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Exercício de tecnossobrevivência
Crítica de Sala de Espera

Trechos de peças clássicas são dramatizados pela atriz. Foto: Reprodução de tela

Respira, respira, pontua várias vezes Cira Ramos.  Foto: Reprodução de tela

O mundo anda muito estranho. Foto: Reprodução de tela

* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco

Sala de Espera é uma experiência virtual, com roteiro adaptado e atuação de Cira Ramos, direção de fotografia e direção geral de Fernando Lobo, supervisão artística à distância de Sandra Possani. O trabalho é inspirado na estrutura dramatúrgica da peça Próxima e utiliza fortemente os recursos audiovisuais.

A figura de Cira Ramos, multiplicada em muitos papéis dela mesma e fragmentada no tempo que escapa, encara uma espécie de looping seguidamente. Acontecimentos de um mesmo dia se misturam com pequenos acréscimos.

Lentilha, Ano Novo, Carnaval, a peça Próxima, as incertezas dos editais, Cira se desembrulha para investigar como viemos parar nessa situação. Que tempos são esses???

Arrisco dizer que o golpe de 2016 piorou tudo que veio em seguida.

Sala de Espera aguenta um estado de suspensão, traça uma reflexão alucinada, bem-humorada, vertiginosa sobre calendários, agendas, passagens dos dias e o que caiu sobre nossas cabeças e nos paralisou.

O trabalho nos conduz por um túnel do tempo, como se tudo acontecesse de novo e de novo. Será que a mulher da tela está ficando louca; presa no tempo, condenada a reviver esta data repetidamente? Ou somos nós?

O cinema é prodigioso em explorar esses recursos. Feitiço do Tempo, de 1993, dirigido por Harold Ramis é um deles, no qual o personagem leva um choque elétrico e os acontecimentos dos seus dias se repetem sem parar.

Peça Próxima, com Cira Ramos e direção de Sandra Possani, já flertava com o audiovisual. Foto: Reprodução de tela

Próxima, a peça inspiradora dirigida por Sandra Possani, estreou em 2018 como ato comemorativo dos 40 anos de carreira da atriz Cira Ramos. Investiga a dura luta da artista mulher, que enfrenta mais obstáculos e uma carga de trabalho reforçada pelas atividades domésticas, não usufrui de equidade salarial entre gêneros e outros desafios para conseguir o  papel seguinte, o trabalho posterior.

O tempo implacável que deixa suas marcas, as glórias do passado e as incertezas quanto ao amanhã quando se vive de arte ocupam a centralidade das discussões de Próxima, espetáculo que traz esse flerte entre teatro e cinema e aproveita poeticamente as possibilidades dos recursos tecnológicos.

Mas uma pergunta desabou sobre minha cabeça, sobre se a natureza de Sala de espera é ou não é teatro e contaminou os bastidores do Satisfeita.

Elucubrações de Yolanda

Dei uma gira nos labirintos da minha cabeça. E os vultos, meus fantasmas a me atormentar: “Isso é teatro?”
– Pare o mundo que eu quero…
– O mundo parou há um ano, de uma certa forma… Não percebeu?–Eita…
– Por isso o teatro presencial foi interditado, entre outras atividades como consequência das medidas de isolamento social para tentar barrar a disseminação do vírus.
– Cadê minha bolsa, meus documentos?

O teatro é tanto que não pode ser unívoco. Dos muitos teatros possíveis, resistência e combate contra autoritarismo, contra arbitrariedade e qualquer forma de opressão se faz presença.

Como centenas de obras virtuais, Sala de Espera é resultado da necessidade de prosseguir criando durante a pandemia de Covid -19. Urgências de experimentar, em casa, no espaço privado, que se torna público durante a exibição do trabalho gravado. A artista seguiu os protocolos e operou com as pessoas da família, o marido e as filhas, que também entraram na equipe.

Sala de Espera é um desafio. O clima é de adiamento, para quando a vida voltar ao normal. Será que volta? É melhor diminuir a expectativa e se maravilhar com o poema de João Cabral de Melo Neto, “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”.

Ano Novo, Carnaval, o tempo é misturado no experimento artístico. Foto: Captação de tela

O que é o teatro? Desde o século passado me pergunto isso, pergunto a um e a outra. Não encontrei resposta decisiva. Satisfatoriamente definitiva. Continuo procurando. “O que é que há, pois, num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem”. Shakespeare, Romeu, Julieta. Que doideira! Isso é romântico?

Arte da presença. Mas a presença-ausência espacial, sincrônica temporalmente? Uns e outros levando choques vindos da tela? Hum hum. Pode ser. Teatro virtual… teatro gravado… teatro cinematográfico… teatro com mídias… teatro intermídia… teatrofilme… teatro da dramaturgia visual… teatro.. teatro…
Ai que saudade do teatro presencial.

No experimento gravado Sala de Espera, Cira Ramos transborda dessas indagações, faltas, desejo de aglomerar. Ai, ai, saudade Saudade tão grande Saudade que eu sinto Do Clube dos Pás, dos Vassouras Passistas traçando tesouras Nas ruas repletos de lá Batidas de bumbo São maracatus retardados Que voltam pra casa cansados Com seus estandartes pro ar Quando eu me lembro O Recife tá longe A saudade é tão grande Eu até me embaraço… Antônio Maria, sua música embala corações.

Tem gente que não gosta de jeito nenhum desse teatro virtual. Eu preferiria o presencial, bien sûr. Mas por que essa mania excludente? Ou é isso ou é aquilo? Por que não ser isso e aquilo?

Elucubrações de Yolanda

Os fantasmas não me largam, fazem um sambada na minha cabeça:
– E o risco cênico?
– Parem, assombrações, de me atormentar! Que é que tem o risco cênico?
– Não tem! Tá tudo gravado, editado.
– Ai meu São Longuinho, Santa Edwiges, Iemanjá!!! O risco ocorreu na hora da gravação, caramba.
– Mas a gente não viu!
– Use a imaginação!!!
– A presença tem que ser ao vivo…
– É preciso levar em conta as experiências que incorporam a tecnologia. Outros tempos, outros regimes de presença. E principalmente agora, com a pandemia que não é uma gripizinha.

Cira Ramos é mignon, uma atriz versátil que atua com desenvoltura em muitas possibilidades teatrais e tem um timing especial para o humor. Assisti algumas de suas atuações. Dos infanto-juvenis Avoar, de Vladmir Capella, com direção de José Manoel (1987/1990); Maria Borralheira, de Vladmir Capella, com direção de Manoel Constantino (1988), A Ver Estrelas com texto e direção de João Falcão (1990); e para o público adulto, O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchecov, dirigido por Antonio Cadengue (1990/92), Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues, também sob a batuta de Cadengue (1993/1994); Fernando e Isaura, de Ariano Suassuna encenado por Carlos Carvalho (2005/2006/2007), Carícias, de Sergi Belbel com direção de Leo Falcão (2009/2010/2012), e tem muito mais. Uma trajetória rica de experiências cênicas.

Fernando Lobo, que assina a direção, é publicitário, músico, diretor e produtor musical com mais de 40 anos de profissão. Um cara experiente, premiado, criativo. Ele imprime um ritmo frenético aos questionamentos da atriz, com cortes, repetição, edição.

Sala de espera utiliza animações. Foto: Captação de tela

Elucubrações de Yolanda

Os fantasmas voltam mais ferozmente indagativos:

– As telas não substituem o encontro real entre seres humanos…
– Não mesmo? As pessoas namoram, fazem sexo por telinhas, negociam ganham dinheiro.
– Você está mudando de assunto…
– Será?!
– Vamos falar sério?
– Mais ainda
– Que as telas não substituam o encontro real entre seres humanos!!!
– Então vamos cruzar os braços e esperar a morte chegar? Porque teatro presencial está proibido, contato físico com outros humanos desaconselhável durante essa pandemia.
– Não, claro que não, mas não podemos chamar uma coisa pelo nome que não lhe pertence.
– Vamos lá… então… teatro virtual, teatro MAIS que expandido durante a peste do século 21.
– Sabe Jorge Dubatti?!!!
– Sim, claro, o teórico, filósofo e crítico argentino, que criou a Escola de Espectadores.
– Então, para mim, a teoria dele é a mais adequada. Dubatti defende que existem dois feitios de elaboração poética: a convivial e a tecnovivial.
– São paradigmas diferentes
– O tecnovívio, para Dubatti é essa cultura vivente desterritorializada por intermediação tecnológica.
– Mas o teatro respira em movimentado diálogo com os tempos e ganha muitos contornos no percurso…
– Mas sem perder sua essência… Dubatti pensa a arte do teatro como acontecimento convivial, de duração efêmera, localizada e territorializada. Então precisa estar de corpo presente, corpo físico vivo, na materialidade do espaço físico.
– Sei, sei, uma cultura de convívio, feito as partidas de futebol em campo, encontros com amigos, os rituais religiosos, as aulas presenciais nas salas de aula…
– O filósofo argentino coloca em oposição a cultura tecnovivial da cultura convivial. Nessa cultura tecnovivial as relações humanas ocorrem por desterritorialização, à distância, por meio de máquinas ou sistemas tecnológicos.
– Certo, mas ambas são experiências artísticas, performáticas, com poiesis e espectadores
– Mas falta o fator convivial… território convivial, o calor humano. não vivenciamos a experiência teatral.
– Com cenas pré-gravadas, não é teatro!
– Que coisa mais purista. O teatro é um fenômeno multifacetado. E podemos criar outros conceitos. Lembra da obra Stifters Dinge, de Heiner Goebbels? Um peça sem atores, uma performance sem performers?
– Sim, sim, exibida II Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em 2015. Não considero como teatro, mas uma instalação…
– Pois penso que a reverberação, os aplausos, a reflexão, os ensaios, a repercussão, a crítica, também são teatro. Como no poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, fica um pouco. E se fica é porque tem.
– É interessante, mas não me convence.
– Está bem, então ficamos assim, pois preciso terminar essa crítica, que já demorou muito…
– Mas, fazer crítica não é fazer bolo de rolo?
– Como assim?
– Bolo de rolo é patrimônio cultural e imaterial de Pernambuco, desde 2007!
– Eu sei!!!! E adoro. Mas existe uma receita, né?!

Ela troca de fantasias. As imagens de arquivo de Carnaval foram cedidas por HIGH TECH Vídeos Profissionais

Sala de Espera pulsa mais teatro quando expõe sua artesania, os objetos e arranjos que eles usaram para fabricação da imagem. São utilizados desenhos animados em algumas cenas e o trabalho palpita de ânsia pelo encontro e pela presença física.  A atriz utiliza frases curtas, questionamentos cotidianos feitos nessa pandemia e narra as experiências enquanto são mostradas: lavar as mãos, fechar a porta, chamar o elevador, descer as escadas. 

Os momentos mais teatrais jorram das falas das peças Macbeth, – o mais tenebroso dos dramas shakespearianos de acordo com o crítico literário Harold Bloom; Maria Stuart, do escritor Stefan Zweig, – sobre a rainha da Escócia (1542-1587), pretendente ao trono inglês, por ser descendente de Henrique VII, que foi condenada por traição e presa durante 22 anos por determinação de sua prima Elizabeth I, rainha da Inglaterra; Medeia, a tragédia grega de Eurípides, datada de 431 a.C., sobre a impressionante mulher que mata os filhos como vingança e proteção, depois de ser abandonada pelo marido que ela ergueu; Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, escrita em 1975 inspirada na peça de Eurípedes sobre o mito de Medeia, transposta para o Rio de Janeiro.

O experimento artístico foi exibido pela primeira vez durante o Festival Reside Lab – Plataforma PE, a partir do Recife, na plataforma do Youtube, com chat aberto antes da apresentação e uma breve interação entre artistas e público. A atriz falou, ou pensou, no seu nervosismo, naquelas pessoas que ela conhece. Alguns, amigos ou fãs ou pessoas que assistiram Próxima no teatro, fizeram suas conexões, deixaram frases, comentários.

Mas afinal, depois dessa elucubração toda, é ou não é teatro? Minha resposta por enquanto, depois de tudo, é que estou na Sala de Espera, aguardando para assistir ao espetáculo Próxima. E vamos em frente, criando e refletindo sobre esse momento histórico utilizando as ferramentas tecnológicas disponíveis.

Ficha Técnica:
Sala de Espera
Roteiro adaptado: Cira Ramos
Direção: Fernando Lobo
Supervisão artística: Sandra Possani (Contatos remotos)
Assistência de direção: Cira Ramos
Atuação: Cira Ramos
Direção de fotografia: Fernando Lobo
Trilha sonora original: Fernando Lobo e Fábio Valois
Iluminação: Fernando Lobo
Sonoplastia: Fernando Lobo
Captação de áudio: Fernando Lobo
Assistente de captação de áudio: Alice Lobo
Assistência de fotografia e iluminação: Julia Lobo e Alice Lobo
Animação: Julia Lobo e Alice Lobo
Edição e montagem: Fernando Lobo
Imagens de carnaval, cedidas do arquivo HIGH TECH Vídeos Profissionais.

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Corpos trans afirmam que estão na luta pela vida
Crítica de O Evangelho Segundo Vera Cruz

 Elke Falconiere, Dante Olivier, Jailton Jr., (em pé) Rodrigo Cavalcanti e Joe Andrade. Elenco da peça O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, de Pernambuco, dirigida por Rodrigo Dourado, que recria episódios da censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns (PE),  em 2018.

“Negra, pobre, periférica, travesti”. É assim que Erika Hilton, a primeira vereadora transexual de São Paulo – a mulher mais bem votada no Brasil – se apresenta. Como a maioria das mulheres trans, ela foi inviabilizada durante a maior parte dos seus 27 anos de vida. Sua vitória é individual e coletiva. É uma resposta ao avanço da extrema-direita. Muitas outras vêm sendo dadas. Contra o fascismo e o conservadorismo. Na política, na arte, na arte que é política. 

É um marco. Mas nada é tão simples nesses tempos. Os paradoxos gritam. Mulheres eleitas vereadoras e prefeitas, negras, foram ameaçadas de morte. Eles continuam tentando intimidar, limar as afirmações, confiscar os lugares. 

É sobre intimidação, repressão, agressão, intolerância que trata o espetáculo pernambucano O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, dirigido por Rodrigo Dourado. O trabalho tensiona documento e ficção e convoca os episódios condenáveis de censura contra a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, ocorridos em Garanhuns, Pernambuco, em 2018. A montagem foi proibida de se apresentar no Festival de Inverno de Garanhuns, depois de ter sido selecionada pela curadoria do evento.

De maneira criativa e contunde, Vera Cruz recria o périplo da Rainha do Céu, que envolve política, justiça, católicos e neopentecostais, seguidores versus arte e liberdade artística, desobediência civil e re(existência).

De forma breve, a atriz trans Renata Carvalho em corporeidade não-normativa interpreta Cristo, em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. As reflexões da peça são as pregadas pelo Cristianismo, como o perdão, compaixão, combate à intolerância preconceito, e toda forma de opressão. Não é isso que ensinam as religiões? Não é tão simples. Renata que o diga. Sua montagem sofreu muitas proibições e retaliações em vários lugares.

Em Garanhuns, a peça foi convidada, excluída da programação, reinserida pela justiça, articulada para fazer sessões paralelas, perseguida. Qual o poder dessa peça que desperta tantas reações?

O Evangelho Segundo Vera Cruz traça dobraduras para salientar que vivemos num pais racista, machista, misógino, transfóbico, LGBTfóbico e que tem horror a pobre.  Vera Cruz é o nome desse lugar fictício, que pode ser o agreste pernambucano onde se passaram os fatos, que remete ao passado colonial brasileiro; ou outro Brasil afora. Colonial, colonialismo, cristianismo, público sendo usado como privado são questões que atravessam a montagem.

Duas atrizes trans (Joe Andrade e Elke Falconiere), um ator trans (Dante Olivier) e mais dois atores cis (Jailton Júnior e Rodrigo Cavalcanti) estão no elenco. Das janelas do Zoom, elxs equalizam sentimento de indignação, revolta, insubordinação. Inflamam de verdades quem sofre na pele as perseguições e a falta de oportunidades. Articulam o clima de instabilidade e praticamente desenham para quem não quer ler o que é ser uma pessoa trans num país como o nosso.

Além das situações que a atriz Renata Carvalho viveu recriadas para a cena online, o dramaturgo e diretor Rodrigo Dourado criou um conflito paralelo à contenda pública, a trama de um casal LGBT formado por um homem cis e um homem trans, que lideram o  movimento para levar a peça à cidade. Os quadrados do Zoom funcionam bem para impor a dinâmica da reinserção e retirada consecutiva da encenação, espelhando o que ocorreu com Renata Carvalho em 2018.

Além do bom desempenho técnico com a plataforma, O Evangelho Segundo Vera Cruz garante o humor ácido e a alternância entre crítica social, posicionamento político e dose de revolta represada por séculos de opressão. O resultado é instigante.  

Em dado momento, a atriz Joe Andrade interage com a plateia, do chat da Plataforma Zoom, ao perguntar se pessoas trans subtraem as oportunidades de trabalho das pessoas cis gêneros. Isso ocorre após uma acalorada renovação da fala da atriz Renata Carvalho sobre o tema do transfake no teatro. É chamada de transfake a prática de atores cis assumirem personagens trans e travestis, Por isso, em abril de 2017 o Coletivo T criou o manifesto ‘Representatividade trans já. Diga não ao Trans Fake’ 

São muitas nuances, provocações de O Evangelho Segundo Vera Cruz, para marcar um posicionamento firme diante do cenário turbulento que inspirou a peça e da complexa realidade em que vivemos.

O mundo tão distópico quanto na ficção ganha relevo no vídeo, que conta com a participação da atriz Renata Carvalho, e é bem desconcertante. Utilizando imagens de arquivos da história do mundo, antigas e recentes, a narrativa se impõe como uma verdadeira guerra em que as vidas transgêneras se defendem para preservar a própria existência. Eu só pouparia a estátua de Ariano Suassuna. 

A esperança de futuro e a reação violenta também vão depender dos ataques. Os corpos dissidentes estão se articulando em força e inteligências para não serem mortos.  Não dá mais para recuar na busca por liberdade, com dissidência e desobediências para o pleno exercício das subjetividades.

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Episódio de censura com atriz trans Renata Carvalho inspira Evangelho Segundo Vera Cruz

Fotomontagem com Elke Falconiere em O Evangelho segundo Vera Cruz, peça pernambucana inspirada em  O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com Renata Carvalho

Elke Falconiere e Joe Andrade, artistas trans na peça O Evangelho Segundo Vera Cruz. Foto: Ricardo Maciel

Elke Falconiere, Jailton Jr., Dante Olivier, Rodrigo Cavalcanti (abaixado), Joe Andrade. Foto: Ricardo Maciel

Como Jesus Cristo seria recebido neste século 21, se retornasse no corpo de uma travesti? Esse é um dos questionamentos do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, escrito pela britânica Jo Clifford, e que ganhou uma adaptação no Brasil, traduzida e dirigida por Natalia Malo, com atuação de Renata Carvalho. Desde sua estreia, a peça sofreu uma série de retaliações, incompreensões (principalmente por quem nem assistiu à montagem), boicotes, censuras. Segundo a própria atriz, o episódio mais marcante em sentido negativo ocorreu em 2018, durante a 28ª edição do Festival de Inverno de Garanhuns, no Agreste pernambucano, que, ironicamente, tinha adotado para aquele ano o tema da liberdade.

Esses acontecimentos de censura ao espetáculo da atriz Renata Carvalho são retrabalhados em O Evangelho segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira, grupo pernambucano que está completando 10 anos. De acordo com Rodrigo Dourado, dramaturgo e diretor do trabalho, a peça é um retrato desse momento político único e uma homenagem. “Como gesto artístico, é também uma ação para reverter essa condição de vulnerabilidade em que são lançadas as vidas LGBTs, mas também de negros, mulheres, e todos os que são alijados de seus direitos básicos”.

A peça é, especialmente, um manifesto pela representatividade, contando com forte presença da comunidade transgênera em seu elenco, com a estreia das atrizes Elke Falconiere, Joe Andrade e do ator Dante Olivier, acompanhados dos atores Rodrigo Cavalcanti e Jailton Jr.

A montagem O Evangelho segundo Vera Cruz está em temporada online por meio da plataforma Zoom, às quintas-feiras, 26/11, 03/12 e 10/12, às 20h. Ao final de cada apresentação, o grupo passa um chapéu virtual, no esquema Pague Quanto Puder, de contribuição livre, por meio de depósito bancário.

Rainha do Céu

Ao contrário de seus detratores, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu imprime um discurso de tolerância, exaltando a centelha divina de TODO ser humano. Defende que amar é uma ação revolucionária e que o perdão é basilar para uma convivência pacífica. Entre distribuição de pão e vinho, a protagonista faz uma reencenação, digamos, “pop” da Última Ceia. Predomina a serenidade no tom, com um linguajar jovial para levar à cena a proposição de que se Jesus regressasse como uma travesti seria novamente crucificado aos 33 anos. Ou menos.

A média de vida de uma pessoa trans é de 35 anos, quando a média do brasileiro chega a 75. De acordo com o Boletim nº 4 de Assassinatos contra travestis e transexuais da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra), em 2020, 129 pessoas trans foram assassinadas de janeiro a 31 de agosto no Brasil, o que registra um aumento de 70% em relação a 2019. Entre 2017 e 2020, 436 pessoas trans foram mortas. Em 2019 foram registrados no Brasil 124 assassinatos de pessoas transsexuais, o que dá uma média de um homicídio a cada três dias, segundo o levantamento. É um genocídio, com a mão ou conivência do Estado.

A peça já havia sido censurada em Jundiaí, no interior paulista, no Rio de Janeiro e em Salvador. E foi boicotada em muitos outros lugares. No interior de Pernambuco, o golpe foi duro. O espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi convidado pela curadoria do Festival de Inverno de Garanhuns, retirado do festival, reinserido, apresentado na garra e apartado da programação. Cenário de intransigência cultural, “trapalhadas” políticas, e demonstrações de reacionarismo.

A atriz Renata Carvalho enfrentou um calvário de intolerância, cujo ápice ocorreu em 27 de julho de 2018, o que ela considera o “episódio de censura mais violento” que já viveu, com ação de boicote do festival, oficiais de justiça e até a explosão de uma bomba caseira no local da apresentação, numa noite tensa e chuvosa.

Repúdio de líderes religiosos. Mandado de segurança. Ordem dos Pastores Evangélicos de Garanhuns e Região. Tribunal de Justiça de Pernambuco cede à pressão da igreja. Liminar proíbe apresentação da peça. Desembargadores dão decisão favorável à (re)inclusão do espetáculo no FIG. Secretaria de Cultura e Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco sustentam exclusão.

Esse episódio todo foi de um desrespeito muito grande. Foi a transfobia institucionalizada. Claro, toda censura agride, como aconteceu em Salvador, em Jundiaí e até no Rio de Janeiro. Mas essa de Garanhuns foi sem dúvidas a mais violenta que nós já sofremos com a peça.
Renata Carvalho, ao The Intercept_Brasil

O dramaturgo e diretor Rodrigo Dourado acompanhou de perto toda essa movimentação. “A questão se converteu num problema político eleitoral, pois prefeito (Izaías Regis) e governador (Paulo Câmara) pertencem a polos opostos do espectro político”, pontua. Dourado integrou o grupo de agentes culturais que fez uma mobilização para que Rainha do Céu fosse apresentada, de forma independente da programação do FiG. “Após inúmeras ameaças e conflitos, Renata Carvalho decidiu realizar a performance mesmo desprovida de todos os aparatos técnicos, contando para isso com o apoio da plateia que desejava vê-la em cena”.

Rodrigo avalia que aquele episódio emoldurou duas energias morais e políticas muito fortes que têm se antagonizado no Brasil. “De um lado, um conservadorismo neofascista e censório, que deseja apagar formas de vida e de expressão não normativas. De outro, movimentos civis que resistem à onda reacionária e exigem seu direito à existência e à cidadania”.

A própria Renata Carvalho alertou à época que aquele não era um caso isolado direcionado contra uma artista trans, mas a demonstração de que a censura estava colocando suas garras para fora.

Dito e feito. Os discursos de ódio e intolerância foram contemplados nas urnas de 2018 e posições conservadoras, reacionárias mostram um orgulho de discriminar o outro – seu dessemelhante.

Entrevista // Rodrigo Dourado, dramaturgo e encenador

Rodrigo Dourado. Foto: Ricardo Maciel / Divulgação

Quais as motivações para erguer O Evangelho segundo Vera Cruz? E durante a pandemia não ficou mais difícil?
Nesse período de 2020, a gente tinha programada uma série de ações para comemorar os 10 anos do Teatro de Fronteira. Precisamos rever tudo. A partir de março, fizemos a primeira temporada de Luzir é Negro!, que era a primeira ação e a temporada já foi bastante prejudicada pela quarentena. O público já foi bem baixo. Então, a gente aprovou várias ações em editais emergenciais como o Arte como Respiro, do Itaú Cultural, Cultura em Rede, do SESC Pernambuco, e o ConVida, do SESC Nacional. O Evangelho Segundo Vera Cruz foi a ação apoiada pelo Cultura em Rede, do SESC de Pernambuco. Esse texto, que tinha sido escrito por mim em 2019, estava engavetado, não tinha sido montado nem publicado e decidimos submeter ao edital.  Quando foi aprovado, começamos o trabalho de montagem no formato online. No início, sim, foi muito difícil a adaptação às plataformas online. A gente não sabia muito bem lidar com tudo aquilo. Foi um aprendizado enorme, porque além da tecnologia em si, quer dizer, os recursos que a plataforma tem, a gente tinha situações de acesso à internet muito diversas, realidades sociais muito diversas dentro do elenco. Precisamos criar uma harmonia, uma unidade entre essas situações, para chegar a um ponto mínimo, ter um denominador comum que nos permitisse uma qualidade mínima de transmissão e a utilização dos recursos da plataforma.
Mas, eu não posso dizer que foi mais difícil do que montar um espetáculo presencialmente. Teve as suas especificidades, mas o processo em si, o tempo, a quantidade de ensaios, a pesquisa, o trabalho de ator, as descobertas da encenação, tudo isso é muito parecido com formato presencial. O que muda somente é o meio.

A peça recria os episódios de censura sofridos pela atriz Renata Carvalho com seu espetáculo, no ano de 2018, na cidade de Garanhuns/PE. Como é feita essa recriação? Quais aspectos são destacados na peça?
Eu participei daquele movimento que levou a peça a Garanhuns, junto com várias outras pessoas. Eu fui observador e, desde aquele momento, quando estávamos ainda inseridos nele, vivendo, eu já sentia essa teatralidade pulsante de tudo que estava acontecendo. O debate público que o teatro estava gerando, os conflitos sociais, no sentido dos estudos da performance um certo ‘Drama Social’ que o espetáculo estava ocasionando. Então, já me parecia tudo muito teatral: a sociedade garanhuense, pernambucana, discutindo nas ruas esse tema; o coro público, a voz das ruas, o teatro midiático que foi feito em cima disso nas redes sociais, na imprensa; os shows na Praça Guadalajara e as provocações nos shows; todos esses elementos foram trazidos de alguma forma para dentro da dramaturgia. É uma dramaturgia que transita bastante entre o épico, o narrativo, as formas mais populares de narrar, personagens-tipo, a gente tem também uma citação ao mamulengo numa determinada cena. E tem seus traços dramáticos, porque na peça existe um conflito paralelo ao conflito público que estava acontecendo, que é a história de um casal LGBT formado por um homem cis e um homem trans, da cidade de Garanhuns, e que estão na linha de frente do movimento que levou a peça à cidade. E também tentamos, de alguma forma, nos aproximar da história de vida da Renata, das questões da atriz. Então, tem uma questão da intimidade da Renata que é recriada. Agora tudo isso com alguma liberdade artística. Não temos um compromisso factual 100%. A gente recria algumas coisas, poetiza algumas coisas; dramaturgicamente eu posso dizer que o arranjo é esse.

Renata Carvalho participou de alguma das apresentações? Como ela recebeu a iniciativa da peça?
Nesta versão da peça, atual, que é a terceira, Renata participa fazendo uma voz em off, uma locução de um trecho da peça. Mas também há vários depoimentos dela que foram resgatados da Imprensa e utilizados na peça. Ela não assistiu à peça ainda, mas tem acompanhado o processo. Leu o texto, fez sugestões, críticas e junto com o elenco trans a gente foi debatendo, discutindo, confrontando aspectos da dramaturgia para que, de alguma forma, ficasse mais justa e mais fidedigna à experiência de vida trans, já que eu sou um homem cis escrevendo sobre essas experiências. Então Renata esteve sempre no suporte, no apoio a todo esse processo, mas ela não assistiu à peça ainda.

Para quem não acompanhou esse episódio, você poderia falar sucintamente do caso de censura à peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com Renata Carvalho, em Garanhuns, em 2018?
A peça foi escalada para a programação do Festival de Inverno de Garanhuns, em 2018, pela curadoria da Fundarpe/Secult/PE. Assim que a programação foi anunciada pela imprensa, o prefeito da cidade, Izaías Regis, foi aos meios de comunicação anunciar que não aceitaria receber a montagem, alegando que a cidade era cristã e que, supostamente, o trabalho feriria a comunidade local por trazer uma travesti na personagem de Jesus Cristo. Vários veículos de imprensa da cidade apoiaram o prefeito, que, na sequência, recebeu ainda apoio do bispo local e de representantes da comunidade evangélica. O Governador Paulo Câmara e a Fundarpe, a princípio, sustentaram que a peça se manteria na programação e que, uma vez proibido pelo prefeito o uso do teatro municipal (Luiz Souto Dourado), buscariam apoio de outras entidades para acolher a encenação. A questão se converteu num problema político eleitoral, pois prefeito e governador pertencem a polos opostos do espectro político e o governador buscava a reeleição. Logo, o prefeito passou a fazer uso eleitoral do episódio a fim de desgastar a imagem do governador. Com o apoio da bancada evangélica no Assembleia Legislativa, ameaçando mobilizar seu rebanho contra o governador, não demorou muito para que Paulo Câmara recuasse de sua decisão, anunciando que a peça tinha sido excluída da programação. Rapidamente, um grupo de agentes da sociedade civil mobilizou-se e empreendeu um movimento para arrecadar fundos e levar a peça à cidade de maneira independente. Houve inúmeras ameaças a esse movimento e à própria vida da atriz e a apresentação aconteceu sob forte sigilo. A justiça também foi invocada para impedir a realização da apresentação. Num último instante, a Fundarpe decidiu apoiar o espetáculo, oferecendo infraestrutura técnica de som, luz, etc. Mas uma decisão judicial de última hora foi emitida, após o transcorrer da primeira apresentação, proibindo que a peça se realizasse. Ao receber a notificação, a Fundarpe começou a desmontar toda a infraestrutura que havia disponibilizado, atrapalhando a realização da segunda récita. Após inúmeras ameaças e conflitos, Renata Carvalho decidiu realizar a performance mesmo desprovida de todos os aparatos técnicos, contando para isso com o apoio da plateia que desejava vê-la em cena.

Como observador privilegiado e um dos articuladores da desobediência à ordem esdrúxula dos governantes, quais os sentidos que foram despertados em você naquele momento, e quais sentimentos guarda até hoje?
Para mim, aquele episódio emoldurou duas energias morais e políticas muito fortes que têm se antagonizado no Brasil. De um lado, um conservadorismo neofascista e censório, que deseja apagar formas de vida e de expressão não normativas. De outro, movimentos civis que resistem à onda reacionária e exigem seu direito à existência e à cidadania. Trata-se de um momento histórico do teatro brasileiro do século XXI, porque a peça já havia sido censurada em diversas cidades, mas em nenhum lugar, como em Pernambuco, houve um movimento tão potente de resistência e desobediência ao poder institucionalizado. Em O Evangelho segundo Vera Cruz, eu tomo claramente lado, o lado desses sujeites que escapam aos padrões, dessas vidas dissidentes, já que sou um homem gay que sofreu e sofre na pele os horrores do preconceito e da perseguição aos desviantes. A peça é, portanto, um retrato desse momento político único e uma homenagem a essas vidas precárias. Como gesto artístico, é também uma ação para reverter essa condição de vulnerabilidade em que são lançadas as vidas LGBTs, mas também de negros, mulheres, e todos os que são alijados de seus direitos básicos.

O teatro que é transmitido pelas redes realmente derrubou barreiras geográficas, pois numa mesma apresentação podemos ver gente de várias partes do Brasil e do mundo. Como você (s) percebe (m) a recepção da peça? Dá para fazer um pequeno percurso desde a estreia?
Sobre a recepção à peça: a gente teve duas situações muito diferentes até agora. A gente fez um processo aberto pelo Sesc. Primeiro, realizamos um debate sobre a peça, depois fizemos um ensaio aberto com a exibição de pequenas cenas. Esses dois tiveram uma presença muito boa de público interessado em conhecer um processo teatral, de saber como se desenvolve um processo teatral. Esse aspecto de uma pedagogia mesmo do espectador. E no terceiro momento, no Sesc, a gente teve a apresentação em si da leitura, havia 150 pessoas na sala do Zoom nos assistindo, uma plateia gigante, muito participativa. Ao final, fizemos mais uma linda conversa. Foi muito bonito ver as contribuições, as colaborações, as intervenções, as indagações trazidas por esse público ao longo desse processo todo que a gente viveu no Sesc.
Num segundo momento, a gente apresentou a peça em Guaramiranga, no Festival Nordestino de Teatro. E aí sim, a gente não fez a peça para a plateia no Zoom, retransmitimos o que estávamos fazendo no Zoom pelo YouTube. Então a plateia pôde assistir à peça pelo YouTube e interagiu bastante com a peça via YouTube. Já era uma segunda versão com substituição de atores, com mudança na dramaturgia, com a chegada da Elke Falconieri, a saída de Marconi Bispo. Então, a gente tinha ampliado a representatividade trans do elenco. Foi muito bom fazer essa versão em Guaramiranga, porque no dia seguinte tivemos um debate em que pudemos ouvir os curadores e conhecer as impressões, os apontamentos deles, que também ajudaram a peça a chegar até essa terceira versão, que nós estamos apresentando agora. Agora, a gente tá enfrentando uma dificuldade maior de público, porque estamos fazendo uma temporada com ingressos pagos, com bilheteria. As outras ocasiões foram todas gratuitas, porque a peça já estava comprada, subsidiada – digamos assim – pelas instituições que nos convidaram. Agora é um momento nosso, de uma temporada independente. E aí sim, está sendo mais difícil a chegada desse público. Talvez por conta das dificuldades financeiras, pelo cansaço do formato online, já que a gente está se aproximando do final do ano, várias questões que a gente tem levantado para entender, para compreender essa dificuldade com o público. Mas é quase como se a gente estivesse na forma presencial, enfrentando aquela dificuldade de fazer teatro presencial na base da bilheteria, caçando público, fazendo um esforço gigante para chegar ao público. E só para fazer um complemento, nessas ocasiões todas a gente teve público do Brasil inteiro, Minas, Pará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, outros estados do Nordeste, Centro-Oeste. É muito bonito ver o movimento do Brasil podendo conferir essas obras nesse formato online.

Gostaria que você falasse do elenco. Houve alterações, ampliação participativa de artistas trans, como se deu isso? E mesmo que pareça óbvio tem coisas que precisam ser reditas, qual a razão das escolhas?
Desde o início, eu como homem cis escrevendo essa peça, tinha convicção de que, primeiro, o texto precisava ser submetido a uma crítica sistemática da comunidade trans. E que a gente precisava ter representatividade no elenco, porque toda a questão que atravessa o debate levantado por Renata diz respeito à representatividade, à presença de corpos e cidadãos/sujeites trans nas peças que trazem narrativas de vida trans. Essa era uma questão central para mim desde o início. A princípio foram convidados Joe Andrade e Dante Olivier, que foram alunos meus na UFPE; a Joe do curso de teatro e o Dante do curso de artes visuais, mas fez comigo uma disciplina que ofereço de “Teatro, Gênero e Sexualidades Dissidentes”. E a gente tinha o elenco do Fronteira, Marconi (Bispo), Rodrigo Cavalcanti e o Jailton Júnior, que também foi meu aluno da Federal e agora integra o Fronteira. Marconi precisou se afastar do grupo e eu imediatamente pensei em convidar a Elke Falconiere, que também foi minha aluna na UFPE, que é uma mulher trans, foi minha orientanda de TCC. E, para ampliar essa representatividade, inclusive, trazendo a Elke para interpretar personagens cis, não só personagens trans. O caminho foi por aí. Para a gente, é fundamental; não faz sentido essa peça existir sem essa presença. Hoje a gente tem maioria trans no elenco, temos três pessoas trans e duas  cis. A presença delas é fundamental. Não só do ponto de vista dessa crítica que elas podem fazer aos conteúdos e às formas da peça, mas sobretudo como uma forma de inserção no mercado artístico, de visibilização do trabalho delas. Está sendo muito importante para nós.

“A montagem é também um gesto criativo diante das dificuldades pandêmicas, uma forma de manter a chama do teatro acesa, explorando para isso os meios virtuais”. Já que o assunto é tocado… quando a pandemia se instalou houve uma discussão sobre se o que é apresentado via internet é teatro ou não. Sem julgamentos de posições, já que estamos num processo de desbravar territórios e rever paradigmas, qual sua avaliação desse momento teatral?
Sobre a questão do teatro online: lá atrás, quando começou a pandemia, mais ou menos em abril, eu escrevi um artigo chamado “Teatros da pandemia: o giro viral”, em que faço uma provocação e um prognóstico de que esse momento iria gerar uma virada de chave no teatro, no sentido de, ao invés do teatro parar e se deparar com uma encruzilhada sem solução – já que não há presença, não há teatro – que caminhos o teatro iria tomar. E de lá para cá, a gente viu que o formato online foi bastante ocupado, foi bastante explorado, está sendo explorado, dilatado. Para mim, já nem é mais uma discussão essa de se o teatro online é teatro ou não. É teatro online. É uma forma que fricciona as formas digitais, as formas audiovisuais, as formas teatrais, mas que claramente se distingue de outras formas audiovisuais e online; se distingue da novela, se distingue do cinema, se distingue da videoarte, se distingue dos canais do YouTube, se distingue das formas digitais como o videogame ou outras mídias digitais, do streaming. Então, acho que tem uma especificidade aí do teatro ocupando esse espaço, que para mim já está muito clara. Além disso, tem uma lida também com os arquivos de teatro. A gente tem muito arquivo de espetáculos gravados, filmados, sendo revisitados e pesquisados e vistos, servindo como material didático, também ocupando um certo espaço dessa experiência presencial do teatro. E um retorno que o público tem nos dado, frequentemente, é que estar no teatro online é como estar no teatro. As pessoas se encontram na plateia, na antessala, no hall. Saber que as pessoas estão ali cria uma noção de convívio, de convivialidade, aquilo que Jorge Dubatti tem chamado de tecnovívio. A gente saiu de um convívio para um tecnovívio. Tem essa precariedade também, do artesanato teatral feito online, então tem improviso, tem jogo, tem as possibilidades infinitas que a internet oferece, que estão sendo explorados, mas também tem a instabilidade da internet que nos obriga a jogar, a improvisar como no teatro.
Tem a sensação do ao vivo, tem o bastidor, que é a casa dos atores. É quase como se as formas tradicionais do teatro, elas tivessem encontrado outras maneiras de ser. Tá tudo lá. A sensação que eu tenho é que está tudo lá. Para mim é um ganho, uma dilatação, é uma expansão das possibilidades do teatro, que não apaga nem dissolve ou desfaz o teatro presencial – que já está retornando em alguns lugares e vai retornar – mas que cria outras outras veredas.

Bem, como anda o teatro pernambucano?
Eta nós! Acho que o teatro pernambucano está vivíssimo como sempre esteve. Acho que a gente tem um movimento na cidade, de teatro grupo, de grupos de jovens. Grupo Bote de Teatro, Grupo Resta 1, Grupo AmarÉ, o Teatro Bordô, Coletivo Despudorado, Grupo Afrocentradas. Acho que o teatro local irremediavelmente está dialogando com as questões raciais, étnicas, com as questões da mulher, com as questões LGBTs, com as questões trans, com as questões periféricas. Nosso teatro está nesse movimento. Acho que a gente tem aí grupos que já tão na maturidade, como Totem, Fiandeiros, Cênicas; o Teatro de Fronteira está chegando aos 10 anos, eu diria que é um adolescente ainda, mas que já tem uma estrada. Então é um teatro que sim, tá vivo, é um teatro que de alguma forma encontrou seus caminhos também pela internet. A gente tem visto experimentos, sejam da Casa Maravilhas, com as suas lives; seja o Grupo O Poste fazendo suas lives e seus experimentos também; a Criative-se Cultural realizou um pioneiro trabalho online por aqui; temos os grupos de teatro como a Fiandeiros e a Cênicas de Repertório mantendo as atividades de ensino. A gente tem o Fronteira aí também experimentando o formato online, não somente como o Evangelho, mas também com o Puro Teatro (Arte Como Respiro), disponibilizando ainda arquivos de suas peças. Hermínia Mendes performando para o Arte como o Respiro; o Coletivo Angu lançando um texto inédito de Marcelino Freire também no Arte como Respiro; a gente teve vários experimentos que foram feitos para o Sesc-PE, como os experimentos de Paulo de Pontes (dirigido por Quiercles Santana), o de Clara Camarotti; a força sertaneja de Odília Nunes vertendo para o online; as Violetas da Aurora clownando para as redes; outras produções de conteúdo pelo Coletivo Grão Comum, Grupo Cênico Calabouço, por meio de diálogos online; um coletivo de artistas pernambucanos, radicados no RJ, encenando Muribeca, de Marcelino Freire (criação de Wellington Jr. Breno Fittipaldi, Reinaldo Patrício); o Magiluth reproduzindo as experiências pioneiras de teatro não-presencial um-a-um que iniciaram sendo feitas na Europa, nos EUA. Cito uma delas em meu artigo, da Cia. La Colline, de Paris. Pode ter inspirado o grupo. Enfim…
Então acho que é um teatro que encontrou seus caminhos também nesse formato online. Eu penso que o nosso teatro é muito contemporâneo, ele está em diálogo com tudo que está acontecendo aí pelo mundo, apesar das dificuldades financeiras e econômicas, que são na verdade uma realidade do Brasil inteiro. Eu acho que a gente continua resistindo e persistindo em fazer teatro.

Qual o seu posicionamento sobres políticas públicas culturais, tanto do Governo do Estado de Pernambuco, quanto da prefeitura do Recife?
Acredito que as políticas públicas para a cultura em Pernambuco e no Recife são já precárias e vêm se precarizando cada vez mais. Ao longo dos oito anos da gestão do prefeito Geraldo Júlio (PSB), houve um desmonte absurdo de diversas políticas culturais, de equipes. Equipamentos culturais foram sucateados, como o Teatro Apolo-Hermilo. Não existe uma política de programação, de fomento à pesquisa de grupos, de formação de plateia. O Parque está sendo entregue agora, às vésperas da eleição. O importantíssimo Festival Recife do Teatro Nacional foi esvaziado. Não houve canal de diálogo com a classe teatral. O SIC foi retomado num formato estranho, priorizando eventos que contam com a participação de membros da prefeitura em suas equipes de criação. Por sua vez, a Fundarpe tem se mostrado incompetente na gestão do Funcultura, com atrasos sistemáticos de prazos, além dos atrasos nos pagamentos de cachês de artistas e a criação de instrumentos sem a escuta da sociedade civil, como no caso do Prêmio Pernalonga. É preciso que haja mais recursos, mais escuta, mais celeridade e que se desenhe, de fato, um Programa Cultural a ser cumprido durante as gestões e não apenas como promessas de campanha. Mais importante: é preciso separar o doméstico do público, entendendo o espectro cultural em sua amplitude, em sua diversidade, e não apenas atendendo às crenças e valores privados dos gestores.

FICHA TÉCNICA || O Evangelho Segundo Vera Cruz
Atuação: Dante Olivier, Elke Falconiere, Jailton Júnior, Joe Andrade y Rodrigo Cavalcanti
Direção e dramaturgia: Rodrigo Dourado
Produção: Rodrigo Cavalcanti
Designer de luz: Natalie Revorêdo (Farol Ateliê da Luz)
Efeitos sonoros: Jailton Júnior
Teasers: Dante Olivier
Registro Fotográfico e Identidade Visual: Ricardo Maciel
Realização: Teatro de Fronteira

Serviço:
O Evangelho Segundo Vera Cruz, do Teatro de Fronteira 
Exibição: Plataforma do Zoom
Quando: Quintas-feiras, às 20h, até 10 de dezembro
Classificação Indicativa: 16 anos
Duração: 70 minutos
Informações: teatrodefronteirape@gmail.com | @teatrodefronteira

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Dança investiga “a pele que habitamos”

Foto: Divulgação

Espetáculo pernambucano Segunda Pele questiona padrões que oprimem. Foto: Divulgação

Foto de Leandro Lima

Sobre fortalezas e delicadezas. Foto de Leandro Lima

Agre . Foto: Leandro Lima

Maria Agrelli em cena . Foto: Leandro Lima

Cena do espetáculo de dança contemporânea Segunda Pele. Foto: Divulgação

Cena do espetáculo de dança contemporânea do Coletivo Lugar Comum. Foto: Divulgação

Maria Clara Camarotti em cena. Foto: Divulgação

Maria Clara Camarotti em cena. Foto: Divulgação

O espetáculo pernambucano de dança contemporânea Segunda Pele é povoado de afetos. Desses que o mundo carece. De respeito pelas singularidades; de amorosidade nas relações, nos toques; de humor que valoriza. Para chegar a esse território, as atrizes-bailarinas expõem com coragem as feridas provocadas por intolerâncias sociais. É forte, é terno, é includente. Isso vem desde o nascedouro, da escolha do nome do grupo – Lugar Comum, inspirado num conceito do escritor Edouard Glissant, da criação de espaço que conectem realidades multiétnicas, plurivocais, não etnocêntrica, com vistas a forjar novos parâmetros para a arte e para a vida nos tempos que seguem. Não é pouco.

As peles que habitam o corpo, o corpo nu, o corpo social, o corpo casa – cidade, pelo, olhar, prazer, toques, cortes, pudor, memória. Troca de peles, desnudamentos, a peça de dança coloca no centro um debate sobre a diversidade dessas matérias que nos compõem. Traça um mapa emocional sobre infinitas possibilidades de estar no mundo e questiona os padrões que oprimem, ofendem, dilaceram.

Em desnudamentos, em transformações, as artistas Liana Gesteira, Maria Agrelli, Maria Clara Camarotti e Renata Muniz escamam suas cascas, compartilham experiências de suas vidas. Algumas bem dolorosas como traduz o depoimento de Maria Clara, de suas cirurgias e as facas mais afiadas dos olhares e julgamentos de parcela da sociedade.

Segunda Pele trafega por identidades, pertencimentos, intimidades e coletividades. Investiga a políticos dos corpos e os discursos avessos. A reação do contato com outros materiais humanos e de outras naturezas como elástico, velcro, plástico, arame, poliestireno. Cada uma das artistas tem seu momento de protagonismo e também de cumplicidade feminina, amparo, proteção, amizade.

O Coletivo Lugar comum foi instigado pelas ideias de Friedensreich Hundertwasser, o arquiteto ícone da Viena mais vanguardista, para montar esse trabalho. O pensamento do artista austríaco – que desenvolveu sua obra numa perspectiva mais humanizada e ecológica-, defende que o terráqueo tem cinco peles: a epiderme, o vestuário, a casa, o meio ambiente – social e cultural – onde vive e, a última, a pele planetária ou crosta terrestre ou a natureza ou o planeta Terra.

Também Segunda Pele vivencia transformações desde sua estreia, em 2012. Mutações que acompanham os debates de resistência e empoderamento da mulher que passam por vestimentas em sentido ampliado.

A peça combina a força expressiva dos corpos, em suas peculiaridades. Com entusiasmo reivindica o poder, de fala e de atuação, mas reparte com a plateia suas inquietas pulsões. Exercita idiomas de muitas gestualidades. Toma posição e responde ao mundo a partir de lugares do feminino com habilidade de quem está na luta política. Cada uma com seus registros de vida. Engajam espaço e tempo para fazer circular na cena questões urgentes. Chega como um breve manifesto pela liberdade plena.

Ficha técnica
Concepção: Liana Gesteira, Maria Agrelli, Maria Clara Camarotti, Renata Muniz e Silvia Góes
Interpretescriadoras: Liana Gesteira, Maria Agrelli, Maria Clara Camarotti e Renata Muniz
Preparação corporal: Silvia Góes
Concepção e Criação de figurino: Juliana Beltrão, Maria Agrelli e Maria Ribeiro
Execução de figurino: Xuxu e Fatima Magalhães
Colaboração na execução de figurino: Ilka Muniz e Maria Lima
Trilha sonora original: Rua (Caio Lima e Hugo Medeiros) + convidados (Cyro Morais e Paulo Arruda) + letra de Silvia Góes
Criação e execução de iluminação: Luciana Raposo
Operação de Luz: Luciana Raposo
Assistente de iluminação/ cenotécnico: Sueides Leal (Pipia)
Execução de cenário/estrutura: Gustavo Araújo e Marcos Antonio
Produção geral: Vi Laraia
Design gráfico: Thiago Liberdade
Fotos e vídeo: Ju Brainer e Tuca Soares
Realização: Coletivo Lugar Comum

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