou bonita e Gólgota Picnic – já foram vistos noutros locais do Brasil. Nenhum deles esteve em Pernambuco.
A mostra não está vinculada a nenhum tema específico. “Não queria esse formato porque muitas vezes o tema acaba virando uma camisa de forças”, explica Araújo. Ao invés disso, eram a cena e o teatro contemporâneo que interessavam. “Preferi pensar uma curadoria em rede, procurando criar diálogos entre os diferentes trabalhos. São questões e eixos que aparecem em algumas montagens. É uma curadoria polifônica”, avalia.
Os espetáculos Sobre o conceito da face no filho de Deus e Gólgota Picnic, por exemplo, discutem questões ligadas a fé, mas de forma bastante distintas. O primeiro, da companhia italiana Societas Raffaello Sanzio, carro-chefe da programação do festival de Porto Alegre no ano passado, traz para o palco uma reprodução da face de Cristo, obra renascentista criada pelo pintor italiano Antonello da Messina (1430-1479). Numa das cenas, crianças arremessam granadas de alumínio contra a imagem. Mas, segundo Paula de Renor, atriz e produtora do Janeiro de Grandes Espetáculos, é a figura de um pai que sofre de incontinência fecal que realmente causa o maior desconforto na plateia.
“É um espetáculo muito forte, que trata da chamada ‘culpa cristã’. Com toda paciência do mundo, o filho limpa o pai, veste, arruma. Minutos depois, o pai está todo sujo novamente. O cheiro insuportável toma conta da plateia. O pai sofre por fazer o filho passar por aquilo e o filho sofre pelo pai, mas também por se sentir culpado de não agüentar aquela situação. Quantos de nós não passamos por isso?”, comenta a produtora, que viu o espetáculo concebido e dirigido por Romeo Castellucci durante o Festival Internacional de Buenos Aires.
Já Gólgota Picnic é uma montagem dirigida por Rodrigo Garcia, argentino que vive na Espanha desde 1986, e tem um trabalho bastante vinculado às artes visuais e à música. No caso de Gólgota, o cenário é composto por cerca de 25 mil pães de hambúrguer. O local de suplício de Cristo se transforma em espaço para piquenique e o elemento sagrado da ceia cristã, que simboliza o corpo de Cristo, está no palco, mas ali fazendo referência a ideias de consumo e mercantilização. A sinopse da peça também adianta que a ação inclui a “crucificação” de uma atriz. Tanto Sobre o conceito quanto Gólgota foram alvo de polêmicas e insatisfações na Europa, especificamente na França. O site da BBC noticiou que protestos contra Gólgota estavam sendo planejados na cidade de Toulouse por fundamentalistas cristãos.
Outros dois espetáculos entre os quais podem ser traçados paralelos são Ubu e a Comissão da verdade, da Handspring Puppet Company, da África do Sul, e Escola, do dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón, reconhecido como um dos nomes mais expressivos do teatro latino-americano. Ubu é uma releitura do texto de 1888 de Alfred Jarry, colocado em diálogo com o trabalho da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. Escola traz ao palco um grupo de militares de esquerda que recebe treinamento para resistir e derrubar Pinochet e a ditadura militar no Chile. “Tanto no apartheid quanto na ditadura militar estamos falando de perdas de direitos civis. De morte, de violência, de falta de liberdade. E claro que essas montagens também nos fazem lembrar da ditadura militar no Brasil, que está completando 50 anos agora em 2014”, avalia Antonio Araújo.
Reflexão
Se um das críticas aos festivais espalhados pelo país é que eles não fomentam a reflexão de maneira mais efetiva, mas apenas a circulação de espetáculos, a MITsp tem como um dos seus pilares justamente o pensamento e os diálogos construídos a partir do fazer teatral. Fernando Mencarelli, diretor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e Silvia Fernandes, dramaturgista, professora do Departamento de Artes Cênicas da USP e uma das principais estudiosas do teatro contemporâneo no país, realizaram a curadoria de uma série de atividades intituladas “Olhares críticos”.
Logo depois das sessões, por exemplo, pensadores e artistas, grande parte não ligados diretamente às artes cênicas, terão o desafio de criticar os espetáculos. O escritor e religioso Frei Betto vai tratar de Escola; já Vladimir Safatle, filósofo, professor e colunista trará suas impressões sobre Ubu e a Comissão da Verdade; a psicoterapeuta, professora e crítica Suely Rolnik comentará Eu não sou bonita, solo de Angelica Liddel; e assim por diante.
Também fazem parte dessa série de ações textos escritos por um coletivo de críticos formado por profissionais de sites, blogs e revistas, que viram na internet a possibilidade da manutenção do espaço de reflexão sobre o teatro. Além de terem suas resenhas numa publicação idealizada pelo evento, os críticos participam de uma ação que envolve o Facebook na tentativa de levar para a escritura a polifonia de sentidos que podem ser derivados de um espetáculo. “Talvez o grande mérito do MIT não seja a circulação de espetáculos, mas o espaço de discussão, reflexão, pensamento. Tenho a impressão de que o pensamento crítico sobre teatro aqui em São Paulo perdeu espaço na mídia formal, mas está nas revistas de pós-graduação. Só que de outra forma, para um público muito especializado. Como ter ações que aproximem essa crítica do público? Queremos discutir questões como essa”, propõe Araújo.
O movimento performático das massas
O único representante do Brasil na programação é o espetáculo De repente fica tudo preto de gente. E, na realidade, trata-se de um trabalho que apresenta muitas intersecções com artistas estrangeiros. A concepção e a direção são de Marcelo Evelin, coreógrafo, pesquisador e intérprete do Piauí que mora há 28 anos na Europa. Se não bastasse, a montagem reúne performers do Japão, da Holanda e do Brasil. “Fui encontrando essas pessoas por conta de viagens, das aulas que ministro. Alguns dos artistas nunca tinha se visto. Então havia uma estranheza, além da questão da língua”, explica Marcelo Evelin, que estava em Amsterdã quando conversou com a Continente. Durante o processo, os artistas se falavam basicamente em inglês – e contaram muito com a ajuda do Google Translater. A linguagem falada, no entanto, não era primordial. Bem mais importante se mostrava o aspecto sensorial, a prática dos corpos.
De repente fica tudo preto de gente, que já foi visto no Brasil em Teresina, no Rio de Janeiro e em Santos, e também passou pelo Japão, Inglaterra, Holanda e Bélgica, foi idealizado depois que Marcelo Evelin entrou em contato com Massa e poder, livro de Elias Canetti publicado em 1960. “Estive em Tóquio e fiquei impressionado com aquela massa gigante, aquele número de pessoas atravessando as vias sem ao menos se tocar”, relembra. A partir daí, Evelin decidiu questionar em cena o que pode acontecer quando as massas se juntam e, além disso, as razões e consequências do medo que temos do outro.
A ação cênica se desenvolve dentro de um ringue, mas sem a necessidade da palavra. Os performers estão cobertos por uma mistura de óleo de cozinha e carvão. Os espectadores têm a liberdade de interagir ou não com os artistas; e a movimentação das pessoas determina em muito a iluminação do espetáculo, criando penumbras ou abrindo feixes de luz no espaço. “A reação no Japão, por exemplo, me surpreendeu. As pessoas entraram na performance, se abraçaram, se beijaram na boca. Aqui no Brasil, especificamente em Santos, a reação foi muito retraída. É difícil julgar esse comportamento da plateia e nem é nossa intenção. O público tem total liberdade para só assistir. Mas é uma experiência sensorial”, explica Evelin. O coreógrafo já está mergulhado no próximo trabalho, que discutirá questões como massa e singularidades, o desaparecimento dos corpos e das identidades. A nova performance contará com 50 pessoas, sendo 30 europeus e 20 brasileiros.
Confira a programação completa da MITsp.