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Partida de Celibi. Primeiro impacto

Henrique Celibi na peça As Perucas de Bibi. Foto: Ivana Moura

Na peça As Perucas de Bibi, em abril, no Teatro Apolo. Foto: Ivana Moura

A última vez em que encontrei o ator, diretor e dramaturgo Henrique Celibi foi na segunda sessão da peça As Perucas de Bibi, no sábado de Aleluia. Falei com ele rapidinho depois da apresentação, pois aquela noite teria dose dupla de teatro, já que fui ver a Paixão de Cristo do Recife, com José Pimentel. Menos de um mês depois, recebo com pesar a notícia de sua morte. “Levou uma queda, pediu socorro à vizinha que, por sua vez, chamou os Bombeiros. Ele estava todo ensanguentado, com uma perfuração na veia femoral. Foi socorrido, mas sofreu duas paradas cardíacas e não resistiu”, conta a atriz Sharlene Esse, que dividia o palco com Henrique em As Perucas de Bibi. “Quem deu a notícia da morte de Celibi a Américo (Barreto) foi a tia dele, uma senhorinha velhinha”, diz Sharlene. Celibi morava sozinho no bairro do Arruda e inquieto como era já estava articulando os ensaios de uma nova peça, The Celibi Show.

Com ele era assim. Não tinha tempo ruim, nem circunstâncias ideais para fazer algo. Muitas peças surgiram dessa motivação. Cara, coragem e um talento múltiplo. A Bicha Burralheira, a estória que sua mãe não contou; Madleia + ou – doida; Cabaré Diversiones; As Perucas de Bibi.

Poderia achar que foi um acidente estúpido. Mas os acidentes caseiros são traiçoeiros. Logo Celibi, que parecia um homem-aranha a se pendurar em tudo que é lugar, com aquele seu corpinho ágil.

Henrique Celibi, um guerrilheiro dos palcos pernambucanos

Um guerrilheiro dos palcos pernambucanos, em Cabaré Diversiones. Foto: Ivana Moura

Henrique Celibi, ao centro, é autor, diretor, figurinista do espetáculo

Henrique Celibi, ao centro, em Cabaré Diversiones. Foto: Divulgação

Henrique Celibi

Medleia + ou – Doida. Foto: Ivana Moura

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho. Foto: Henrique Celibi/acervo pessoal

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho na época do Vivencial. Foto: Henrique Celibi/ acervo pessoal

Melhor Ator

Melhor Ator do Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ivana Moura 

Quando conheci Celibi, em meados da década de 1980, o artista andava às voltas com o texto Cinderela – a história que sua mãe não contou, ainda como esquete  A Bicha Burralheira que apresentou na Boate Misty. Ajudei a divulgar. Gostava daquele menino elétrico e cheio de imaginação. Depois Cinderela virou o megassucesso com a Trupe do Barulho.

Viajamos juntos para o festival de São José do Rio Preto, com uma peça que não sei se foi O Coronel de Macambira ou o Casamento de Catirina. E o que lembro dele desses tempos era uma elegância no andar, uma alegria das pequenas coisas, resistência não alardeada mas que poderia ser captada, persistência na arte e nos sonhos. Mesmo que tudo estivesse desmoronando por dentro, era preciso manter uma pose, uma esperança, alimentar a alegria.

Egresso do Grupo Vivencial, Celibi era um sobrevivente. E criaturas assim têm uma grande capacidade de adaptação aos lugares mais hostis. Com ousadia, garra e criatividade.

Henrique Celibi. Foto: Facebook

Henrique Celibi. Foto: Facebook

Batizado de Valdenou Henrique de Moura, ele entrou no Vivencial aos 14 anos e lá aprendeu a ser ator, diretor, figurinista, cenógrafo, maquiador, dramaturgo e outros sete.

Como decretou Oswald de Andrade, “A alegria é a prova dos nove”. Celibi tinha humor. Um humor que me encantava. Por ser crítico e autocrítico. E era uma voz importante de reflexão no meio da cena teatral recifense, em parte tão autoindulgente e com lentes tão generosas para o seu próprio umbigo.

Quem vai fazer a crítica de dentro das próximas montagens em homenagem ao Vivencial? Enquanto a maioria das vivecas se instalou no conforto de sua sala de jantar, Celibi prosseguia a treinar a iconoclastia que aprendeu no Vivencial.

É bem interessante seu comentário depois da estreia de Puro Lixo, montagem dirigida por Antonio Cadengue, inspirada ou em homenagem ao grupo Vivencial. Celibi ponderou em sua página do Facebook:

“Nunca fomos anjos! Muito pelo contrário, não gostávamos das auréolas. Principalmente as feitas com arminhos. Gostávamos mesmo era de sermos demoníacas: “espelho meu existe alguém pior que eu? Espelho, espelho meu, existe alguém mais terrível do que eu?”… Não. Não existiam! Éramos terríveis, as vivecas! Gostávamos mesmo era de tirar os “chatos” na London, London da virilha de Gal porque éramos nós as tropicais e fatais.

Sabíamos dos demônios que em nós habitavam e como fazer para alimentá-los ou não. E esses deixavam as migalhas das sobras em nossas convivências. Era o que fazíamos com esses demônios que não valem a pena serem alimentados e sim combatidos com gaiatices.
Dávamos muxoxos para as hipocrisias e conceitos estabelecidos. (sem o menor medo de o galo cantar e nos transformarmos em peixes soias da boca torta).

Tínhamos a consciência de que éramos nós as “Cinderelas”, lindas com o vestido de baile, mas, sem o sapatinho de cristal e sim, com os pés sujos da lama em que a sociedade insistia em afundar-se. (ainda insistem).

O espetáculo Puro Lixo é muito bem cuidado, produzido, com um elenco bem dirigido apesar de faltar frescura na “viadagem” vivenciada Por Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcao, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira. Poderia ser mais vibrante como sugere o título. Com muitos méritos sim. Todos! Mas, o que a mim incomoda no espetáculo é o bem feito, politicamente correto do ser em estar nesse tempo presente.

(…) Nossos manifestos eram quá, quá, quá… Nossos negros eram loiros de cabelos e cabeleiras. Sabíamos de que o certo é na frente mais o que a nós importava era mostrar que o justo mesmo era atrás. Mesmo assim e assim mesmo, com todo o glamour, (que não tínhamos) fico muito gratificado em ser personagem dessa crônica teatral que é um luxo só!”

Ou quando comentou sobre o filme Tatuagem, de Hilton Lacerda. Disse que a obra tem uma atmosfera “Vivencialesca”, mas se cotejada ao grupo Vivencial, o filme é certinho demais. Celibi guardou em si essa anarquia que pautava as peças, ações e intervenções culturais da trupe olindense. “Mangávamos e debochávamos de tudo e de todos”, gostava de dizer.

Seu olhar crítico e debochado, sua língua cheia de humor e, às vezes ferina, sua criatividade transbordante a inventar arte de lixo. Seu carinho pelas pessoas de arte (do teatro, da dança, da performance, do carnaval, do cinema), seu incentivo aos que queriam mergulhar nesse mar.

Ele que vivia sem rede de segurança nos inspirava coragem.

Agora em abril ele postou no Facebook: “Às vezes sinto meu corpo pequeno demais para abrigar meu espirito… E a sensação é muito estranha… Ver que não caibo mais em mim…” Parece um recado para quem acredita em anúncios sobrenaturais.

Mas acho que ele deve estar mangando dele mesmo, desse descuido. Pode estar já se divertindo da saudade que provoca em nós.

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Escracho e purpurina contra a caretice

Grupo Vivencial surgiu nas barbas da Igreja Católica. Foto: Ana Farache/Divulgação

Quatro décadas depois do surgimento dos grupos teatrais Dzi Croquettes e Vivencial, suas histórias peculiares ganham homenagens, livros e filmes

Eles queriam fazer diferente. E conseguiram. As afinidades entre dois grupos que apontaram novos caminhos para o fazer teatral começam com o direito que deram a si mesmos de questionar o estabelecido, no momento em que a repressão vinda com o AI-5 (1968) ainda reverberava.

Purpurina, cílios postiços, salto alto e escracho. O Dzi Croquettes surgiu no Rio de Janeiro, em 1972, por iniciativa de pessoas que já estavam próximas da arte, como Wagner Ribeiro, que queria reunir os amigos da escola de teatro para fazer um espetáculo.

Cláudio Gaya e Cláudio Tovar, atores do Dzi Croquettes

O Vivencial foi criado dois anos depois, em Olinda, nas barbas da Igreja Católica. O líder e mentor Guilherme Coelho era um paraibano que queria ser monge no Tibet, mas foi parar no Mosteiro de São Bento. Encontrou outros “desindexados”, como costuma dizer, e, para celebrar os 10 anos da Associação de Moças e Rapazes do Amparo (Arma), montou um espetáculo. A tensão libertária que havia em cada um dos grupos manifestou-se no palco. “Em Vivencial I, nossa primeira montagem, a proposta era ‘seja você mesmo, busque seu eixo, saia de casa, construa, mude o mundo’”, conta.

Mesmo tendo surgido depois, com proposta estética e conceitual semelhante, o Vivencial não tomou o grupo carioca como modelo. “Era a voz da contracultura. O teatro de revista, por exemplo, era muito forte aqui, com Barreto Júnior. Era pornochanchada, eles faziam coisas muito engraçadas e esse escracho a gente achava interessante. Mas não copiava. Tinha o teatro de revista, Nelson Rodrigues, Maria Bethânia, Secos & Molhados, o próprio Dzi Croquettes, a androginia. O mundo estava respirando isso”, avalia Guilherme Coelho. “Acho que fomos muito mais influenciados pelo Dzi Croquettes na época do Diversiones, que era um café-concerto que abrimos. Os números de plateia, por exemplo, eram uma influência descarada do Dzi, embora não copiássemos, era inspiração”, reconhece o ator Henrique Celibi.

Quase 40 anos depois da explosão em cena do grupo carioca e do pernambucano, suas experiências são lembradas em livros, filmes, menções. Em novembro de 2011, o Vivencial foi o homenageado do Festival Recife do Teatro Nacional, promovido pela Prefeitura do Recife, quando houve também o lançamento da obra Transgressão em 3 atos – nos abismos do Vivencial, assinada pelos jornalistas Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha. Nos próximos meses, deverá ser relembrado no cinema, já que é “referência afetiva” para o filme Tatuagem, primeiro longa dirigido por Hilton Lacerda, que tem como protagonista Irandhir Santos.

O Dzi, por sua vez, teve sua história recontada em detalhes e muitos depoimentos no documentário que leva o nome do grupo, assinado por Tatiana Issa e Raphael Alvarez. Dzi Croquettes estreou no Brasil no Festival do Rio, em outubro de 2009, e saiu de lá como o melhor documentário, segundo o júri popular e também o oficial. Levou, ainda, o prêmio do público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Cine Fest Goiânia, no Torino GLBT Film Festival, e no Los Angeles Brazilian Film Festival.

Para sempre

“A gente não deixa de ser Dzi Croquettes. A gente não é ex-Dzi Croquettes, a gente é pra sempre. A maneira de pensar, agir, fazer, continua comigo”, diz o ator Cláudio Tovar. “Não existe ex-Viveca”, confirma Suzana Costa, uma das musas do Vivencial, ao lado da bailarina clássica que, quando percebeu, estava nos palcos “com os peitos de fora”, Ivonete Melo.

Vivencial não queria saber de rótulos - nem na vida, nem no palco. Foto: Gilberto Marcelino/Divulgação

Enquanto o Dzi Croquettes era formado só por homens – 13, no total (embora as mulheres, fossem namoradas, tietes, estivessem sempre rondando) –, o Vivencial tinha garotas na sua formação. Agregou, aliás, não só as mulheres. Quando, em 1978, no meio do mangue, no bairro de Salgadinho, construíram o Vivencial Diversiones, havia show de variedades e muitos travestis também se apresentavam. “Além de dar visibilidade positiva ao universo homossexual e se impor contra o autoritarismo político e moral da época, o Vivencial realizou um trabalho de inclusão social, oferecendo aos travestis uma oportunidade de seguir carreira artística. Ao instalar um café-concerto numa comunidade pobre de Olinda, o grupo não só incorporou aquela realidade à dramaturgia vivencial como também incluiu jovens do local nos seus espetáculos”, aponta Cláudio Bezerra.

Havia no Vivencial certo empirismo que se refletia na cena. “O teatro não era aquela coisa acadêmica. Quando você perguntava pelo método e ninguém respondia, é porque não tinha método nenhum. Mas, como salvação pela palavra, foi a melhor coisa que aconteceu”, avalia Suzana Costa. Já os Dzi tiveram a sorte de contar com o americano Lennie Dale, “pai do grupo”, embora eles também estivessem longe de qualquer fórmula acadêmica. “Quando fui assistir ao ensaio, notei que os meninos tinham, assim, uma garra, uma força de vontade tão grande. O que faltava neles era uma técnica de dança”, contou Dale, numa antiga entrevista. “Então, Lennie pegou os brasileiros ‘mocoronga’ e mandou pau em cima, oito horas de trabalho”, confirmou Wagner Ribeiro, também em antigo depoimento – tanto Lennie quanto Wagner já são falecidos.

O Dzi e o Vivencial tinham em comum, no entanto, o improviso, o humor, o sentido crítico no que levavam ao palco. Além, claro, da revolução comportamental vivida nos palcos e fora deles. Eram contra o maniqueísmo. “A cultura dizia que homem era assim, mulher era assim e quem fosse diferente não tinha vez. E a gente disse não: ‘Ser humano é para brilhar e não para morrer de fome’. As pessoas que eram diferentes eram obrigadas a entrar em papéis sociais restritos”, pontua Guilherme Coelho. “O espetáculo deles não era um espetáculo gay. Havia uma sexualidade boa, masculina, feminina, homossexual. Havia uma possibilidade absoluta do exercício da sexualidade”, depõe Pedro Cardoso, no documentário Dzi Croquettes.

Afetividades

Dzi Croquettes, as internacionais

Essa liberdade, os dois grupos levaram para a vida que, nem de longe, foi pacífica, sem conflitos. Até porque tanto os integrantes do Dzi Croquettes como do Vivencial moraram juntos. As relações eram intensas, as emoções viviam à flor da pele. Algumas Vivecas moraram juntas, antes mesmo da criação do café-concerto.
Até por conta do Dzi Croquettes ter surgido no Rio de Janeiro, o alcance que os dois grupos tiveram foi diferente. Os Dzi foram à Europa, tinham em Liza Minelli uma madrinha, fizeram temporada com teatro lotado em Paris. Com Repúblicas independentes, darling, que estreou em 1978, o Vivencial fez apresentações em São Paulo, no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, e no Rio de Janeiro, no Teatro Cacilda Becker. Era uma colagem de textos de jornais, crônicas, contos e poesias de Carlos Drummond de Andrade, Carlos Eduardo Novaes, Luís Fernando Veríssimo e ainda depoimentos dos próprios atores.

“O nome do espetáculo era uma coisa extremamente engajada e depois vinha uma ‘pinta’. A gente relativizava tudo. Em São Paulo, lembro o Plínio Marcos, o Antunes Filho na plateia. E, depois, eles queriam saber como aquilo acontecia, porque para a gente era muito natural fazer teatro daquele jeito, usando todos os subsídios para fazer cenário, figurino. Transformando lixo em arte”, conta Fábio Coelho, bailarino do Vivencial.

Tanto o Dzi Croquettes quanto o Vivencial foram sucesso de público, nem sempre de crítica, embora os talentos fossem inegáveis. Talvez por isso mesmo, por reunir tantas possibilidades artísticas, os dois grupos acabaram se desagregando. O Dzi começou a ruir por conta de uma briga que tomou proporções muito maiores do que a sua causa: um cenário que Cláudio Tovar fez para uma apresentação e Lennie Dale não gostou. O Vivencial também se desfez por conta de conflitos. “Não podia faltar céu para tanta estrela brilhar. Todos eram muito brilhantes, com muito ego. Cada um era uma entidade, todos tinham projetos, e nós demos corda para esses projetos. Sempre poli o ego de todo mundo: ‘Você é linda, vai arrasar’, enchia de purpurina. O Vivencial nasceu para brilhar’, afirma Guilherme Coelho. Há um ditado, entre o cômico e o malicioso, que afirma, bem ao estilo de deboche dos dois grupos: “Bicha não morre, vira purpurina”. O Dzi Croquettes e o Vivencial, nesse caso, só nesse, não fugiram à regra.

(Matéria publicada na edição de Janeiro da Revista Continente)

Henrique Celibi, Fábio Costa e Guilherme Coelho. Foto: Henrique Celibi/acervo pessoal

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