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A reinvenção de Canudos para além do massacre
Crítica de Restinga de Canudos, da Cia do Tijolo

Rodrigo Mercadante (Euclides da Cunha), Odília Nunes e Dinho LIma Flor (Conselheiro). Fotos: Alécio Cezar / Divulgação

PRÓLOGO

A temporada de Restinga de Canudos foi curtíssima, de 14 de março a 27 de abril, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Temporada com ingressos totalmente esgotados. Ora, direis: “Mas é o tempo padrão do Sesc para as temporadas atualmente”. Foi curtíssima, repito. Então gestores de instituições, curadores, gente que decide quem vai existir nos palcos e nos festivais, pessoas de pequenos médios e grandes poderes da cena teatral brasileira por favor, por gentileza, programem Restinga de Canudos no seu domínio. A circulação deste espetáculo por diferentes regiões do país pode possibilitar que outros públicos estabeleçam suas próprias conexões com esta potente releitura de nossa história coletiva.

Agora que já insinuei o tom, digo que assisti ao espetáculo da Cia do Tijolo três vezes. Assistiria mais três se tivesse ficado mais um período em São Paulo. Essa trupe – que tem como núcleo aderente (só para fazer contraste com a ideia de núcleo duro) Dinho Lima Flor, pernambucano de Tacaimbó, o mineiro Rodrigo Mercadante e a paulista Karen Menatti faz uma das coisas que mais gosto nas artes cênicas. Pois, o teatro, tão generoso que é, ganha no corpo e no espírito desse bando muitas configurações. O processo para o grupo é precioso, tanto ou quanto o resultado final. E com isso a encenação recebe muitos contornos ao longo da temporada. Dinho Lima Flor acrescenta e tira coisas a partir do embate afetivo com o público.

Um espetáculo do Tijolo nunca é o mesmo na estreia e no final da temporada. Haverá quem ache isso ruim, quem tenha aquele pensamento preso de que essa arte viva — viva! — poderia ficar guardada, imutável, dentro de uma caixa (mesmo que seja uma caixa cênica). Portanto, e daí?

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Restinga de Canudos. Foto: Alécio Cezar / Divulgação

Em Guará Vermelha, peça anterior do Tijolo, a atriz pernambucana Odília Nunes insiste: “Aqui você tem tempo”. E o elenco entoa a música de Jonathan Silva para ninguém ter dúvidas: “Desacelera o passo, dance fora do compasso, bem devagarinho sem fazer estardalhaço”.

Esse é um dos marcadores da companhia tão paulista (pois sua sede é em sp) quanto mineira e nordestina e principalmente brasileira, de uma brasilidade ossobuco. O tempo se dilata em suas encenações. Mas eles são exigentes para que xs camaradxs se tornem presentes no tempo presente.

Público de uma das sessões de Restinga de Canudos

As professoras (Karen Menatti e Odília Nunes) lembram que em Canudos tinha escola, fato pouco conhecido

A professora Silvia Adoue participou da temporada comentando e criando pontes entre acontecimentos

No teatro contemporâneo brasileiro, poucas companhias têm demonstrado tanta persistência e coerência na investigação de nossa memória histórica quanto a Cia do Tijolo. Restinga de Canudos marca o ápice desse percurso investigativo, propondo uma radical inversão de perspectiva sobre um dos episódios mais traumáticos da formação republicana brasileira. A montagem emerge como uma escavação poética dos escombros submersos do Açude de Cocorobó, onde jazem sepultadas as ruínas físicas da comunidade de Canudos, mas sobretudo as vozes e histórias que a historiografia oficial e mesmo a literatura canônica silenciaram.

A montagem desloca o foco narrativo do já exaustivamente documentado massacre final para o que há de mais subversivo na história de Canudos: a vida cotidiana de uma comunidade que ousou existir segundo seus próprios termos, à margem das imposições do nascente estado republicano. Tal escolha cênica constitui um posicionamento ético-político deliberado, que reinterpreta a própria compreensão do movimento liderado por Antônio Conselheiro.

A dramaturgia construída por Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante opera uma delicada tessitura entre diferentes temporalidades. Ao eleger duas professoras (Karen Menatti, Odília Nunes) como fios condutores da narrativa, a peça estabelece uma ponte entre presente e passado, confrontando o público com uma pergunta inescapável: o que poderia nos ensinar hoje a experiência comunitária de Canudos, para além da narrativa do martírio?

Há uma evidente intenção benjaminiana nesta abordagem. Walter Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito de História, propõe que arrancar a tradição do conformismo é tarefa das gerações presentes. Restinga de Canudos parece responder a este chamado, escovando a história a contrapelo para resgatar as potências revolucionárias que o discurso historiográfico dominante soterrou. A professora e pesquisadora Silvia Adoue (Unesp e Florestan Fernandes), que atuou durante a temporada como mediadora entre o público e os acontecimentos encenados, personifica essa consciência histórica que busca romper com a linearidade do tempo homogêneo e vazio da narrativa oficial.

A peça evita habilmente tanto a monumentalização do heroísmo de Conselheiro quanto a vitimização melodramática dos massacrados. Em vez disso, oferece uma composição coral onde ganham destaque as micropolíticas do cotidiano: as relações de trabalho, as práticas religiosas, a educação, as festas. Nesta perspectiva, Canudos emerge enquanto laboratório social interrompido pela violência de Estado, superando a noção de excepcionalidade condenada ao fracasso.

Os bambus da festa

Os bambus da guerra

Danilo Nonato, na cena em que tenta fugir dos tiros

Na direção de Dinho Lima Flor, observa-se uma notável economia de recursos a serviço de uma poderosa construção metafórica. O espaço cênico, concebido pela própria companhia em colaboração com Douglas Vendramini, transforma o palco em plataforma arqueológica onde objetos, corpos e memórias são desenterrados das águas do tempo.

A cenografia evita o caminho fácil da reconstituição histórica realista, optando por uma abstração que remete simultaneamente à aridez do sertão baiano e à liquidez da memória submergida. Os objetos cênicos possuem qualidade metamórfica, assumindo diferentes funções ao longo da narrativa: um mesmo elemento,  – como por exemplo os bambus – ora funciona como ferramenta de trabalho, ora uma arma, ora um objeto ritual. Esta pluralidade significativa material ecoa a própria proposta dramatúrgica de multiplicidade de perspectivas.

O trabalho corporal desenvolvido sob orientação de Viviane Ferreira requer particular atenção. O elenco demonstra impressionante versatilidade ao compor diferentes tipos sociais e animais sem recorrer a estereótipos, apresentando corpos marcados pelas experiências histórico-sociais específicas: o trabalho, a devoção, a resistência. O conjunto formado por Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai e Vanessa Petroncari entrega uma performance coletiva potente, onde Jaque e Danilo injetam uma energia juvenil vibrante às suas composições. Há uma corporalidade sertaneja peculiar sendo investigada aqui, que se manifesta tanto nos momentos de tensão dramática quanto nas sequências de celebração e ritos religiosos.

A iluminação desenhada coletivamente pela companhia e por Rafael Araújo é elemento crucial para a construção da temporalidade dilatada do espetáculo. O jogo entre claridade ofuscante – remetendo ao sol inclemente do sertão – e penumbra que evoca o fundo do açude articula diferentes planos narrativos, permitindo transições fluidas entre os tempos históricos.

Músicos do espetáculo

Jonathan Silva, autor das músicas originais

A musicalidade em Restinga de Canudos funciona como alicerce fundamental da construção dramatúrgica. Executadas ao vivo pelo quarteto de músicos-atores – Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva e Juh Vieira – as composições originais de Jonathan Silva resgatam elementos sonoros da tradição nordestina e os transformam através de um diálogo com referências atuais.

Os cantos coletivos assumem função reminiscente dos coros gregos, comentando a ação, amplificando tensões e estabelecendo o substrato mítico-religioso que permeia a experiência histórica de Canudos. O tratamento vocal explorando timbres rústicos e técnicas de canto popular confere autenticidade ao tecido sonoro do espetáculo.

Essa trato musical aponta para uma compreensão profunda do que Mikhail Bakhtin denominaria “cultura popular carnavalesca” – aquela dimensão das práticas culturais populares que, ao mesmo tempo que incorpora elementos religiosos e tradicionais, subverte-os em potência transformadora e criativa. A religiosidade de Canudos, longe de ser apresentada como obscurantismo ou alienação, aparece em sua dimensão libertadora e como base para sociabilidades alternativas.

Dinho Lima Flor

Rodrigo Mercadante ao centro 

É notável como Restinga de Canudos se inscreve no campo do teatro político contemporâneo sem incorrer nos vícios comuns do gênero – como o didatismo excessivamente simplificador ou a abstração formal desconectada da realidade social. A peça estabelece um diálogo produtivo com a tradição do teatro épico brechtiano, incorporando procedimentos de distanciamento crítico e historicização, mas o faz sem abdicar da potência afetiva e da intensidade dramática dos enfrentamentos encenados.

A opção por privilegiar o olhar das professoras como mediadoras da narrativa carrega a filiação do projeto à pedagogia crítica de Paulo Freire, referência explícita no percurso da Cia do Tijolo. Esta escolha permite estabelecer um campo de tensão produtivo entre memória e história, entre experiência vivida e conhecimento sistematizado. O espetáculo materializa o que Freire chamaria de “pedagogia da pergunta”, convocando o espectador não à absorção passiva de informações históricas, mas ao questionamento ativo de suas próprias concepções sobre o passado e o presente brasileiros.

Restinga de Canudos abraça a complexidade da contradição sem recorrer a simplificações maniqueístas. Não há, aqui, heróis imaculados ou vilões caricatos, mas seres humanos concretos enfrentando as tensões de seu tempo histórico.

Entre ruínas e utopias: a atualidade implacável de Canudos

Uma grande virtude de Restinga de Canudos é sua capacidade de fazer emergir, da aparente especificidade histórica do evento retratado, questões de contundente atualidade. Ao deslocar o foco do espetáculo do massacre final para a construção cotidiana da comunidade, a montagem permite que reconheçamos no experimento de Canudos não um episódio encerrado no passado, mas um laboratório social cujas lições permanecem vivas e urgentes.

A construção cênica da experiência educacional desenvolvida em Canudos, através das professoras que protagonizam a narrativa, estabelece conexões poderosas com debates contemporâneos sobre educação libertadora e descolonização do conhecimento. A comunidade de Belo Monte aparece, assim, como precursora de movimentos sociais atuais, antecipando em sua prática questões como a autogestão, a soberania alimentar e a resistência territorial.

Há uma sutil analogia entre o afogamento literal de Canudos sob as águas do açude – ato simbólico de apagamento da memória coletiva – e os processos contemporâneos de silenciamento e invisibilização das experiências populares de resistência. O espetáculo nos confronta com a persistente incapacidade da sociedade brasileira em reconhecer e valorizar as formas de organização social que emergem das classes populares, além da violência sistemática empregada para suprimi-las.

Restinga de Canudos deixa não o conforto da catarse, mas a inquietação produtiva de quem se depara com a permanência do passado no presente. O espetáculo realiza, dessa forma, o propósito nobre do teatro político: não oferecer conclusões definitivas, mas abalar convicções estabelecidas, provocar deslocamentos de perspectiva e estimular um novo olhar sobre realidades que julgávamos conhecer.

Na atual conjuntura brasileira, marcada por intensas disputas em torno da memória histórica e dos projetos de futuro, Restinga de Canudos emerge como uma intervenção necessária e corajosa. A Cia do Tijolo, com sua trajetória de investigação das matrizes populares da cultura brasileira, consolida-se como um dos coletivos teatrais mais relevantes e instigantes do cenário nacional. Seus espetáculos constituem verdadeiros acontecimentos de pensamento que ampliam as fronteiras do possível, tanto no campo artístico quanto no político.

Por fim, é preciso reconhecer que Restinga de Canudos realiza plenamente aquilo que Giorgio Agamben define como a tarefa do contemporâneo: fixar o olhar em seu tempo não para perceber suas luzes, mas para contemplar suas sombras; não para confirmar o já sabido, mas para revelar o que permanece obscurecido pela narrativa dominante. Nesse sentido, a montagem constitui um gesto político no presente – uma intervenção que, ao restituir vida às vozes submersas de Canudos, convida-nos a imaginar outras formas possíveis de comunidade e existência coletiva.

Tudo isso ainda diz muito pouco sobre a obra. Muito a refletir. Outros textos ficam para a próxima temporada. 

FICHA TÉCNICA

Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Desenhos: Artur Mattar
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Assistência de cenotécnica: Tati Garcez e Gonzalo Dorado
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Direção de produção: Garcez Produções (Suelen Garcez)
Produção executiva: Suelen Garcez
Assistência de produção: Tati Garcez

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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