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Jornada de resistência e busca por liberdade
Crítica da peça Alguém pra fugir comigo

Espetáculo recifense Alguém para fugir comigo. Foto: Ivana Moura

Alguém pra fugir comigo é um espetáculo de estrutura fragmentada e não linear, do Resta 1 Coletivo de Teatro, do Recife, que expõe diversas formas de opressão e de resistência em diferentes tempos – desde o “período escravocrata” até os dias atuais. A peça tem apelos de humanidades perdidas; ou clamor desesperado de que seja possível encontrar algum fio que leve ao coração das trevas.

Como se configuram os dispositivos da montagem, a peça parece abraçar as ideias de Chimamanda Ngozi Adichie sobre a importância de contar histórias e de evitar o perigo da história única.

Seus personagens, figuras ou flashes humanos são pobres e oprimidos, e a opção da montagem é a partir do olhar de luta delas e deles. Com isso, oferece ao público uma tapeçaria complexa de experiências de pessoas subalternizadas pelo sistema de ontem e de hoje. Pois como diz Adichie, “histórias importam”.

Montado em 2016, o que resultou na formação do Resta 1 Coletivo de Teatro, Alguém pra fugir comigo atravessou o pós-golpe de Dilma Rousseff, sobreviveu à pandemia, e respirou aliviado depois de quase sumir com ações diretas e indiretas do pior presente do Brasil. Isso está encarnado no corpo dos atores, nos fluxos de tensões e distensões da encenação. Nos quadros que se articulam entre si há encaixes perfeitos e outros que não se acomodam, gritam isoladamente.

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, corajosa e pulsante, desafia ao seu jeito, as convenções teatrais, mesclando diferentes estilos e abordagens narrativas. É uma trama que perpassa diferentes tempos e tipos, rasgando temas como desigualdade, resistência, injustiças e afetos. A origem conceitual e os disparadores vêm de textos políticos, líricos, filosóficos; relatos de fatos verídicos e imaginários.

Nessa estrutura estilhaçada se enroscam diferentes épocas e perspectivas. Desde a fuga de Liberdade, uma escravizada que busca escapar dos abusos da casa-grande, até reflexões sobre nossa cidadania vez por outra ameaçada, a peça mexe um caldo de experiências.

Há imagens extremamente potentes, poéticas, comoventes. Existe uma entrega na atuação do elenco, composto por Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. Eles “abraçam” tipos cotidianos em situações extremas e performance mais autoral. Mas há quebras, uns hiatos, umas ruínas expostas que se apresentam febris, mas podem cair em fragilidades.

A direção musical e o desenho de som de Kleber Santana, combinados com a iluminação de Luciana Raposo e o figurino simples em tons pastéis, criam uma atmosfera envolvente. Os trechos musicados e coreografados são carregados de poética onírica.

Personagens questionam como conquistar a liberdade. Foto: Ivana Moura

A peça provoca uma gama de emoções no público, desde risos frouxos com o vocabulário escatológico de algum personagem até momentos de profunda reflexão e comoção. Minha amiga Inocência Galvão foi às lágrimas na sessão de 15 de agosto, no Teatro Apolo.

O grupo vai abrindo caminho em busca de uma linguagem própria. Mas soa como uma provocação/cilada o aviso do elenco de que “não há nada de novo ali” e que o público não deve esperar “isso” e “aquilo”. Pareceu-me um jogo de palavras para trazer o niilismo do quadro difícil que o teatro pernambucano enfrenta há anos e que só piorou. Cria um sentido dúbio sobre a obra. E não sei se devolve o efeito esperado pelos criadores/criadoras da cena.

Até porque, o espetáculo propõe uma escuta cúmplice, empática, de quem está à beira do abismo, de quem não suporta mais tanta pressão, dos momentos em que o mundo espreme tanto que quase não sobra fôlego para viver. E como alimentar a coragem, eles vão perguntando e vendo a resposta adiada.

Alguém pra fugir comigo evita oferecer respostas simplistas ou conforto imediato. Mas mesmo assim, relembra que é fundamental o exercício do afeto, da empatia e da solidariedade, especialmente em tempos de turbulência e incerteza. Talvez por a cena ser dura, com episódios cruéis, sinalize para esse caminho de humanidade.

A direção Analice Croccia e Quiercles Santana. Foto: Ivana Moura

O conceito de fuga é central na encenação, servindo como metáfora para a busca por liberdade e autodescoberta. A peça questiona: “Quando fuga virou sinônimo de liberdade? Justiça é sinônimo de liberdade? Estar livre é o mesmo que estar liberto?” Estas perguntas provocativas convidam o público a refletir sobre o verdadeiro significado de liberdade em diferentes contextos históricos e pessoais.

Através de personagens como Liberdade, a peça explora questões de identidade e pertencimento. A pergunta “Essas são nossas terras e origens?” ressoa profundamente, especialmente no contexto da história brasileira e sua herança colonial.

A direção de Analice Croccia e Quiercles Santana cria um jogo teatral dinâmico, mas com andamentos diferentes, da agilidade à lentidão. O uso de elementos simbólicos, como as malas carregadas pelos atores, funciona como metáfora para as bagagens emocionais e históricas que todos carregamos.

Como a própria peça sugere, qualquer dia desses você pode estar mais frágil e precisar de uma mão, de um braço, de um colo, de um abraço, de um empurrão. Talvez seja bom não esquecer disso.

FICHA TÉCNICA
Atuantes:
@analicecroccia
@ane_clima
@claubarros__
@pedrocaiqueferraz
@pollycabral
@rapha_berna
@wilamysrosendo

Operação de luz de @lucianaraposoluz
Pesquisa musical e execução de @klebersantana_bill
Direção de movimento de @patricia.costabailarina
Preparação de canto de @katarinamenezescanto
Texto de Ana Paula Sá e Quiercles Santana
Encenação de Analice Croccia e @quiercles

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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Lançamento de livros
Mais dois títulos do teatro pernambucano

grupo gente nossa 1938 foto Acervo Projeto Memórias da Cena Pernambucana

A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna – 1984 – Acervo Grupo de Teatro do SESC Caruaru

O teatro pernambucano já se vangloriou de ser o terceiro em produção no país, lá pela segunda metade do século 20. A historiografia teatral brasileira nunca prestou muito atenção em mais esse orgulho nordestino e sempre concentrou no Sudeste –Rio e São Paulo, principalmente – o mérito da trajetória do teatro brasileiro, suas conquistas, modernização, desconstrução. São campos de disputa constantes e os mais fortes (economicamente, politicamente, de articulação) deixaram suas marcas e seus livros. Esse cenário vem mudando nos últimos anos, graças a muitas mãos e muitas vontades.

Um lançamento duplo, que contempla o teatro na capital e no interior de Pernambuco coloca mais duas obras na prateleira dessa biblioteca, que ainda tem muito para contar. O Teatro no Recife da Década de 1930: outros significados à sua história, do jornalista, crítico e pesquisador teatral Leidson Ferraz e Grupo de Teatro do SESC Caruaru – Fazendo e Aprendendo, organizado pelos artistas Severino Florêncio, Moisés Gonçalves, Josinaldo Venâncio e Maylson Ricardo são dois livros que o Selo editorial do SESC Pernambuco, com apoio da CEPE, lança nesta segunda-feira (20 de dezembro de 2021), a partir das 19h, no hall do SESC Santo Amaro, no Recife, com show da cantora Andréia Luiza.

Leidson Ferraz, autor de vários títulos sobre a memória dessa arte em Pernambuco, é uma figura de destaque na recuperação desse caminho. Pesquisador incansável, organizou os quatro volumes da coleção Memórias da Cena Pernambucana. Atualmente é Doutorando em Artes Cênicas na UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

A década de 1930, tão repleta de reviravoltas políticas e deslocamentos regionais de poder, sofreu no que se refere as artes cênicas uma desvalorização. O estudo do período foi sua dissertação de mestrado em história na UFPE. Ele mergulhou em arquivos esquecidos para resgatar alguns desses episódios. No livro, Leidson mapeia peças, e atuações de grupos e artistas independentes nos teatros do centro Recife e dos bairros de subúrbio, chamados “arrabaldes”. Explora as características da cena da época, ocupada principalmente por comédias, burletas e operetas.

Trajetórias do Grupo Gente Nossa e do Grêmio Familiar Madalenense (liderado pelos Irmãos Valença), ou de artistas como Samuel Campello, Elpídio Câmara, Barreto Júnior, Lenita Lopes e Valdemar de Oliveira, entre outros, estão no foco da pesquisa. Mas a obra “busca ir além do discurso que ocupa posição dominante no campo historiográfico nacional, sempre a abordar o ‘modo antigo’ de se fazer teatro em suas tão depreciadas contradições”.

Para isso, Ferraz trabalhou com as ideias de campo e capital simbólico do sociólogo Pierre Bourdieu, que iluminam os espaços ocupados, suas hierarquias e lutas internas.

O design do livro é assinado por Claudio Lira e traz imagens raras, de críticos, artistas nacionais e internacionais que estiveram no Recife, como Clara Weiss, Procópio Ferreira, Jayme Costa, Alda Garrido e Dulcina de Moraes, e técnicos daquele período, além de uma descrição pormenorizada do repertório e ficha apresentados por companhias locais e visitantes na década de 1930.

O teatro no interior

Severino Florêncio, Moisés Gonçalves, Josinaldo Venâncio e Maylson Ricardo, atuam na equipe de Cultura do SESC Caruaru e conhecem muito bem os meandros desse grupo, fundado em 1980, pelo ator, diretor e professor teatral Severino Florêncio, com o espetáculo de criação coletiva Fuga de Lampião.

O coletivo se tornou uma escola de formação de artistas e técnicos importante cena teatral em Caruaru e na região. O livro traça um paralelo entre o grupo e o Teatro caruaruense; aponta as montagens exibidas nos dois teatros da cidade (o Rui Limeira Rosal, do SESC, e o João Lyra Filho, da municipalidade); traz as participações em festivais pelo Brasil e reconhecimentos de premiação.

O livro Grupo de Teatro do SESC Caruaru – Fazendo e Aprendendo tem prefácio de José Manoel Sobrinho, diretor teatral e gestor cultural com experiências no SESC e em órgãos públicos da Cultura, que atesta que os autores “amplificam as experiências e vivências da trupe, disseminam parte relevante dos saberes construídos e dão amplitude para as novas gerações entenderem a força e o papel significativo que o teatro teve e tem para uma cidade da dimensão de Caruaru”. O design também é de Claudio Lira,

Cada livro custa R$ 40 (quarenta reais). A coordenação editorial do SESC Pernambuco é do Gerente de Cultural da instituição, Rudimar Constâncio. O selo á publicou 34 livros.
O SESC Santo Amaro fica na Rua Treze de Maio, 455, Santo Amaro.

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Peça “Quanto mais eu vou, eu fico” rejeita a caricatura do Nordeste único, atrasado e miserável

Quanto mais eu vou, eu fico faz uma live especial neste 29 de abril, às 20h, no canal do grupo no Youtube.

Preconceitos velados e explícitos serviram de disparadores para o trabalho

Elenco compõe um mosaico de personagens

Busca por trabalho, melhores condições de vida, reconhecimento são motivações para migrações do nordestino para a região Sudeste. A concentração dos conglomerados de televisão, produtoras de cinema e de publicidade, além de uma oferta substanciosa de cursos de formação tem sido um chamariz quase irresistível para muitos jovens. Às vezes dá certo. Quanto mais eu vou, eu fico, aborda esse desejo de duas atrizes pernambucanas, Endi Vasconcelos e Maria Laura Catão, (na temporada presencial eram três), que seguiram para o Rio de Janeiro para investir na carreira artística. Neste 29 de abril a peça é exibida no canal do grupo no youtube .

Relatos reais são misturados à ficção na peça que expõe os investimentos emocionais, obstáculos, expectativas das artistas numa jornada de ida e volta, com música, dança e humor. O trabalho busca acentuar a existência de um Nordeste contemporâneo, descolado da caricatura de terra rachada, seca, pobreza, fome, tons pastéis.

O Nordeste não é só isso, elas defendem no espetáculo, repercutindo os versos irônicos do cantor cearense Belchior (1946 – 2017): Nordeste é uma ficção! / Nordeste nunca houve! … Não sou do sertão dos ofendidos!”

As intérpretes foram em busca de sonho no Sudeste, mas não em paus de arara, como ocorreu com migrantes nordestinos pobres em décadas passadas, mas se deslocaram em aviões, nutrindo as redes sociais com suas experiências registradas em imagens de seus smartphones .

A direção geral do espetáculo é de Samuel Santos, a direção musical de Juliano Holanda, com músicas de Thiago Martins e Zé Barreto, canção inédita Cinemascópio, de Marcello Rangel, do disco Quanto mais eu vou, eu fico (que dá nome à peça), dramaturgia de Gleison Nascimento e direção de movimento de Hélder Vasconcelos.

Quando mais eu vou, eu fico é uma idealização do Grupo Bubuia, tem apoio da Lei Aldir Blanc, com gravação no Teatro Luiz Mendonça, em Boa Viagem, no Recife.

SERVIÇO
Espetáculo Quanto mais eu vou, eu fico
Quando: 29 de abril (quinta-feira), 20h
Onde: https://cutt.ly/kvpXgD8
Instagram: @bubuiacia

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