O espetáculo Galvarino é carne viva. De lembranças e vácuos de informação, e de indignação de uma pequena família chilena, de etnia mapuche, pelo descaso político do governo. Gente pobre e anônima é vítima da omissão e arrogância dos poderosos em todo mundo. Mas nesse caso, o teatro dá uma dimensão universal ao drama familiar. Galvarino Ancamil, que dá título à peça fez um exílio voluntário na época do golpe de Estado no Chile e vivia na Rússia desde o início dos anos 1970.
Trocava poucas cartas com a família, mas quando a correspondência cessou – depois da derrocada do comunismo, a irmã Marisol Ancamil pediu ajuda ao Ministério das Relações Exteriores do governo chileno para localizar o irmão. Silêncio das autoridades e insistência da personagem.
Ficamos sabendo depois que um grupo de neonazistas exterminou o chileno de origem indígena, nas cercanias de Moscou, em 1993.
É sobre essa ausência que fala a montagem da Compañia Teatro Kimen, de Santiago.
A diretora do espetáculo, Paula González Seguel (sobrinha de Marisol Ancamil,) é quem interpreta a irmã de Galvarino.
Com Galvarino, Paula fecha uma trilogia de “teatro documental”. Antes, ela dirigiu Ni pu tremem – Mis antepassados (2008) e Território descuajado – Testimonio de um pais mestizo (2010).
O teórico Patrice Pavis define Teatro Documentário como “Teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo”
O espetáculo do grupo Kimen faz parte de uma corrente, não necessariamente ordenada, de um teatro anti-mainstream. É um um teatro militante a partir de drama pessoal. De caráter politizado, de denúncia.
Galvarino conta uma história a partir de uma micro-perspectiva privada. Borra barreiras entre realidade e ficção. E ao revisitar o episódio da história de sua família no palco, a encenadora e atriz atesta na cena que a verdade é relativa e pode ser manipulada.
Com vestimenta teatral, esse passado ganha uma poderosa capacidade de reinterpretacão. A experiência dolorosa é transformada em linguagem artística.
O cenário do espetáculo é composto de uma cozinha/sala de jantar de uma casa pobre. Os três personagens aparecem, falam pouco entre si. É um tempo de espera. A notícia da morte de Galvarino ainda não chegou. Na cozinha, a mãe (a atriz Elza Quinchaleo) depena uma galinha e prepara um caldo. A filha põe a mesa e Luis Seguel, que é o pai, interpreta o pai.
O tempo corre devagar, com o ar tenso, e as três figuras desenvolvem pequenas atividades caseiras. Há uma singeleza da dor da perda que nos atinge.
Quando a protagonista escreve as cartas, elas são mostradas numa tela. O silêncio dos dois outros personagens é gritante.
A música mapuche imprime uma dimensão de ancestralidade aquele encontro familiar. Marisol Ancamil apoxima-se de Antigone, quando exige do governo que faço o que for preciso para devolver o corpo do irmão morto. Seu discurso explode de sofrimento e revolta, na posição de impotência diante das autoridades que não cumprem seu papel público.
* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo