Acabou de chegar às livrarias brasileiras, neste mês de janeiro, o romance português Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral, livro vencedor do Prêmio José Saramago em 2019. O enredo mistura dados reais e ficção para contar a história de uma brasileira: Gisberta Salce Junior, uma mulher trans de 45 anos, que foi brutalmente espancada, torturada e abusada durante três dias por um grupo de 14 adolescentes na cidade do Porto, em 2006. Quando acharam que Gisberta estava morta, jogaram o corpo dela, ainda viva, no poço do elevador de um edifício abandonado. De acordo com os laudos, Gisberta não morreu por conta das lesões e fraturas, mas por afogamento.
O crime bárbaro ficou sem punição, embora tenha instaurado um debate público sobre transfobia em Portugal e inspirado obras que continuam reverberando a sua história. Uma das mais tocantes é a interpretação de Maria Bethânia para Balada de Gisberta, do português Pedro Abrunhosa: “Perdi-me do nome/Hoje podes chamar-me de tua/Dancei em palácios/Hoje danço na rua/Vesti-me de sonhos/Hoje visto as bermas da estrada/De que serve voltar/Quando se volta para o nada/Eu não sei se um anjo me chama/Eu não sei dos mil homens na cama/E o céu não pode esperar/Eu não sei se a noite me leva/Eu não ouço o meu grito na treva/O fim quer me buscar (…)”.
Em Sentimentos Gis, a voz de Cleybson Lima parece ocupar cada espaço do teatro quando ele canta, sejam os mesmos versos de Bethânia ou a música forte que tem o nome do espetáculo, composta por Luisa Magaly. Se, “às vezes, respirar é difícil”, como diz o bailarino e ator, o canto envereda por outras possibilidades dramatúrgicas sensíveis. Quanta potência de vida, de dor, de revolta, de superação, tem na sua voz. E olhe que essa impressão vem de um registro audiovisual da peça, que estreou em 2017 em Petrolina, Sertão pernambucano, depois do apoio do prêmio Klaus Vianna ao processo. A gravação do espetáculo, com direção de Thom Galiano e dramaturgia e operação de som de Lennon Raoni, foi disponibilizada dentro da programação do festival Janeiro de Grandes Espetáculos.
Numa conversa nas redes sociais, Cleybson Lima conta que foi a partir da música interpretada por Bethânia que começou a imaginar o espetáculo. Embora tenha sido um ponto de partida e de referência fundamental à dramaturgia, a montagem não se prende à biografia de Gisberta. Não se trata de um resgate da sua história, mas a trajetória dela, contada logo no início, serve como disparadora para nuances comuns a muitas vivências de travestis, que vão sendo desdobradas e sobrepostas ao longo do espetáculo. Uma delas, talvez a mais constante, é a violência.
Neste mês da visibilidade trans, o dado declaratório de desumanidade: o Brasil é o país que mais mata a população transgênera no mundo. Seria difícil que essa suscetibilidade à violência, em todos os seus graus, não se transformasse num dos pilares do espetáculo. Desde a violência moral, o preconceito, o bullying. Uma criança que é exposta às críticas porque gesticula demais enquanto fala. O que a nossa sociedade não é capaz de fazer com uma criança, um menino “afeminado”, por exemplo?
A relação com o sexo e a recorrência à prostituição como modo de sobrevivência das travestis também são elementos definidores na dramaturgia. Gisberta foi à Portugal fugindo da violência no Brasil. Trabalhava como transformista, mas o sustento vinha mesmo da prostituição. Depois da Aids, não conseguiu mais se manter e a sua situação de vulnerabilidade foi se agravando.
Na coreografia da relação sexual, o que era para ser prazer, rapidamente se transforma em violência. Ação-reação, proteção, gilete na boca. Resistência que se dá nas calçadas, transportada ao palco como manifesto e potência criativa.
Em alguns momentos, a trilha sonora envereda pelo barulho das ruas, das buzinas dos carros, da emergência das avenidas de grande circulação. A iluminação vai se delimitando como instrumento para mostrar ou esconder, para desenhar só o que é preciso, apenas o que se quer deixar ver ou que fazemos questão de não enxergar. As imagens visuais que o espetáculo constrói são carregadas de referências, de outras peças, de filmes, da luz do cabaré.
A personagem construída por Cleybson Lima evoca a força da travesti que não se rende à realidade da violência, que é dona das suas decisões, do seu corpo, do seu desejo. Nesse ensejo, muitas perguntas reverberam a partir de gatilhos do espetáculo. O que mudou desde 2006, quando Gisberta foi morta? O que mudou desde 2017, quando o espetáculo estreou? De quais maneiras a transgeneridade é vista nos palcos? O que significa representatividade na vida e no teatro? Como superar os clichês? Como, de fato, imaginar novas formas de sociabilidade?
São questões que não se esgotam com o espetáculo, que precisam atravessar os limites, se instaurar como debate público. Não podem mais ser ignoradas, em todas as instâncias. São urgentes e demandam disponibilidade de escuta, de aprendizado, de construção. E a arte, definitivamente, é uma mola propulsora dessas discussões.
A partir da arte, construímos possibilidades de existência, exploramos utopias e lançamos as bases para o que pode vir a ser. Quiçá uma realidade menos dura, um mundo melhor. O desafio encarado por Cleybson Lima e por toda a equipe é levar a crueza da vivência das travestis das ruas aos palcos. Para que Gisberta seja, definitivamente, símbolo de transformação social.
Ficha técnica:
Sentimentos Gis
Bailarino/intérprete criador: Cleybson Lima
Direção: Thom Galiano
Dramaturgia e operador de som: Lennon Raoni
Cenografia: Cleybson Lima, Lennon Raoni, Thom Galiano
Confecção de cenografia: Rafael Sisant
Trilha sonora original: Luisa Magaly
Musicas incidentais: Diva da Dúvida (Claudia Wonder), Divino Maravilhoso (Gal Costa e Ney Matogrosso)
Designer de luz: Fernando Pereira
Execução de luz: Vinicius Carvalho
Figurino: Maria Agrelli
Confecção de figurino: Tia Nubes
Foto: Rubens Henquique
Produção: Cleybson Lima
Assistentes de produção/cenotécnico: Rafael Sisant e Wendell Britto