Assis Benevenuto, Marcos Coletta, Rejane Faria e Ítalo Laureano. Foto: Arquivo pessoal
O grupo Quatroloscinco – Teatro do Comum nasceu em Belo Horizonte. Uma terra propícia ao teatro do grupo. É só lembrar do Galpão e dos seus 30 anos na estrada. Mas a entrevista de Marcos Coletta – que é ator, dramaturgo e assina também a direção coletiva do espetáculo Outro lado, apresentado aqui no Recife semana passada dentro da programação do Trema! – nos mostra um retrato que não é distante: “As políticas públicas para a cultura em BH são extremamente precárias”. A entrevista também fala de teatro de grupo, teatro contemporâneo, anseios e urgências.
ENTREVISTA // MARCOS COLETTA – GRUPO QUATROLOSCINCO – TEATRO DO COMUM
Como o grupo se reuniu? Quais preocupações estéticas e artísticas que vocês tinham há cinco anos? Quais delas se mantem e quais já se dissiparam?
Em 2007, o grupo se reuniu como um núcleo de estudos sobre o Teatro Latinoamericano, quando éramos alunos do Curso de Teatro da UFMG. Este núcleo era composto por Marcos Coletta, Ítalo Laureano e Rejane Faria, além de Sérgio Andrade e Polyana Horta, que hoje não são mais do grupo. Em 2009, o Assis (que já era um colaborador externo do grupo) entrou efetivamente pra equipe. Quando começamos a nos encontrar queríamos colocar em prática toda a teoria e estudo que discutíamos no curso de Teatro, já interessados por uma estética contemporânea, porém “comum”, ou seja, que pudesse ser fruída e lida por diversos tipos de espectador (iniciados ou não). Também tínhamos forte ligação com o teatro latinoamericano, nosso principal objeto de estudo. Após esses cinco anos, percebo que seguimos os mesmos interesses do início, mas com um entendimento mais aprofundado e uma forma de abordá-lo artisticamente muito mais amadurecida. Hoje, uma das principais preocupações do grupo como núcleo de pesquisa é construir nossa própria identidade, nossa própria assinatura como criadores.
Porque a decisão por escrever textos próprios? Do que vocês têm urgência de falar?
O desejo pela dramaturgia autoral vem da necessidade de nos apropriar do que nos atravessa, passando pelo nosso filtro e por nossas experiências. Se, por exemplo, nos interessamos muito por um texto de um tal autor, ao invés de montar o texto, fazemos um trabalho de deglutição e reapropriação das ideias e pontos que nele nos interessam. Nossa urgência é por falar do nosso lugar de enunciação, trabalhar e defender nosso próprio discurso, afinado ao nosso contexto e à nossa realidade, sempre ligado às pessoalidades dos atores-criadores. Nossas criações, apesar de autorais, são sempre alimentadas de dezenas de referências, sejam textos teatrais, filmes, literatura, imagens, e outras fontes diversas.
Há relatos biográficos nas montagens? De que forma realidade e ficção se “contaminam”?
Sim. Nos dois espetáculos que mantemos em repertório tem muito da vida dos atores. Dos nossos dramas, sonhos e angústias pessoais. Ambos os espetáculos brincam com os limites entre realidade e ficção, não somente no que é contado, mas no como é contado. As histórias pessoais se juntam a uma interpretação “limpa”, buscando mais uma presença sincera do ator do que uma construção de personagem. Isso coloca o acontecimento teatral e o espectador no limiar entre o que é inventado, fictício e o que é real. Se é que podemos dizer que há algo absolutamente “real” no mundo…
Outro lado foi apresentada semana passada no Marco Camarotti, no Trema! Foto: Pollyanna Diniz
Há papeis definidos dentro da companhia? A direção coletiva, por exemplo, como isso acontece? Não dá confusão?!
Há vários papéis. Alguns mais definidos que outros. Principalmente no quesito produção, já que não contamos com uma equipe de produção, apenas um produtora. Por isso, somos obrigados a sermos, além de atores, produtores, gestores, assessores de imprensa, planejadores, etc… Na criação, porém, preferimos não delimitar papéis a priori. Deixamos que esses papéis surjam naturalmente. Nossa direção é totalmente coletiva, e também a criação dramatúrgica, mesmo que a escrita do texto acabe ficando com um ou outro. Em Outro lado, por exemplo, eu e o Assis assinamos o texto, mas sua criação foi muito compartilhada e discutida coletivamente. Obviamente acontecem muitas discussões, confusões, momentos de total desorientação, mas nós já adquirimos certas habilidades pra trabalhar dessa forma, e, antes de tudo, há grande respeito pela opinião e pela proposta do outro. É claro que o fato de possuirmos tendências e gostos estéticos parecidos ajuda. Existem as diferenças de cada ator, mas existe um olhar coletivo, que mira um mesmo fim, ou pelo menos uma equalização de nossos matizes criativos. A verdade é que gostamos da divergência, da alteridade, do conflito, isso nos motiva a criar e nos coloca em permanente estado de alerta e desconforto – duas coisas que considero essenciais para o avanço de nosso trabalho.
Como vocês encaram o teatro de grupo no país? Em BH, o teatro de grupo é muito forte. Isso foi fundamental pra vocês? E no resto do país – como vocês enxergam, por exemplo, essa iniciativa do Magiluth de fazer essa mostra?
Encaramos o teatro de grupo como uma alternativa digna e legítima de sobreviver no mercado cultural, respeitando nossas ideologias artísticas e políticas. Sempre difícil e em crise, claro, mas digna. Em BH não é possível falar de teatro sem falar de teatro de grupo. São muitos grupos sólidos, com pesquisas relevantes, com sedes que se transformaram em centros culturais, e dezenas de grupos novos, com menos de 10 anos, que são fruto dessa tradição do teatro de grupo e também dos cursos profissionalizantes de teatro de ótima qualidade que temos na cidade. Grupos de todo tipo de estética e pesquisa. Isso é legal em BH, a diversidade. Apesar disso, as políticas públicas para a cultura em BH são extremamente precárias, a prefeitura e o governo não tem noção da cultura que pulsa na cidade e parecem seguir caminho contrário a todo esse movimento. Talvez isso tenha feito com que os grupos de BH tenham ganhado tanta força, pois sempre tiveram que lutar contra uma política que valoriza muito pouco a arte a cultura. Além disso, Minas Gerais parece sofrer com um curioso ofuscamento por estar entre Rio e São Paulo. Muitas vezes ignoram o teatro feito em Minas. Costumamos brincar que é culpa das montanhas mineiras, que não deixam as coisas saírem muito daqui. Apesar da força interna, enfrentamos dificuldade pra circular e ter contato com o resto do país. Por isso achamos vitais ações como esta do Magiluth, ao propor o Trema. É algo necessário e urgente – criar essas pontes de contato, diálogo e trânsito entre os grupos de teatro do país. É importante tirar do eixo Rio-São Paulo a quase exclusividade sobre o mercado cultural do País.
As relações humanas são tão instáveis nesses dias. Porque no teatro isso seria diferente? Porque vocês ainda apostam no relacionamento de grupo?
Não sei… Talvez por achar que ainda resta alguma utopia em nossas mentes pós-modernas… Talvez por buscarmos alguma ética, alguma filosofia de vida, que vá além do simples trabalhar pra comer e pagar o aluguel. Eu, e acredito que os outros membros do Quatroloscinco, sou um pouco avesso ao “teatro de elenco” que acaba depois da prestação de contas pro patrocinador. Essa instabilidade, essa liquidez das coisas, das relações, talvez nos faça agarrar em algo que nos pareça mais sólido, menos superficial, no nosso caso, o teatro de grupo. Talvez ainda tenhamos um “ranço setentista” parafraseando uma amiga nossa aqui de BH, a atriz Marina Viana.
Qual a importância do espectador para o trabalho de vocês? Que tipo de público vocês atingem?
A relação com o espectador é uma de nossos principais interesses. Nossas peças são criadas para lugares pequenos, pra pouca gente, com o público bem perto da cena. Queremos que o espectador se sinta, de alguma forma, dentro daquele acontecimento. Aquela velha busca do olhar ativo, da co-criação. Nosso público é naturalmente de iniciados no meio cultural, estudantes de teatro, classe artística, apesar disso não ser um alvo exclusivo, pois nunca quisemos fazer teatro só para uma fatia. Ultimamente, por causa de dois projetos de circulação que estamos realizando, temos recebido outro tipo de público – aquele que não vai muito ao teatro, e isso está sendo maravilhoso, pois confirmamos que o teatro que fazemos é de fácil comunicação, é “comum”. Há um fato curioso e contraditório: BH sofre com escassez de público mesmo com uma agenda cultural tão abundante. Nossos maiores públicos são fora de BH. Isso é reflexo da falta de políticas culturais pra formação de público na cidade. Há muito oferta e pouco consumo. Falta uma tradição, um pensamento cultural na cidade que seja coletivo e democrático. Existe algo de provinciano em BH que precisa ser ultrapassado, essa coisa terrível de que cultura é privilégio da elite, de que você precisar vestir roupa cara e elegante pra ir ao teatro.
Vocês já vieram ao Nordeste?
Estivemos pela primeira vez em 2009 para um projeto de intercâmbio com o Grupo Piollin em João Pessoa, convidados pela Cia Clara, realizadora do projeto. Ficamos uma semana na cidade e apresentamos É só uma formalidade na sede do Piollin. Em 2010, participamos do FIAC-Bahia com É só uma formalidade, em Salvador. Essas foram nossas únicas incursões pelo Nordeste. E agora, o Trema!
Que teatro contemporâneo é esse que vocês fazem?
Para além de qualquer enquadramento estético ou formal, “contemporâneo” para nós é uma questão de tempo e espaço. Fazer um teatro que seja reflexo do nosso momento, da nossa forma de viver e se comportar, agora, neste instante, neste lugar. Isso é o nosso “contemporâneo”.
É só uma formalidade. Foto: Nubia Abe
Nós vimos aqui O outro lado. E É só uma formalidade? Do que trata?
É só uma formalidade foi nosso primeiro espetáculo de longa duração. É uma criação coletiva sobre as frustrações, os sonhos, as perdas, a sensação de fracasso do ser humano, muitas vezes causadas pela obrigação que temos em cumprir certos rituais do mundo civilizado como uma receita para viver bem, como casar, ter um bom emprego, um carro na garagem, e morrer dentro de um bom caixão, em um belo velório… Uma peça ao mesmo tempo política e existencial conduzida pelo discurso pessoal dos atores e por uma estrutura que intercala duas fábulas: um homem que saiu de casa para defender uma ideologia e que agora precisa retornar para o enterro do pai e outro que se casou, possui um trabalho comum, uma vida ordinária, e que pretende se separar da esposa. Ambos experimentam o sentimento de fracasso, e agora refletem o rumo de suas vidas.