Arquivo da tag: teatro digital

Andanças de uma mulher que foi à luta
Crítica de Penélope

Pablito Kucarz e Uyara Torrente, vocalista da Banda Mais Bonita da Cidade. Foto: Reprodução do Instagram

Penélope inspira, respira, transpira. Mas como é longo o caminho e incerto o destino. Desta vez, ela não espera pelo retorno de Ulisses, como condenou Homero. Essa mulher foi à luta, mesmo fraturando sentimentos. Ela não é vítima, é senhora de si. Os riscos são enormes. Mas o benefício é estar viva e bulindo.

Penélope é uma performance cênica, ao vivo, pelo Instagram. Mas você pode chamar do que quiser. Ela não liga. Depois de tantas coisas pelas quais passou, essa moça também procura a palavra certa para denominar coisas, emoções, pessoas, a-c-o-n-t-e-c-i-m-e-n-t-o-s.

Esse construto ficcional, com texto vigoroso e delicado de Ligia Souza, criação da diretora Nadja Naira em parceria com Paulo Rosa e Álvaro Antônio, e atuação dos atores Pablito Kucarz e Uyara Torrente (da Banda Mais Bonita da Cidade) está carregado de muitas boas surpresas. Nessa época de oferta farta de experimentos cênico-tecnológicos, encontrar pertinências faz a diferença.

O trabalho consegue criar um ritmo que traduz os tempos da peça, na combinação de telas e enquadramentos, difíceis para a plataforma tão fixa do Instagram. O desenho de luz também é meticuloso. Todo esse aparato técnico potencializa a experiência artística.

 

E seguimos com a nossa “guerreira contemporânea”, controversa, quase uma outsider. Ela saiu no encalço do seu desejo. Viajou. Foi ao estrangeiro na busca do seu interior. Como ocorreu, ocorre, ocorrerá com muitos homens. Luís, por exemplo, do francês Jean-Luc Lagarce, foi e nem de longe se compara a cobrança a ele imposta. Mas ele é homem, alguns dizem/diriam/dirão. “Mas eu sou mulher”, pode retrucar Penélope.

O irmão usa desse clichê. Caberia a ela, como mulher, cuidar da mãe, cuidar do pai. Cobranças e acusações formam um terreno arenoso. Os irmãos estabelecem um diálogo profundo, concretizado em tempos esparsos, de meses ou anos. É difícil esburacar essas camadas. Resgatar afetos.

Como Molly, de Ulisses de Joyce, a “ausência presente” pesa nos movimentos que transpassam o tempo. Os silêncios camuflados nas entrelinhas são tão significativos quanto as palavras. Atravessam as estações das personagens, irmãos, tão próximos, tão distantes, nessa turnê de escuta, quem sabe em busca de cura.

Por trás das ações do mano, na cabeça dele está uma irmãzinha subserviente, que calava e concordava ao desejo masculino. Ela, a irmã, a filha, dá motivos para deslocamentos e inações dos homens da sua família. Na ausência, ela é uma sombra, que não fala, mas é especulada constantemente.

Mas a protagonista ocupa seu lugar de fala. Se revela plenamente. Ela rejeitou papeis, erotização e sexualização de sua figura, desautorizou quem quis transformá-la apenas em beleza, musa, ninfa. Recusou ser adorno para as sensibilidades dos outros.

Não a filha de fulano ou a irmã de sicrano. Mas ela é por si.

O trabalho discute misoginia e sexismo, sem que isso vire um discurso pesado. Tanto tempo, anos já nos separam da obra-prima do gênio de Joyce, mas os desvios dos padrões patriarcais ainda precisam ser repensados. Essa mulher que sai ainda carece se impor em lutas diárias para ser entendida em sua complexidade. O sistema de classe ainda é dominado por homens, que querem dar as regras, mesmo que sob o signo do amor.

Mas o amor também é um aprendizado. Longo, lento, doloroso aprendizado.

A dramaturgia de Penélope, primeira empreitada do selo La Lettre, foi publicada em livreto. A apresentação é da Yolandinha Pollyanna Diniz.

FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia: Ligia Souza
Direção: Nadja Naira
Elenco: Uyara Torrente e Pablito Kucarz
Colaboração: Paulo Rosa e Álvaro Antonio
Produção: Livia Milhomem Sá
Realização: La Lettre

Penélope
Evento online via Instagram
Quando: 26 de setembro de 2020, 20h
Onde: @penelope.lalettre
Quanto: Pague quanto puder, de 20 (+taxa) a 100 (+taxa) pelo Sympla 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,

Quem tem medo de bixa viado frango?

Silvero Pereira apresenta experimento cênico Bixa Viado Frango, no Instagram

BIXA VIADO FRANGO é um título forte, direto, carregado de camadas, defesas da liberdade de ser e dos ataques de uma sociedade preconceituosa, violenta, machista, misógina, patriarcal. O artista Silvero Pereira sentiu na própria carne o impacto dessa estrutura ainda menino no interior do Ceará. No monólogo online, que estreia pelo Instagram nesta segunda-feira (3), ele alimenta as cenas da memória em fluxo de sua caminhada. Desde a casa da sua infância, a escola, as lembranças das ruas repletas de desejos irresistíveis de um lado, e das agressões veladas ou escancaradas. Da adolescência com suas descobertas juvenis no âmago de uma coletividade opressora aos tempos de pandemia, isolamento e solidão há de tudo um pouco. Como ensinou Carlos Drummond de Andrade em Resíduo, De tudo ficou um pouco / Do meu medo. / Do teu asco. / Dos gritos gagos. Da rosa / ficou um pouco”.

No final do poema, o poeta mineiro pede “Oh abre os vidros de loção / e abafa o insuportável mau cheiro da memória”. Mas Carlos sabe que precisamos encarar de frente os nossos fantasmas. E, por mais terrível que seja a recordação, é preciso elaborar. Quem sabe, voltar muitas vezes.

Na obra BIXA VIADO FRANGO, Silvero resgata vivências relacionadas à sexualidade e gênero, brinca com os afagos e açoites da rede social. A peça estava nos planos do ator há três anos. Mas devido às atuações na TV e no cinema, o plano foi adiado. O último trabalho teatral foi BR-Trans, mas desde 2013 ele não entra numa sala de ensaio como ator de teatro. 

Com duração de 40 minutos, BIXA VIADO FRANGO entrelaça literatura, dramaturgia clássica, histórias autobiográficas, dramaturgia musical, filtros e ferramentas disponíveis nas redes sociais, provocando uma “atmosfera intimista, documental, cênica-virtual e um tanto cinematográfica”.

Depois da terceira apresentação, na quarta-feira (5), Silvero junta os espectadores para um bate-papo.

Essa é a segunda articulação cênico-virtual do ator. Ele atua junto com Gyl Giffony em Metrópole, do escritor Rafael Barbosa. “O teatro do encontro presencial está parado, mas a arte continua em movimento”, aposta Silvero.

No final da tarde desta segunda-feira de estreia, já preparando o ambiente da apresentação, Silvero Pereira conversou por telefone com o Satisfeita, Yolanda?. “Estou aqui em casa, mexendo nos móveis, de um lado pro outro, preparando o cenário”.

Você tinha falado que iria misturar Hamlet com sua história pessoal. É isso?
Esse já é outro projeto. Não é BIXA VIADO FRANGO. Na realidade, o Hamlet com o Belchior e minha história pessoal  é um projeto que vou fazer mais adiante. O BIXA VIADO FRANGO é uma proposta que eu tinha há três anos, um pouco depois do BR-Trans tinha pensado em produzir esse espetáculo, mas acabei entrando na televisão, da televisão fui pro cinema e os últimos três anos não tive oportunidade de voltar para a sala de teatro e ensaiar. Então agora no período da pandemia resolvi resgatar essa história e me dedicar a ela pra produzir.

Como foi buscar nas suas memórias, nas próprias feridas essa construção?
Tenho sempre acreditado na arte como esse lugar coletivo. Muito importante pra mim que a arte não seja somente pessoal. Então todos os meus processos criativos – embora eles passem pela forma como o Silvero indivíduo enxerga as coisas e como essas coisas passaram pelo corpo do Silvero – eu acho muito importante que isso seja percebido em outros corpos e identificado em outros corpos também. Então eu utilizo das minhas experiências, das minhas vivências, mas também faço uma mistura, com outras dramaturgias, de fatos que li nas redes sociais, da literatura, da dramaturgia clássica, contemporânea, da música, da poesia e vou fazendo uma mistura pra que fique diluído o que é do Silvero, o que não é do Silvero, mas pode fazer parte da mesma sociedade excludente, preconceituosa e que muitas pessoas podem se identificar.

Tendo feito um personagem numa novela das nove, que teve muita adesão, você imaginou que de alguma forma as pessoas fossem te respeitar mais?
Não acho que isso tenha acontecido por conta da novela. O que acontece é que as pessoas passaram a conhecer mais o Silvero. A bolha que eu fazia parte antes da novela, que eu fazia do teatro, se tornou maior. Uma coisa importante aí é que mesmo dentro da televisão nunca abri mão dos meus princípios e daquilo que sempre quis ser. Então não é uma surpresa para as pessoas o meu comportamento, a minha maneira de ser . O que mudou foi a quantidade de pessoas que hoje me conhecem.

Como você lida com preconceito e discurso de ódio nas suas próprias redes? Isso aumentou na pandemia?
Aumentou muito. Não apenas pelo fato de estarmos dentro de casa mais atentos às redes sociais, mas também por uma questão política mesmo. As pessoas estão mais violentas e defensoras de algo que acho meio difícil de ser defendido. Mas as pessoas têm se sentido autorizadas a violentar as outras. E eu acho que isso cresceu bastante e isso vai crescer ainda mais, por conta dessa autorização político institucional que tem sido dada. Isso é o que mais me preocupa.

Quais foram os procedimentos de criação deste espetáculo durante a pandemia?
Eu tinha feito uma experiência anterior, Metrópole, com o Gyl Giffony, outro parceiro meu. Fiquei dentro de casa me perguntando como continuar vivo, como manter a arte em movimento embora o teatro esteja parado, o teatro físico. Mas como manter a minha necessidade de ser artista viva, em movimento. Então fiz esse desafio para o meu colega e falei vamos fazer uma experiência o mais próxima possível do teatro. Ou seja, abrir uma sala privada, onde as pessoas pudessem adquirir os ingressos e tratar isso como uma experiência teatral. Você compra seu ingresso, entra na sala, tem dez minutos de espera em blackout, a peça começa e os comentários são desligados e só depois que termina a peça é que os comentários são ligados e você pode ter uma interação com o artista . Só que o Metrópole é uma adaptação de uma peça de 2012 para plataforma. O BIXA, VIADO FRANGO faz o movimento inverso. Eu não tinha estreado essa peça ainda e, na pandemia, comecei a escrever para a plataforma, então ela já foi pensada a partir dos elementos que a plataforma me oferece.

Você tem algum sopro de otimismo diante de tudo que estamos vivendo?
Tenho, tenho sim. Pelo menos eu espero que as pessoas estejam refletindo mais sobre suas individualidades e coletividade. E que isso possa fazer uma grande mudança. Eu tenho esse sentimento positivo , embora minha esperança não seja tão forte de que a gente saia mais solidário de tudo isso. Tenho uma grande preocupação que a gente saia ainda mais individual, porque percebo no nosso entorno que existe também agora a coisa de se distanciar das pessoas. Acho que as pessoas não podem confundir distanciar-se hoje por segurança e não internalizarem isso para futuramente o distanciamento ser mais um elemento estrutural que nossa sociedade tende a fazer e também se distanciar das pessoas não mais por necessidade de segurança e sim por individualismo.

O que você viu de teatro digital nesta quarentena?
Eu vi algumas experiências, do Recife, do pessoal do Magiluth, do Clowns de Shakespeare, de Natal; do Pavilhão da Magnólia do Ceará. Tenho assistido alguns.

Como está sendo este período para você? Como está se virando para cuidar da cabeça?
Estou sozinho na quarentena. Hoje é um dia bem delicado pra mim porque essa coisa de produzir uma peça virtual…. eu opero o som, a luz, eu mudo o cenário, estou atuando e estou dirigindo a peça , escrevo a peça, faço a edição dos vídeos que eu quero colocar. Tudo isso mexendo numa televisão, num tablet, no celular e nos outros equipamentos que estão dentro da minha casa. Não tem ninguém dentro de casa comigo, só eu fazendo sozinho. Mas isso é interessante. Eu aprendi muito no teatro que nós precisamos ser donos do nosso ofício, ter um conhecimento básico para lidar com os profissionais dessas áreas. Então isso já me deixa mais feliz. Tem dias bons e tem dias ruins, tem dias que não estou muito feliz, que tenho ficado depressivo e nesses dias eu procuro as minhas forças na natureza. Abro a minha casa… sou muito ligado à natureza, à religião de candomblé, de umbanda. Não tenho uma religião certa. Mas tenho uma ligação muito forte com a religião de matriz africana. E aí abro minha casa, borrifo ervas, faço meus cânticos, faço minhas meditações e com isso me sinto um pouco melhor.

Serviço:
BIXA VIADO FRANGO
Quando: 3, 4 e 5 de agosto, às 20h
Onde: Via Instagram, no perfil @sala_de_espetaculos
Ingressos: R$ 10 (à venda pelo Sympla / Bixa Viado Frango)

Postado com as tags: , , , ,