“Censura novamente. Retirada da programação do maior festival de artes cênicas de Pernambuco, sob pressão da bancada evangélica. Eles não se cansam, mas a gente também não. Abençoados aqueles que te perseguem. O ódio é o único talento que têm, e não vale nada”, postou a diretora Natalia Mallo na sua conta do Facebook.
O espetáculo O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu de novo é convidado e depois desconvidado de um programa cultural em Pernambuco. Divulgada como destaque do 25º Janeiro de Grandes Espetáculos, do Recife, a peça foi excluída pelos realizadores do Festival, a Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe), sob a alegação de que é uma maneira de assegurar a própria realização do evento.
O Janeiro havia anunciado as atrações da 25ª edição na sexta-feira (21/2) com ênfase na obra O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Nesse domingo (23/12) retrocedeu e excluiu a peça da programação, decisão pautada por “questões que extrapolam os critérios artísticos”.
Nota na íntegra enviada à imprensa na tarde de domingo (23/12), pelo festival Janeiro de Grandes Espetáculos:
De forma a garantir a realização do 25º Janeiro de Grandes Espetáculos, a Associação dos Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe) informa a retirada da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu da programação do festival.
Por questões que extrapolam os critérios artísticos, o espetáculo, que já motivou ações judiciais e passou por outros cancelamentos, infelizmente não estará mais na grade do Janeiro 2019.
A Apacepe reitera seu compromisso com a liberdade de expressão e mantém seu propósito de abrir as portas para toda e qualquer manifestação artística.
Pressão Evangélica
Um dia após o anúncio da programação do JGE, o deputado estadual evangélico e eleito deputado federal em 2018, André Ferreira (PSC), usou a peça Rainha do Céu como arma de ataque ao governador Paulo Câmara e ao prefeito Geraldo Julio, ambos do PSB.
“Mais uma vez o Governo do Estado e a Prefeitura do Recife afrontam as famílias cristãs de Pernambuco, contratando, com recursos públicos, a peça teatral na qual Jesus Cristo é um travesti”, publicou o blog do Jamildo sobre a posição do político. “Devemos, claro, investir na cultura para que seja acessível a todos, desde que realizada com respeito. Mas não é o caso dessa peça teatral absolutamente fora de propósito”.
Bem, parece que a pressão fez efeito bem rapidinho.
Isso é preocupante. Por muitos motivos. Todos os sinais e ações de confisco de direitos, a ideia do presidente eleito de que a cultura deve ocupar uma lugar de figurante, o pouco alcance e relevância com que os novos ocupantes do poder enxergam os fazeres artísticos. O Brasil é um estado laico e não pode ser pautado por crenças de A ou B. A liberdade de expressão e a liberdade artística não podem ser confiscadas. Pelo menos o que se espera dos artistas, produtores e pessoas da cultura é uma atitude de combate, para defender a liberdade.
Sabemos todos que os festivais de teatro são viabilizados com editais de incentivo e verbas do governo. Mas isso não quer dizer que os diretores, gestores e curadores de festivais sejam lacaios do poderoso da hora. A ingerência politico-partidária nas linhas curatoriais dos festivais é um perigo que pode abrir brechas.
Quem é do meio artístico sabe que transformaram O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu em nitroglicerina pura neste cenário de marcha ré que se transformou o Brasil pós golpe jurídico-midiático.
Desde a sua estreia, em 2016, O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu sofre censura direta. A apresentação da peça foi cancelada em setembro de 2017 em Jundiaí (SP) e outubro em Salvador, ambas por decisão judicial, sob o argumento de que Renata Carvalho “vilipendia artigos religiosos”.
Em junho deste ano, o prefeito do Rio de Janeiro, Crivella, cancelou a mostra Mostra Corpos Visíveis, sob a desculpa de que a Arena, palco do evento está fechada devido a “um problema na licitação”. Crivella também afirmou: “Na minha administração nenhum espetáculo, nenhuma exposição vai ofender a religião das pessoas. Eu não vou permitir. Enquanto eu for prefeito nós vamos respeitar a consciência e a religião das pessoas”.
O espetáculo foi apresentado dentro da programação do Trema! Festival, em junho no Recife, sem problemas e com boa acolhida do público.
Em julho deste ano, o espetáculo foi retirado da programação oficial do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), por proibição do prefeito da cidade do Agreste pernambucano, Izaías Regis (PTB). O imbróglio teve idas e vindas, com pedido de reinclusão da peça pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), recusa de juiz, liminar de desembargador.
Um grupo de ativistas, artistas e produtores culturais, e amantes da democracia, não ficou passível diante da censura. Para resistir ao veto, foi realizada uma vaquinha virtual para exibição do espetáculo de forma independente. Mesmo com a decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco, a favor de pilares constitucionais (a exemplo de liberdade de expressão artística e o Estado laico), a Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região prossegui com a perseguição à peça.
Condenada pelos cristãos conservadores, que pregam o amor de Cristo mas não toleram conviver com o diferente, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, fez duas apresentações em Garanhuns, sob forte tensão, com a protagonista “escondida” em Maceió antes das sessões com receio de represálias violentas.
Mas de que os conservadores têm tanto medo ou odeiam numa peça que nem viram? Intolerância é uma resposta. Não a única. Existe dificuldade de quem é hostil à democracia em conviver com a diferença e sua ideia é eliminar. Eliminar corpos, ideias, posições, varrer do mapa aquilo que incomoda (LGBTQI+, negros, mulheres e pobres são os principais alvos).
E se Jesus voltasse nos dias de hoje como uma travesti? Essa é a pergunta-chave da peça. Segundo a Bíblia, que tanto citam os acusadores da peça, Jesus Cristo acolheu excluídos, pecadores, humilhados da sociedade. Quem são os marginalizados de hoje?
O episódio FIG virou caso de estudo levado à discussão Dive Queer Party no Edinburgh International Book Festival, em agosto. Algumas das mais proeminentes vozes artísticas de queer estavam lá: Travis Alabanza, Chitra Nagarajan, Jo Clifford, Susan Worsfold com participação da performer e ativista Renata Carvalho por vídeo.
A diretora e tradutora de Rainha do Céu Natalia Mallo expôs o caso da censura na noite do debate “liberdades precárias: Perspectivas queer de todo o mundo”. O tema do FIG deste ano “um viva a liberdade”, virou motivo de chacota, segundo testemunhou o diretor do Trema! festival Pedro Vilela, que esteve no evento na Escócia.
Em Edimburgo, a discussão estava pautada na reflexão de que as liberdades são precárias – elas podem ser conquistadas apenas para ser rapidamente perdidas de novo. Então o tempo é de resistência, (re) existência.
Por todas as pressões, as perseguições, difamações, fake news, que artistas sofreram nesses últimos meses que se prolongam, é muito perigoso ceder.
É bom lembrar das ideias do crítico de arte, jornalista, professor pernambucano Mário Pedrosa (1900 – 1981), para quem arte é revolução permanente da sensibilidade e da percepção. Ele defende que a questão estética é também uma questão ética e ambas se orientam por uma visão estratégica de intervenção na vida. Apostava na relação crucial entre arte e política e se posicionou criticamente com as apropriações mercadológicas da arte.
Na rede
Mesmo em clima natalino, alguns artistas se posicionaram no facebook. A atriz Renata Carvalho replicou as publicações em jornais sobre o cancelamento de sua montagem com comentários suscintos: “2019 nem começou” e “Recife mais uma vez…” Além das Hashtags #rainhajesus ; #representatividadetrans ; #censuranão .
“O fundamentalismo religioso sempre metendo o bedelho onde não deve!!
Aposto que a atriz Renata Carvalho não vai se meter nas extorsões e falcatruas que os pastores realizam dentro dos templos!!”, escreveu Lucas Correa Viegas.
O ator Elison postou: “Que vergonhoso, Janeiro de Grandes Espetáculos. Mais vergonhoso ainda é uma desculpinha como “critérios extra-artísticos”. O nome disso não é outra coisa que fazer coro à transfobia, que ceder à censura. Extremamente vergonhoso e desrespeitoso com as artistas. Apoio e aplausos incessantes a Renata Carvalho e seu trabalho primoroso!
Quem perde é o público recifense. E o próprio festival, em termos de credibilidade”.
Caia Coelho foi mais incisiva. “Que porra é essa, Paulo de Castro, Iris Macedo, Luciana Raposo? Estou com vergonha de vocês. Estou com vergonha de ter trabalhado com vocês. Vocês não passam de covardes lixos transfóbicos envergonhando quem produz arte com resistência”.
O artista Java Araújo pergunta: “Para que colocar na programação e depois tirar? Querem atrair polemica para ganhar marketing pro festival?”
A militância desse espetáculo é por espaços para todos, respeito pela diferença e representatividade trans. Na dramaturgia da britânica Jo Clifford, também artista trans, Jesus volta como travesti. Discute-se as questões de gênero numa releitura fincada nesses tempos do Brasil. A atuação flui entre a narração e comentários inspirados na Bíblia e experiências de luta da atriz traduzida em poética cênica. Carvalho defende valores puramente cristãos, mas com o direito dessa imagem divina ser representada por um corpo dissidente.