No seu O mal estar na civilização, Freud diz: “Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento, como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade”. O amor, as impossibilidades, a rejeição. Em O malefício da mariposa, o espanhol Federico Garcia Lorca, tratou disso tudo – mas através de personagens vindos diretamente do mundo dos insetos.
É um texto cheio de poesia, singelezas, metáforas e sonoridade. E a Ave Lola Espaço de Criação, de Curitiba, soube não só “respeitar” a dramaturgia de Lorca, mas aproveitar-se dela, no ótimo sentido da palavra, para alavancar uma montagem que tem no conjunto da sua teatralidade (e não apenas no texto) o seu trunfo – trabalho do ator (com um impressionante trabalho de corpo), figurino, maquiagem, cenário, iluminação e, com grande destaque, a música.
O trabalho dos paranaenses, apresentado no Teatro Hermilo Borba Filho, durante o Palco Giratório (o grupo está participando da circulação nacional), é inspirado no do Théâtre du Soleil. Depois da sessão, durante o bate-papo com o público, eles contaram que fizeram oficinas com integrantes e ex-intregantes da companhia de Ariane Mnouchkine. A música, inclusive, foi um presente de JJ Lemêtre, que assina a composição musical; ela está lá não para reforçar ou mesmo recontar a dramaturgia, mas tem um pulsar muito particular.
Assim também é a composição dos personagens, um trabalho bem completo, incluindo muitos elementos que vão se amalgamando. A postura corporal se mostra bastante específica, já que os atores estão interpretando insetos e isso parece que se transforma num estado que define todo o resto. Há uma energia e uma sintonia grande entre o elenco, que se utiliza também do teatro de formas animadas, da manipulação de bonecos, para contar a história.
Apesar de ser uma história simples, a forma como é contada pode dificultar a sua compreensão. Mas geralmente é muito fértil a escolha pelo não óbvio, pode acrescentar bem mais ao olhar do público. O grupo decidiu, por exemplo, manter alguns textos em espanhol. Essa mistura causa estranhamentos. Já no início do espetáculo, há uma tradução “quase simultânea”. Fica difícil não se perder – não só na tradução: você quer entender o texto em espanhol sem a necessidade do português -, mas na sonoridade da língua. Bom, se algumas palavras escaparam, paciência! A música trazida pelo castelhano soma sobremaneira àquele conjunto.
A monocromia do cenário – algo como um tapete fofo trazendo a imagem de um jardim – nos remete à simplicidade. A olhar o mundo sem tantos filtros coloridos ou solarizações. E pode haver muita teorização na tela branca sob fundo branco. É a arte abstrata trazida ao palco.
Os três atores se revezam na interpretação dos personagens (alguns são interpretados por mais de um ator) e no interessante e difícil jogo da encenação de misturar atores reais e bonecos. Os bonecos, aliás, foram confeccionados pelo próprio grupo.
O malefício da mariposa é um espetáculo que aguça os sentidos e percepções. Que encanta por Lorca, pelos atores, pela música, mas sobretudo pela competência e trabalho árduo trazidos à cena. E é apenas o primero trabalho do grupo. Vida longa, pois!
*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.
Ficha técnica – O malefício da mariposa
Texto/concepção: Federico García Lorca
Adaptação: Ana Rosa Genari Tezza e grupo
Tradução e direção: Ana Rosa Genari Tezza
Elenco: Alessandra Flores, Janine de Campos, Val Salles
Atriz aprendiz: Tatiana Dias
Direção de arte: Cristine Conde
Composição musical: JJ Lemêtre
Cenário e figurino: Cristine Conde
Confecção de bonecos: Cristine Conde, Alessandra Flores, Janine de Campos, Val Salles
Consultoria de máscaras: Calu Monteriro
Sonoplastia: Ana Rosa Genari Tezza
Iluminação: Rodrigo Ziolkowski
Assistente de iluminação: Raul Freitas
Operadores de som: Tatiana Dias e Ana Rosa Genari Tezza
Operador de luz: Raul Freitas
Documentação e direção áudiovisual: José Tezza
Cenotécnica: Proscenium Cenografia