Querida Ophélia,
Foi tão bom encontrá-la na última semana na V Mostra Capiba de Teatro! O público ficou encantado com a atuação segura e ao mesmo tempo delicada de Pollyanna Monteiro. Trazer ao primeiro plano a sua história, dizer o que ela – e o que nós – pensamos e traçar uma relação tão íntima e sem atropelos com o texto de William Shakespeare é uma descoberta. De que existem maneiras de recontar os clássicos sem a sisudez dos “grandes” atores e diretores. De que dá para ser um “galo de campina” como Paulo Michelotto, diretor, conseguindo dar leveza, mas ao mesmo tempo sustentação, para um trabalho que agarra a plateia pela simplicidade e pouca pretensão.
É bem verdade que existem muitos pontos de fuga na sua dramaturgia – e isso nem é um defeito, já que os atores da Cia de Teatro e Dança Pós-Contemporânea d’ Improvizzo Gang estão bem acostumados a lidar com o imponderável. A participação do público, embora eu ache que isso possa se tornar mais natural ainda à montagem, é um desses elos com o inesperado. Vai que o príncipe não aceita ser príncipe? Não teria o menor problema, tenho certeza. Você logo conseguiria outro. Eram muitas pessoas na plateia que podiam também ocupar os papéis de rei, rainha, coveiro.
De maneira muito informal, a dramaturgia nos alcança, vai nos tomando aos pouquinhos; é forte, profunda. A conversa que você trava com o coveiro e a capacidade de passear tão tranquilamente entre esses personagens, já que a participação do rapazinho de cabelos cacheados ficou restrita à ótima dublagem, são pontos fortes na sua história. Também há intrigas, relacionamentos perdidos, mas há bem mais o encontro com o que se é de verdade, com a realidade que nos cerca, com a dimensão que tomamos de nós mesmos.
A iluminação desenhada por Cleisson Ramos dá os contornos da sua trajetória. E como é lírica a forma como o espetáculo começa. Contando exatamente o seu fim, embora isso nem de longe signifique que a esperança para você acabou. O silêncio é temporário.
Dê um beijo por mim em Pollyanna Monteiro, mesmo nome, mesma terra e, quem sabe se tivermos mais um tempinho juntas, descobrimos até parentes em comum. Mande minhas saudações ao diretor Paulo Michelotto. É ótimo ver a sua irreverência e a maneira com que quebra as regras no palco e constrói as suas próprias, para depois tornar a quebrá-las.
Espero reencontrá-la em breve,
Pollyanna Diniz
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Clown sanguinário
No Nordeste de nem tão antigamente, os mortos não eram enterrados sem que antes fossem cantadas ou rezadas as incelências. E todo “doutor” podia ser chamado por alguém mais cheio de dedos ou embromações de “Sua Incelença”. Foi a partir dessa brincadeira semântica que o Clowns de Shakespeare rebatizaram a obra do dramaturgo inglês. Sua Incelença, Ricardo III finalmente foi apresentada no Recife (dentro da programação da Virada Multicultural), depois de já ter sido vista em vários festivais, como Curitiba (onde a peça estreou nacionalmente, antes só tinham sido feitas apresentações, antes mesmo da montagem finalizada, em Acari, no Rio Grande do Norte), Brasília, Rio e Porto Alegre. A direção da montagem é assinada por Gabriel Villela.
No Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, a semiarquibancada da trupe (eles não conseguiram autorização para montar uma arquibancada maior, como em outros lugares) foi erguida bem na esplanada. Como o espaço era mesmo muito reduzido, o público sentou no chão, ficou nas laterais, mas deu um jeitinho de conferir a performance desse importante grupo que já tem dezoito anos de estrada.
Desta vez, a história de truculência e a trajetória de assassinatos de Ricardo para chegar ao poder ganharam embalagem circense. As referências ao mambembe, ao improviso, à estética e criatividade dos clowns se sucedem ao longo da montagem. E é com um humor mais ácido que eles atravessam a violência com força, mas leveza. As crianças mortas viraram coco vendido na praia; o nobre que estava prestes a ser assassinado era uma cabeça de boneca.
O público entra na ilusão proposta pela montagem já a partir da música, que tem de referências nordestinas ao rock inglês. E a partir daí não tem problema ser um matador sanguinário no momento e noutro se travestir de duquesa com peruca loira e longo vestido vermelho.
Ah….já soube que os Clowns vão pagar a “dívida” que tem com Pernambuco em grande estilo! Já existe a ideia de que eles comecem a comemorar os 20 anos da companhia aqui, em 2013, no Janeiro de Grandes Espetáculos. O grupo vai remontar Muito barulho por quase nada, peça de 2003 que teve direção conjunta de Fernando Yamamoto e Eduardo Moreira, do Grupo Galpão; além disso, já deve ter estreado o novo projeto: Hamlet, com direção de Márcio Aurélio. A ideia é apresentar essas peças e talvez outras do repertório, fazer oficinas, debates. Esperamos que tudo se concretize mesmo! Vamos cobrar!
Ficha técnica:
Direção geral: Gabriel Villela
Elenco: Camille Carvalho, Dudu Galvão, César Ferrario, Joel Monteiro, Marco França, Paula Queiroz, Renata Kaiser e Titina Medeiros
Assistência de direção: Ivan Andrade e Fernando Yamamoto
Texto original: William Shakespeare
Adaptação dramatúrgica: Fernando Yamamoto
Consultoria dramatúrgica: Marcos Barbosa
Figurino: Gabriel Villela
Cenário: Ronaldo Costa
Assistente de figurino: Giovana Villela
Aderecista: Shicó do Mamulengo
Costureira: Maria Sales
Direção musical: Marco França, Ernani Maletta e Babaya
Arranjos vocais: Ernani Maletta e Marco França
Arranjos instrumentais: Marco França
Preparação vocal: Babaya
Direção vocal para texto e canto: Babaya
Música instrumental original: Marco França
Pesquisa musical: Gabriel Villela e o grupo
Preparação corporal: Kika Freire
Iluminação: Ronaldo Costa
Sua Incelença Ricardo III em três momentos
PRIMEIRA APRESENTAÇÃO
O cenário foi erguido no Museu Oscar Niemayer (conhecido como o museu do olho). Os últimos ventos de março sopravam amenos. Abertura da vigésima edição do Festival de Curitiba para autoridades e convidados. Isto é, patrocinadores, políticos, empresários, artistas, jornalistas e os organizadores do evento, dirigido por Leandro Knolpfolz. A arquibancada lotada. Expectativa lá no alto para conferir a versão de Ricardo III, sobre o vilão mais sanguinolento de Shakespeare pela trupe potiguar Clowns de Shakespeare e o encenador Gabriel Vilella.
Vilella transportou a história para o universo lúdico do circo, dos palhaços mambembes e das carroças ciganas. E com isso criou um diálogo entre as tramas da Inglaterra Elisabetana e a realidade do Sertão Nordestino.
Cheguei ao local nas palmas entusiasmadas da plateia. Foram quase oito horas de voo. Conexão. E com espera infindável no Rio de Janeiro.
E só vi o show de pirotecnia. Durante alguns minutos iluminando o céu de Curitiba.
Depois, os comentários de algumas pessoas sobre o espetáculo oscilavam entre maravilhoso a genial.
Encontrei o Fernando Yamamoto na festa nas dependências do museu. Parecia impactado com a experiência. E eram muitas congratulações.
Soube que o diretor Gabriel assistiu ao espetáculo pendurado numa árvore. Dias depois, em conversas com os atores, eles falaram que o entorno dessa apresentação criou um clima especial.
SEGUNDA APRESENTAÇÃO – Um espetáculo arretado
Mal estreou, a montagem do Grupo Clowns de Shakespeare foi convidada para participar de dois festivais internacionais. A edição de 2013 do Festival Tchekhov, na Rússia, um dos principais do mundo e o Festival de Santiago do Chile, no próximo janeiro. Méritos não faltam à encenação Sua Incelença Ricardo III, do grupo potiguar, que abriu o para o público o Festival de Curitiba, na terça-feira (29/03), dia do aniversário da cidade, no Largo da Ordem lotado.
O drama histórico Ricardo III, escrito pelo dramaturgo inglês William Shakespeare, já ganhou muitas versões nos palcos do mundo e no cinema. A do Clowns de Shakespeare, dirigida pelo mineiro Gabriel Villela é permeada por uma ironia fina e cruel e denuncia o cinismo dos poderosos. Eles usam qualquer artimanha para se agarrar ao poder e desqualificar os desejos alheios.
A tragicidade do original é diluída. Sabemos que não há do que rir nesse texto de Shakespeare. Mas a encenação, com suas técnicas de teatro de rua, está mais próxima das brincadeiras de mamulengo do que das companhias inglesas tradicionais. E se afasta do puro naturalismo. E o público ri em alguns momentos.
A realidade se tornou muito mais sangrenta, cruel e violenta do que qualquer ficção que narre as atrocidades cometidas por um tirano. Para isso, basta ligar a televisão ou abrir qualquer jornal, não mais aqueles sensacionalistas. Todos trazem, suas doses de carnificina.
Pois bem, o último rei da Inglaterra da casa de York utilizou os mais variados ardis para chegar ao poder. Para subir ao trono ele precisava varrer do mapa outros herdeiros e ele mandou matar sobrinhos, parentes, amigos e inimigos. O troncho Ricardo fez tudo para conseguir a coroa.
Esse episódio inglês é transferido para o Sertão nordestino, inserido num reino de fantasia, onde a sangrenta trajetória de Ricardo, Duque de Gloucester, e sua trajetória de assassinatos e traições rumo à coroa da Inglaterra, ganha pequenas sutilezas, colorido do material cênico. De figurinos e cenários, que mesclam cipó, couro e outros materiais típicos da região Nordeste a sedas e tecidos nobres. O figurino assinado por Gabriel Villela, recebeu a colaboração do artesão Shicó do Mamulengo, do município de Acari.
Para mostrar a crueldade desse personagem em sua subida e queda, a peça junta elementos diferentes, que alguns podem achar díspares, do Nordeste e lembranças da Inglaterra. Faz a sua mestiçagem em grande estilo. Transforma personagens do bardo inglês em cangaceiros, em ciganas, em bonecos gigantes.
O grupo explora o universo lúdico do picadeiro do circo, dos palhaços mambembes e carroças ciganas, da estética do cangaço e da memória ibérica. Isso é feito quase como uma festa, que borbulha nos detalhes. Cocos secos ou verdes, por exemplo, mimetizam decapitações ou estrangulamentos. São soluções ricas e simples.
É louvável a atuação do elenco, preparo vocal e corporal. Marco França interpreta de Ricardo III, carregando no charme do vilão. Titina Medeiros canta de forma encantadora e interpreta a rainha Elizabeth como uma perua desbocada que tropeça na língua portuguesa. No elenco estão, além dos já citados, Camille Carvalho, Cesár Ferrario, Dudu Galvão, Joel Monteiro, Paula Queiroz e Renata Kaiser.
A música é executada ao vivo e consegue fazer uma ponte entre a Inglaterra e o Nordeste, com suas incelenças tão cantadas nos rituais fúnebres pelas carpideiras. O grupo mistura Bohemian Rhapsody, da banda inglesa Queen, no álbum A Night at the Opera com Assum Preto de Luiz Gonzaga, além de músicas de Supertramp e outros forrós e xotes.
O dramaturgista e produtor Fernando Yamamoto, lembra que esa ponte não é só da ordem da estética, mas também da política. “Ricardo III é tão cruel quanto fascinante e sedutor. E sua conduta fica muito próximo dos nossos ‘reis’ nordestinos. A forma como ele, ardilosamente, elimina seus concorrentes à coroa para chegar ao poder, abraçando em um dia e matando no outro, é muito familiar às nossas referências políticas”, argumentou ele em conversa após a apresentação.
Essa peça que usa de várias formas de hibridismo, carnavaliza a ascensão e queda desse poderoso, ganha o púbico com seu humor popular e sua crítica disfarçada de escracho
TERCEIRA APRESENTAÇÃO – A chuva foi a vilã
Sua Incelença, Ricardo III teve que enfrentar um inimigo a mais para levar até o fim a sua proposta, na sessão de quarta-feira (30/03). Única peça de rua da Mostra Oficial, o espetáculo da Cia. Clowns de Shakespeare encarou a forte chuva e saiu ovacionada do Bebedouro do Largo da Ordem, onde foi armado o palco.
As arquibancadas e o chão do espaço estavam lotados de pessoas. A chuva criou um problema no sistema elétrico. Os atores voltaram para o começo. O aguaceiro caindo, os técnicos tentando resolver a questão, as pessoas ansiosas. Aparece o diretor Gabriel Villela, que garante que se o sistema de iluminação for solucionado vai ter peça. Aí não tinha mais jeito. Quem estava na chuva era para se molhar.
Com as roupas encharcadas os atores apresentaram o espetáculo. As luzes pifaram novamente e o elenco, por um tempo, levou sua versão de Ricardo III no escuro e no gogó (sem microfones). O sistema voltou.
Foi uma noite de superação. Com riscos que a combinação água x parafernália elétrica pode gerar. Graças aos deuses do teatro, nada de grave aconteceu. No final, dez minutos de aplausos entusiasmados da plateia e a emoção do elenco. Valeu Clows de Shakespeare.