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Crítica: Tutorial de tudo*

Tutorial de tudo faz última sessão no Teatro Joaquim Cardozo. Foto: Doralice Lopes

Tutorial de tudo faz última sessão no Teatro Joaquim Cardozo. Foto: Doralice Lopes

*Crítica escrita por Durval Cristóvão

O que nos ensina esse Tutorial de tudo?

No coração do bom selvagem todas as virtudes do mundo estão gravadas. O mito do bom selvagem foi criado por Rousseau para denunciar a exploração do homem pelo próprio homem, mas acabou reduzido a uma imagem poética romantizada que, de certo modo, contribuiu para formar a nossa ideia de criança. Se o homem é bom por natureza, as crianças, por estarem mais próximo dela, e ainda não tendo se apropriado da maldade, seriam, portanto, necessariamente boas. Acreditar no bem como princípio norteador é a condição de qualquer sistema ético. Para Rousseau, esse processo de naturalização do homem o aproximaria do bem e da moral.

Para outros franceses admiráveis, como Antonin Artaud ou o Marquês de Sade, a crueldade seria o primeiro sentimento que a vida nos imprime. Artaud fala em apetite de vida; Sade, em paixão e intemperança. Apesar de a natureza não ter valores, não conseguimos contemplá-la sem atribuir a ela características humanas, não há nada de errado nisso. Mas se olharmos para o mar, para o céu, para a montanha ou mesmo para dentro de nós, a crença nesta natureza amorosa e pacífica pode não se sustentar. O Marques de Sade disse: “A crueldade é o primeiro sentimento que a vida nos imprime. A criança destrói seu brinquedo, morde a teta de sua ama-de-leite, estrangula seu passarinho, muito antes de atingir a idade da razão(…) logo, seria um absurdo estabelecer que é consequência da depravação.”

Quem acha que criança não tem sexualidade, que criança não é perversa, que criança não é humana – é um anjinho –, provavelmente nunca conviveu com uma.

Começo, desse modo, esta breve reflexão logo dizendo que senti falta de alguma crueldade na peça Tutorial de tudo, criação coletiva dos alunos do quarto período do curso de Teatro, da UFPE, dirigida por Luís Reis. Sim, eu sei que a palavra “não” é cheia de crueldade, mas é crueldade adulta. Não precisa abrir uma lagartixa, não precisa matar um passarinho, não precisa morder o coleguinha, mas queria sentir aquele friozinho do medo. O medo nos aproxima da infância.

Mas, o que fazer com as crianças? Eis uma preocupação tão antiga quanto a história do pensamento no Ocidente. Apesar disso, a criança viveu na sombra do pensamento filosófico por muitos séculos. Ao que me parece, só depois de Nietzsche, a criança passou a interessar verdadeiramente aos pensadores e aos filósofos.

Todos nós fomos criança um dia, quem envelheceu não pode duvidar disso. Mas a nossa memória não acessa plenamente esse estágio do nosso desenvolvimento. O motivo me parece óbvio: a memória depende do desenvolvimento da linguagem, e a linguagem tem como principal meio de expressão a fala. Infância quer dizer in-fale, sem fala. Se quisermos falar para todos, o silêncio talvez seja um bom começo. A peça começa assim, e é cheia de silêncio e de poesia. Gosto de ir ao teatro para encontrar o contrário da casa, quero dizer: o contrário das nossas vidas. Isso me faz muito bem. Não quero pagar para apanhar, já estou dilacerado. A vida arranha, a vida maltrata. Tenho evitado protestos que não sejam tímidos. Esses mexem mais comigo, parecem mais belos, mais profundos, mais mobilizadores do que certos gritos. Tutorial de tudo é um protesto tímido.

O espetáculo é uma obra para todas as idades. Cheio de belas surpresas e de invencionices. Uma única palavra é utilizada em cena: “não!”, a palavra que mais ouvimos em nossa vida. Desconfio que qualquer pessoa no mundo é capaz que entender esse som, em qualquer língua. Nós, artistas de teatro, cortejamos os universais e eles nos rondam como leões famintos. A peça tem essa pretensão. Acho que até a maior banalidade, quando está posta como obra, ambiciona ser ou participar de algum universal.

Eu não aprendi nada com Tutorial de tudo, o espetáculo não quer ensinar nada. A arte não deveria ensinar nada além da dúvida, da contradição e do equívoco. O teatro é uma máquina de moer tudo. Ele mói até essa gente chata que faz um discurso asséptico para tudo. Eu só me interesso por mãos sujas ou por quem tem coragem de sujá-las.

Na dança coletiva do acontecimento teatral, fui arrastado para uma zona de não-conhecimento, fui levado a um lugar chamado infância. Senti vontade de falar como as crianças que estavam na plateia. E olhe que ninguém jogou açúcar nelas.

O espetáculo é anárquico, subversivo. Saí do teatro Joaquim Cardozo, naquele domingo, 22 de abril de 2018, com vontade de lutar contra as “adultices”. Numa época que cobra sempre alguma bandeira, Tutorial de tudo também ergue a sua. Os “nãos” da cena não são ditos para as crianças, têm os adultos como alvo.

O que costura todas as cenas é um elemento simples e insólito, um banal instrumento de trabalho de operários. Uma ferramenta de trabalho transfigurada, capaz de fazer um barulhinho instigante, um tic-tac, que marca o tempo, que cria toda uma ambiência, e que atiça a nossa curiosidade. Uma ferramenta que faz música. A peça é musical, pulsante. Não consegui contar quantos sins foram dados à criação, à invenção, à arte. Tutorial de tudo não subestima a inteligência dos pequeninos, e procura respeitar o conselho do mestre russo, Stanislavski, aos atores que se dedicam à desafiadora missão de representar para as crianças: “faz como se também fosse para os adultos, só que melhor!“

Apenas uma palavra é dita no espetáculo. Foto: Doralice Lopes

Apenas uma palavra é dita no espetáculo. Foto: Doralice Lopes

Ficha técnica:
Elenco: Aline de Lima, Andresa Sedrez, Cynthya Dias, Danilo Ribeiro, Dênis Lima, Juliana Chaves, Gabriel de Lisboa, Hadassa Melo, Larissa Leão, Paixão Félix, Rafael Dayon, Raphael Bernardo, Raquel Franco, Rômulo Ramos e Júnior de Lima.
Direção geral: Luís Reis
Dramaturgia: Luís Reis e elenco
Núcleo de dramaturgismo: Hadassa Melo (coordenação), Aline de Lima e Gabriel de Lisboa
Núcleo de encenação: Raquel Franco (coordenação), Paixão Félix e Rômulo Ramos
Núcleo de direção de arte: Rafael Dayon (coordenação); Danilo Ribeiro e Dênis Lima (iluminação); Andresa Sedrez (maquiagem); Rafael Dayon e Paixão Félix (figurinos e adereços).
Direção musical: Cynthya Dias
Núcleo de preparação de elenco: Raphael Bernardo (coordenação) e Juliana Chaves (preparação vocal)
Núcleo de produção: Júnior de Lima (coordenação), Andresa Sedrez e Hadassa Melo
Núcleo de mediação: Larissa Leão (coordenação) e Raquel Franco
Design: Rafael Dayon
Fotos: Doralice Lopes

Serviço:
Tutorial de tudo
Quando: Domingo (29 de abril), às 16h
Onde: Teatro Joaquim Cardozo (Rua Benfica, 157, Madalena)
Quanto: Pague Quanto Puder
Indicação especial: Crianças entre 2 e 6 anos
Informações:(81) 2126-7388

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