Foto: Aryella Lira
Carminha amava José, que amava Tereza que amava Antônio, que sumiu antes de entrar para a história. Alterando o nome das personagens, essa Quadrilha de Drummond continua a fazer suas tramas reais e ficcionais. Em Cordel do Amor sem Fim essa paixão explode, implode ou é sufocada às margens do Rio São Francisco, em Carinhanha, no Sertão baiano. Na cidade moram três irmãs – a velha Madalena, a enigmática Carminha e a jovem e idealista Tereza –, por quem José é apaixonado. No dia em que selaria o noivado, Tereza encontra o forasteiro Antônio no porto da cidade e tudo muda na sua cabeça, no seu coração, no seu corpo. A montagem assinada pelo diretor Samuel Santos recusa o naturalismo e explora outras teatralidades para reforçar o jogo. O texto é da escritora baiana Cláudia Barral.
Em cena estão os atores Agrinez Melo (Carminha), Eliz Galvão (Tereza), Naná Sodré (Madalena ) e Thomás Aquino (José ), além do músico Diogo Lopes. O gestual das personagens é forte, decidido. Os passos e gestuais do coco se fundem com Tai Chi Chuan, candomblé, capoeira, recorrendo até ao Expressionismo, no corpo e nas máscaras faciais. Essas máscaras também trazem a influência do mamulengo. Esse arcabouço dá sustentação a um espetáculo vigoroso, onde os passos do coco-de-roda nordestino se aproximam da arte oriental do Butoh. Essa partitura corporal, que perpassa também pelo cavalo-marinho, deixa bem longe o realismo-naturalismo, mas remete para algo mágico, para mitos.
A montagem está carregada de simbolismos. Da sensualidade feminina descoberta, manifestada no corpo de Tereza, que clama por um sujeito estrangeiro que não irá tocá-la. E esse corpo que anseia, com o passar do tempo vai ficando duro, seco. Na realidade isso ocorre quando ela perde as esperanças desse amor imaginado e não se contenta com as possiblidades que lhe são apresentadas, ou seja, o contato erótico com José.
Foto: Ivana Moura
As outras duas irmãs guardam aproximação com as mulheres reprimidas de Garcia Lorca. Madalena fechou-se em casa, em luto. Não sai para nada, ninguém sabe por que, mas há de se presumir que foi por desilusão amorosa – perda, medo, danação. Carminha guarda o segredo de amar o homem prometido da irmã, e quando pensa que tem uma chance o fogo contido reacende.
O amor desmedido de Tereza desafia o amor desmedido de José. José suporta o tempo pedido pela amada até que cansa e a cultura do macho aflora, o que tenta resolver a questão à força.
Foto: Ivana Moura
A cenografia (de Samuel Santos, executada por Nagilson) e a direção de arte de Fernando Kehler embalam essa trama de beleza e elementos reveladores. Como a concha do mar, as redes e mosquiteiro (cortinado para proteger dos mosquitos), bancos que viram cama ou tribuna nos momentos de narração. São também muito criativas as soluções para portas e janelas. A iluminação (plano de Iluminação é d’O Poste: Soluções Luminosas) entra em cumplicidade com os outros elementos da cena. Os figurinos de Agrinez Melo, executados por Sara Paixão, funcionam em harmonia com o conjunto da obra.
A atuação dos intérpretes segue a linha proposta pelo diretor e Agrinez Melo, Naná Sodré e Thomás Aquino reforçam na caricatura, em atuações convincentes. Eliz Galvão destoa dessa galeria, revelando-se um pouco mais imatura em relação ao grupo, mas também tem sua graça.
Foto: Ivana Moura
O verbo do espetáculo é esperar. O tempo é de espera. E a montagem atropela essa exigência. Explico: Cordel do amor sem fim fala muito. Fala com os diálogos e os monólogos das personagens. Fala com o pensamento dessas figuras atormentadas. Fala com a música tocada ao vivo (Letras das músicas: Carlos Barral e músicas Josias Albuquerque). Fala através da percussao executada pelos atores.
O tempo da espera reclama por silêncios.
Se há o que precisa ajustar nesse Cordel são alguns excessos. A maquiagem dos atores e os figurinos da peça já trazem sua carga. As interpretações também reforçam essa linha não ilusionista, com os corpos extracotidianos dos intérpretes. Para ressaltar a poesia do espetáculo é preciso contrapor o que já está bem marcado com um pouco de sutileza. Para equalizar a séria pesquisa com a recepção. Para que o espetáculo caiba em sua própria medida. E arrebate ainda mais o público.