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“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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A luta continua
Crítica do espetáculo Antígona na Amazônia
Festival d’Avignon

Antígona na Amazônia. Montagem de Milo Rau. KAy Sara na tela e Frederico Araujo no palco. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Milo Rau, de boné do MST, orienta a reencenação. Foto Philipp Lichterbeck / Divulgação

Pablo Casella ao violão e Frederico Araujo no chão do palco; na tela, Gracinha Donato, Frederico Araujo, Coro e Celia Maracajá. Foto Cristophe Raynaud de Lage / Divulgação

Antigone in the Amazon (Antígona na Amazônia), do diretor suíço Milo Rau, escancara para o mundo a violência extrema praticada contra as populações indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam pelo seu direito à terra no Pará, e no Brasil. A peça reforça, da perspectiva de quem pensa o presente-futuro do planeta, a urgência de ações contra a desflorestação desse “pulmão do mundo”, onde o capitalismo devora a natureza. Ou como pontuou a atriz e ativista Maria Raimunda, numa conversa no Festival d’Avignon, as forças conservadoras matam gente, rio, animais, árvores, floresta, com a mesma crueldade.

Para falar dessa situação brasileira (e é bom que se pontue, ferozmente agravada nos quatro anos do desgoverno Bolsonaro [2018-2022], o pior presidente que o Brasil já teve), Antígona na Amazônia cruza a ficção da tragédia de Sófocles Antígona com o real do  episódio sangrento do Massacre do Eldorado dos Carajás (ocorrido em 1996), a resistência exemplar do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que reúne cerca de 500 mil militantes), a atuação de ativistas indígenas e negros e a questão amazônica com suas implicações. O quadro cênico é impactante, ambicioso e emocionante.

Essa releitura de Antígona se dispõe em resistência, reverberando vozes e fatos. Se faz teatro de carne, sangue, ossos, coração porque adota o ponto de vista da militância, da sabedoria amazônica, da trajetória de lutas. A causa dos trabalhares rurais, dos sufocados pelo capitalismo selvagem ganham o primeiro plano. Com isso, Milo Rau afasta a possibilidade de se projetar como figura do salvador branco, como pareceu pender em outras montagens.    

Coro inclui sobreviventes da chacina (de chapéu, à esquerda Maria Zelzuita que faz um relato comovente na parte gravada da peça) e integrantes do MST de todo o Brasil. Foto Philipp Lichterbeck / NTGent / Divulgação

Foi o MST que fez a proposta do trabalho cênico a Milo Rau em 2019, quando ele esteve no Brasil. Talvez pela trajetória do encenador, do ativismo no teatro, de encarar temas complexos, provocantes ou explosivos. Juntos escolheram conectar Antígona com a chacina de Eldorado dos Carajás. Rau tendo no horizonte um princípio do Manifesto Gent, redigido por ele em 2018, de não apenas imaginar o mundo, mas de mudar esse mundo. Os trabalhadores, os indígenas, carregando no corpo o combate de invasões e colonizações.

Produção de despedida de Rau à frente NTGent, pois ele agora passa a ocupar em Viena a função de diretor artístico do Wiener Festwochen, Antígona na Amazônia estreou em 13 de maio de 2023, no Teatro NTGent, na cidade de Gante [Gent, em holandês], na região de Flandres, a parte da Bélgica que fala holandês. A montagem foi aplaudida efusivamente no Festival d’Avignon e tem apresentações agendadas em vários países europeus até pelo menos junho de 2024. A previsão inicial era de estrear em 2020, mas o mundo parou com a pandemia da Covid 19. E todos nós sabemos bem o que se passou.

O espetáculo fecha a Trilogia dos Mitos Antigos, de Rau, formada por Orestes em Mossul, de 2019 (uma adaptação de fragmentos da Oresteia, de Ésquilo, produzida e filmada no Iraque arrasado pela guerra); e O Novo Evangelho, um filme de 2020, inspirado na vida de Jesus, tendo entre os participantes refugiados de um acampamento na Itália.

Milo tem no currículo a releitura de eventos reais levados ao palco, como fez também com Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie (2020) [nossa crítica das peças] trabalhos em que utiliza como procedimento o relato do processo criativo, filmagens e a convocação para refletir sobre questões controversas.

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie. Foto: kurt van der elst / Divulgação

Os brasileiros Pablo Casella e Frederico Araujo e dois integrantes do Teatro NTGent, da Bélgica, Sara De Bosschere e Arne De Tremerie se ocupam de todos os papeis na cena presencial. O elenco já está no palco quando nós, do público, entramos para Antígona na Amazônia. O músico/ator Casella toca violão. Os três intérpretes estão sentados ou mexem em qualquer coisa. Tem um cabide de roupa de um lado e instrumentos musicais do outro. Os telões não ficam expostos o tempo todo, como em outras peças de Milo Rau, eles são acionados em alguns momentos para exibição do material gravado.

O quarteto enfatiza no prólogo, – e explica em intervalos regulares -, a importância da luta política do MST, o ativismo e a resistência da população indígena do Brasil, o sistema artístico da montagem e traça vínculos com a vida de cada um etc. O palco das apresentações está coberto de terra avermelhada.

O teatro de Milo busca juntar arte e ativismo. Em Antígona na Amazônia recebemos junto com o programa a Declaração de 13 de Maio, um manifesto contra a destruição da floresta amazônica e a “lavagem verde neoliberal”. Seus principais pontos são a auditoria imediata dos selos (“rotulagem fraudulenta que perpetua a ficção neoliberal de uma produção industrial ‘sustentável”); o boicote contra todas as empresas envolvidas (a exemplo da Ferrero, Nestlé, Danone, Unilever, cujos produtos estão impregnados por “violações dos direitos humanos, roubo de terras e destruição do mundo vivo/da natureza na América Latina, mas também na Ásia ou na África”, sendo a Agropalma e seus clientes “os exemplos mais cínicos de um sistema global”); defesa incondicional de uma agricultura independente e a mudança radical do sistema. Aqui link com acesso ao PDF para download de versões da declaração em Inglês, francês, holandês, alemão e português

“O caso de um conglomerado brasileiro de óleo de palma – a Agropalma – mostra, de forma drástica, como funciona o sistema da destruição, da supressão de direitos e da exploração. Já há anos, a Agropalma vem sendo acusada de roubo de terras (grilagem), violação de direitos humanos e de condições de trabalho ruins por pessoas que vivem nas suas áreas de cultivo. Tribunais brasileiros já revogaram mais da metade de títulos de propriedade da Agropalma em virtude de comércio ilegal de terras e estelionato.

Mesmo assim, a Agropalma, até hoje, tem certificação atestada por mais de dez selos internacionais. Dentre os clientes do óleo de palma que ela vende, estão dezenas de conglomerados alimentícios como a Ferrero, a Danone e a Nestlé. Da petição de “Salve a Selva” sobre a enganação dos selos no caso da Agropalma ”Amazônia: Grilagem e violência por causa de óleo de palma orgânico, com comércio justo e sustentável“ já estão participaram mais de 75.000 pessoas.”

Campanha conjunta de “Salve a Selva” contra o greenwashing perpetrado pela indústria agrária e alimentícia.

Com Antígona na Amazônia várias ações já foram iniciadas. São células que amplificam esse teatro e esse ativismo político. Veja o vídeo O amanhã não está à venda.

“Um grito de vingança e salvação: é o que os ativistas de arte da ‘Declaração de 13 de maio’ chamam de sua música entre agitprop, batidas latinas e hip-hop de protesto. A primeira canção dos artistas, unindo músicos e cidadãos da América Latina e da Europa, é um apelo à resistência contra o greenwashing e o desmatamento – uma luta alegre pelo futuro de todos nós! Vamos resistir contra o cinismo sangrento e as doces mentiras das grandes empresas de alimentos: Destrua o que te destrói!”
“O amanhã não está à venda”

O clima de resistência já está instalado no lobby do teatro, com banners com frases-convocação para a luta e imagens da montagem. Esse material exposto na antessala funciona como ativador de emoções.

O espetáculo lança as pontes entre a tragédia antiga e a luta dos trabalhadores. No início da encenação um ator faz analogias entre a guerra civil em Antígona e o que acontece como guerra civil no Brasil. A desobediência civil da protagonista de Sófocles é vinculada à campanha de ocupação do MST e os dados de um passado recente do país são misturados com as experiências pessoais dos atores contadas no palco. Bem, já disse que os artista falam de si, mas é para pontuar o movimento de repetição.

Na tragédia de Sófocles, Polinices e Etéocles, (irmãos de Antígona e Ismene, os quatro filhos de Édipo, rei de Tebas), se matam literalmente pelo poder. Creonte, tio do quarteto – irmão de Jocasta, esposa-mãe de Édipo – toma para si o poder, e com sua autoridade baixa uma ordem para ninguém sepultar o corpo de Polinices, enquanto dá honrarias fúnebres ao outro. Antígona não aceita o que entende por arbitrariedade e desrespeito às leis divinas, e se insurge contra a determinação, mesmo sob a ameaça de morte.

Antígona vibra em resistência. A violência em Antígona ocorre majoritariamente fora do palco. A versão de Milo Rau encena a violência no palco e reconstitui a chacina em vídeo.

Como a “adaptação literal dos clássicos” está proibida como princípio daquele Manifesto de Gent, Antígona sozinha não seria possível.

Mas o diretor toma a forma dramatúrgica do texto original de Sófocles, com um prólogo, cinco atos (Ismene x Antígona, Antígona x Creonte, Hâimon x Creonte, profecia de Tirésias, Morte de Eurídice e sua maldição sobre Creonte) e um epílogo.

A tragédia de Sófocles termina com a morte de Antígona, Hâimon e Eurídice, e a partida de Creonte para o exílio, deixando Tebas em desgraça. Em Antígona na Amazônia há um sexto ato, diferente.

Reencenação da chacina. Foto: Kurt van der Elst – NTGent / Divulgação

Uma das principais cenas da peça Antígona na Amazônia é a reencenação do massacre de Eldorado do Carajás, gravada no dia 17 de abril de 2023, quando a chacina completou 27 anos, na Rodovia PA-150 (atual BR-155), na curva do S, com cerca de 300 militantes do MST e outros colaboradores.

Em 1996, uma marcha pacífica com participação de indígenas e membros do MST seguia por essa estrada quando a força repressiva da polícia do Pará interviu com violência, deixando 21 mortos (oficiais), 19 no local, outros dois nos dias seguintes no hospital em decorrência da ação truculenta. Mas existe uma suspeita de outros corpos desaparecidos em decorrência dessa ação. 

Todos os anos é realizada uma cerimônia em memória desses mortos. Mas por ordem de alguma autoridade, a representação da manifestação neste ano foi primeiramente proibida, e essa célula vital da montagem quase não aconteceu. Maria Raimunda militante do MST no Pará, responsável pela cultura do movimento e que participa da peça, conseguiu convencer os policiais de que aquele teatro também era uma luta por eles. E a magia do teatro se fez. Tudo é filmado. A chegada do carro da polícia, a conversa de Maria, a reação dos guardas vendo a simulação do desempenho de seus pares 27 anos antes.

Sara De Bosschere e Arne De Tremerie na função de policiais. Foto: Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

Arne De Tremerie em plano grande na telona. Foto Kurt van der Elst-NTGent / Divulgação

A atriz Sara De Bosschere e o ator Arne De Tremerie vestidos com o uniforme atuam como policiais também no palco. As cenas produzidas são fortes, expõem a brutalidade contra os ativistas, mas deixam espaço para mostrar que é uma encenação. Mesmo sabendo que é teatro, a ação é muito chocante e perturbadora.

Essa reconstituição filmada no Pará no dia de aniversário do massacre é duplicada com a encenação de violência também no palco ao vivo, propondo um diálogo pulsante entre a tragédia grega, as memórias das tragédias brasileiras – a de Eldorado dos Carajás e outras, a vivência dos envolvidos no projeto.

Na sala do teatro, os quatro atores que atuam presencialmente dialogam com as imagens gravadas, repetindo gestos, expandindo propostas, interagindo. Eles narram as cenas, falam de si e do episódio focalizado, assumem papeis de Antígona; Creonte; Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona; o músico-narrador. Fazem ziguezagues na linha do tempo.

 

Crianças de uma aldeia. Foto: Moritz-von-Dugern / Divulgaçao

Araujo na pele do militante Oziel Alves Pereira, que enfrenta a policia e é assassinado . Foto Divulgação

Arne De Tremerie presencial e no vídeo com Sara De Bosschere. Tecnologia permite um diálogo preciso. 

No jogo do teatro direto e o que chega pelas imagens filmadas, os atores descrevem a gênese do projeto, o workshop do MST em 2020 com agricultores, outros profissionais e sobreviventes do massacre. Mas também são exibidas as gravações em aldeias indígenas, reservas florestais assentamentos do MST, em cenas cotidianas, algumas com a presença dos estrangeiros.

Numa cena em que alguns indígenas pintam o corpo e riem e mexem no celular e quase sentimos o cheiro da floresta, o estrangeiro fala fala fala e elas se viram para ele para dizer que não entendem nada do que ele diz. Fazer esse giro em torno da ideia de colonização é sensacional.

De Tremerie em outro momento reflete sobre a experiência de estar numa aldeia amazônica longínqua, ele enquanto homem branco europeu, e que poderia ser tomado por “um complexo de culpa disfarçado de ativismo.” É para continuar pensando. 

O dispositivo cênico garante o diálogo entre tantas instâncias. E permite um fluxo na peça que corre entre inglês, português, tucano, flamengo e francês, com legendas em francês e inglês e aparelho para linguagem de sinais.

A sincronização é precisa e produz efeitos admiráveis, que viabilizam que os atores da cena ao vivo conversem com o elenco das gravações. É a tecnologia.

Esses mecanismos e essas escolhas permitem, por exemplo, que Frederico Araujo interpreta um jovem ativista do MST – Oziel Alves Pereira que será espancado até a morte –, Antígona, Polinices um dos filhos de Édipo e, um elemento da repressão e ele mesmo, o ator. Em algum momento ele verbaliza em cena que “no Brasil, quando se é preto, LGBTQIA+ pode-se morrer a qualquer momento, por isso é que eu estou feliz por morrer somente no palco”.

Antigona (Kay Sara), e seu irmão Polinices (Frederico Araujo); Foto: Mortiz Von Dungern / Divulgação

Kay Sara, a atriz ativista indígena – das etnias Tariana e Tukano, de Lauaretê, pequena comunidade do Amazonas, fronteira com a Colômbia – anunciada como a intérprete de Antígona aparece somente nas gravações, nas filmagens, na tela. Ela desistiu do papel-título três dias antes da estreia mundial da peça e voltou para casa no Brasil, no dia 10 de maio.

Nessa sessão inaugural da peça , na Bélgica, os atores explicaram ao público sobre a ausência de Kay Sara, que ela nunca se sentiu confortável na Europa e partiu para ficar com o seu povo. Essa irrupção do real é desconcertante como um drible de craque. Uma ausência que pulsa na cena. É uma recusa ao capitalismo que afirmação de sua subjetividade e identidade. Sua desistência ecoa, vibra cria horizontes para um teatro maior.

Em entrevista ao jornal francês Liberation, Milo Rau explicou as possíveis causas: “Kay Sara não tomou sua decisão por capricho. Ela vinha nos alertando há meses que essa primeira vez no palco seria também sua última aparição diante de um público não-indígena. Subestimamos os constrangimentos da longuíssima turnê de vários anos, que a teria levado a viajar muito para fora da Amazônia, local de sua luta”. O diretor entende que a motivação é duplamente política: Kay Sara não quer ser “fetichizada”.

Kay é uma atriz que já tem um currículo no cinema e nos streamings. Na Antígona na Amazônia, ela participou do processo e das filmagens. Quando o trabalho foi paralisado em 2020, devido à epidemia da Covid, a artista indígena gravou um vídeo com o discurso This madness must stop (Essa loucura tem que acabar), com enorme repercussão entre o público do festival de Viena, onde a gravação foi projetada.

Discurso de Kay Sara por ocasião da abertura do Wiener Festwochen, em 2020, 

 
 
 
 

Kay Sara na tela e Araujo no palco Foto: Kurt van der Elst /NTGent / Divulgação

E como fica essa ausência-presença na cena? Milo Rau engenhosamente incorporou a situação como dinâmica de sua dramaturgia. Araujo substitui Kay no palco. E isso pode criar ruídos ou acréscimos, depende do repertório de quem recebe. Em uma cena, Sara aparece grande na tela e há uma colaboração, complementação ou sobreposição de outro corpo visado pelas atrocidades que vêm de longe.

Uma cena especialmente forte é quando Antígona de Kay descobre que o seu trabalho de enterrar seu irmão, Polinices de Frederico, foi desfeito e ela se encoleriza. A cena se passa na tela, Sara está com seu vestido vermelho. Araujo no palco também chega ao desespero. Ambos gritam e se revoltam contra a injustiça. Nos movimentos de exasperação, o ator jogo terra para o alto e para a plateia. Como eu estava na segunda fila, senti o a fúria da terra lançada.

Celia Maracajá no papel de Eurípedes. Foto: Moritz Von Dungern / Divulgação

Filósofo indígena Ailton Krenak, em vídeo, como o sábio Tirésias. Foto Divulgação,

Outras figuras centrais da tragédia de Sófocles, com Ismene, irmã de Antígona, só aparecem na tela. Ismene é interpretada pela militante negra Gracinha Donato, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Célia Maracajá atriz e cineasta, uma das percussoras da produção audiovisual indígena no estado do Pará, e com participações em montagens dos teatros Oficina e Arena, faz Eurídice, mãe de Hêmon e esposa de Creonte.

Liderança histórica no movimento indígena, crítico do sistema capitalista e do eurocentrismo, o filósofo Ailton Krenak faz uma curta participação (e gigante contribuição) em vídeo como o sábio Tirésias, a voz que aconselha e alerta sobre a situação do planeta e avisa a Creonte que sua loucura vai lhe levar  à ruína.

“Muitos são os monstros mas nada mais monstruoso que o homem” é cantado no início da peça. Os atores ironizam a inteligência humana que surrupia a natureza e provoca tragédias. Praticamente todo o espetáculo corre com a música poderosa e competente de Pablo Casella em primeiro plano ou de fundo. Essa trilha cria os climas emocionais que as imagens apresentam. E talvez por ser tão exuberante fiquei imaginando as camadas e intenções artísticas para produzir esses estados comoventes e como seria a peça sem essa sustentação musical. Penso que tudo é calculado para envolver o espectador, as situações, climas e encaixes. E envolve.

O quarteto do palco joga com muitos estilos de interpretação, do narrativo à dramatização convulsionada, em Frederico Araujo. Pablo abraça o púbico do narrativo ao musical. Há mais contenção no atuar dos dois da Bélgica. Sara De Bosschere como Creonte é uma escolha que pode gerar incômodos na recepção por ela ser mulher no papel do tirano. Em princípio, não vi problema nessas escolhas. Ela assume um Creonte concentrado e de pouca brutalidade nos gestos. Arne De Tremerie, que está em Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza)  de Rau, tem um carisma nas suas atuações. No vídeo, o desempenho ganha com vibração justamente daqueles corpos e o que eles carregam, de história, memória e resistência.

 

O coro na tela e a figura de Creonte , de branco, interpretado por Sara belga. Foto: Divulgação

Maria Zelzuita Oliveira de Araújo faz um relato detalhado da chacina. Foto: Divulgação

Formado por sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás, como Laurindo Ferreira da Costa e militantes do MST de todo o Brasil, a exemplo de Tisiane Kilian, de Santa Catarina, o coro desempenha um papel estruturante na montagem. O coro levanta a voz coletiva, da luta em comum, nas imagens, nos cantos.

Mas também sustenta relatos individuais como de Maria Zelzuita Oliveira de Araújo, sobrevivente da matança e que na reconstituição da cena conta em detalhes o que se passou naquele sombrio 17 de abril. É doloroso até ouvir. Ela lembra a altivez do jovem Uziel, de 17 anos, que foi torturado e morto pela polícia; da repórter Mariza Romão, que fazia a cobertura do movimento e “pediu pelo amor de Deus” para “eles” não invadirem a casa que só tinha mulher e criança (a polícia invadiu), e do seu filho de três anos que disse que a família iria morrer, porque estava lutando por terra para morar.

Ou o canto final do coro que diz “que benção, fazer a prece derradeira, dizer adeus a sua maneira, cada grão de terra sobre o corpo é luz”.

Há algo de esperançar no final da peça de Milo Rau. Talvez para marcar que a luta do MST continua. Ela nunca parou. Pablo Casella diz que é  a magia do teatro. Ter outro desfecho. Trazer os mortos de volta à vida. 

Sara De Bosschere, Frederico Araujo e Arne De Tremerie na cena

Cena da morte do príncipe, filho de Creonte

Antigone in the Amazon (Antigona na Amazônia)

Concepção e encenação Milo Rau
Elenco: Frederico Araujo, Pablo Casella, Sara De Bosschere, Arne De Tremerie
e em vídeo Gracinha Donato, Ailton Krenak, Celia Maracajá, Kay Sara, o coro de ativistas e ativistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

Dramaturgia Giacomo Bisordi
Codramaturgia Martha Kiss Perrone
Colaboração à dramaturgia Kaatje De Geest, Douglas Estevam, Carmen Hornbostel
Cenografia Anton Lukas
Figurinos Gabriela Cherubini, Jo De Visscher, Anton Lukas
Iluminação Dennis Diels
Música Pablo Casella, Elia Rediger
Vídeo Moritz von Dungern, Fernando Nogari, Joris Vertenten
Assistenten de encenação Katelijne Laevens assistida por Carolina Bufolin, Zacharoula Kasaraki, Lotte Mellaerts
Tradução para a legenda Panthea (français), Carolina Bufolin (inglês)
Dispositivo de acessibilidade Panthea
Direção técnica Oliver Houttekiet
Direção de palco Marijn Vlaeminck
Técnica Brecht Beuselinck, Dimitri Devos, Stavros Otis Tarlizos
Produção Klaas Lievens, Gabi Gonçalves (Brasil)

De 16 de Junho de 2023 a 24 Julho 2023, no Festival de Avignon

Produção NTGent

Coprodução International Institute of Political Murder (IIPM), Le Festival d’Avignon, Manchester International Festival, La Villette (Paris), Romaeuropa Festival, Le Tandem Scène nationale d’Arras-Douai, Künstlerhaus Mousonturm (Frankfurt), Équinoxe Scène nationale de Châteauroux, Wiener Festwochen (Viena)

Vídeo de divulgação da peça Antigona na Amazônia

 

 

Tournée :

22 e 23 de setembro de 2023 – Kaserne Basel (Suíça)
3 e 4 de outubro de 2023 – Teatro Argentina no âmbito do Romaeuropa Festival (Itália)
20 de outubro de 2023 – Teatro Polski (Polonia)
De 25 a 28 de outubro de 2023 – Théâtre des Célestins no âmbito do Festival Sens Interdits (Lyon) 
11 e 12 de novembro de 2023 – Culturgest (Portugal)
16 e 17 de novembro de 2023 – Teatro Municipal do Porto (Portugal)
22 e 23 de novembro de 2023 – Centro Cultura Contemporanea Condeduque (Espanha)
28 de novembro de 2023 – Équinoxe Scène nationale de Châteauroux
De 6 a 9 de dezembro de 2023 – La Villette (Paris)
23 e 24 de janeiro de 2024 – Thalia Theater  (Alemanha)
30 de janeiro de 2024 – Stadsschouwburg Brugge  (Bélgica)
7 de fevereiro de 2024 – De Warand, no âmbito do Stilte Festival ( (Bélgica)
De 22 a 25 de fevereiro de 2024 – Schauspielhaus Zürich (Suíça)
1 e 2 de março de 2024 – De Singel-Rode Zaal  (Bélgica)
7, 8 e 9 de março de 2024 – Espoo City Theatre (Finlândia)
De 19 a 22 de junho de 2024 – Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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“Depois de um ato tão violento
não se entende o que é o amor”
Entrevista || Carolina Bianchi

Carolina Bianchi em cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina Bianchi. Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A norte-americana Emilie Dickinson (1830-1886) intrigou e chocou seus contemporâneos com sua poesia “explosiva e espasmódica”. Dickinson é uma das grandes inspirações de arte para a encenadora, atriz, dramaturga e performer Carolina Bianchi. A diretora do coletivo Cara de Cavalo, de São Paulo, com quem criou as peças O Tremor Magnífico (2020), Lobo (2018), Quiero hacer el amor (Quero fazer amor) (2017) e Mata-me de Prazer (2016) recebe os versos de Dickinson como uma “tentativa de elaborar coisas impossíveis, uma dor constante, uma negociação entre a dor e a beleza, que me toca muito”.

Nessa tentativa de elaborar coisas impossíveis, Bianchi encara de frente o monstro, o fantasma, a questão da violência sexual no espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, que estreou no Festival de Avignon, com uma repercussão incrível. O grupo ataca de frente as questões de violência sexual, estupro, feminicídio. E leva à cena de maneira potente a perda de consciência, o apagar da memória, um território borrado, num espetáculo muito rico em camadas.  

Bianchi e o coletivo Cara de Cavalo põem um pé no inferno nessa peça que já no título projeta os dois núcleos da dramaturgia do trabalho. A Noiva é a parte da palestra no espetáculo, em que a atriz compartilha seus estudos sobre o caso de uma artista italiana, Pippa Bacca, que foi estuprada e assassinada durante uma performance, em que estava vestida de noiva.

A outra parte do título, Boa noite Cinderela, é o nome que se usa no Brasil para uma combinação de sedativos colocados nas bebidas das pessoas nas festas; no caso das mulheres, geralmente com o intuito do estupro enquanto estão desacordadas.

Ao tentar elaborar essa violência, o espetáculo busca amparos poéticos em artistas como Dante Alighieri ou o escritor chileno Roberto Bolaño, a partir do seu livro 2666. “O objetivo da peça não é encontrar sentido para essa violência, porque isso é impossível. Mas acredito que o teatro é um campo onde essa repetição pode ser possível através da criação de uma linguagem. Não apenas o depoimento sobre a violência, mas a criação de uma maneira de tocar nesses assuntos, inventar, imaginar”.

Carolina Bianchi. Foto Ivana Moura

Entrevista || Carolina Bianchi

Como você conseguiu furar a bolha e chegar à programação principal do festival de Avignon?

O que acontece é que o Tiago (Rodrigues, diretor do festival a partir desta edição) e Magda (Bizarro) me conhecem há muitos anos. Eles viram meus trabalhos: Lobo (2018) e O Tremor Magnífico (2020). Eu estava fazendo uma residência dentro do Festival Proximamente (no KVS, em Bruxelas) e quando eu abro ao público a primeira parte do trabalho – estava pesquisando essa parte da conferência –, nessa noite, a Magda (que é parceira do Tiago Rodrigues e está trabalhando na curadoria do festival) assiste ao trabalho e essa conversa começa. Isso tem quase dois anos.

Depois, o Tiago assistiu à finalização do meu mestrado na DAS Théâtre, ainda como processo aberto, e essa conversa continua. Então não é uma estratégia. E eu acho isso muito importante de deixar claro. Porque não é um trabalho para que isso aconteça… Foi realmente o trabalho, a pesquisa, uma pesquisa continuada de uma artista que está no corre há muitos anos. Por isso esse espaço se abre, se apresenta como possível.

É uma possibilidade de o trabalho chegar noutros campos.

Sim. Vamos nomear as coisas, vamos nomear estupro, vamos nomear essa violência. E ao nomear isso eu sinto que consigo, quiçá, criar um trabalho que abre um escopo de comunicação muito mais amplo.

Como artista brasileira que não está morando no Brasil, a estreia aqui permite horizontes amplos. Não lembro o último trabalho brasileiro que esteve em Avignon na programação oficial.

Só Christiane Jatahy, que já está em Paris há muitos anos e é associada de vários teatros na França.

Nesse ponto é um gesto muito importante. Nós somos um grupo de teatro independente da  cena de São Paulo, um grupo que não teve apoio institucional em São Paulo em nenhum dos meus últimos trabalhos. Lobo foi feito com crowdfunding (financiamento participativo), Tremor Magnífico foi feito sem nenhum apoio. Estávamos trabalhando num sistema superprecário. O que acontecia é que a gente conseguia juntar um grupo interessado e, no caso de Lobo, isso dava alguma visibilidade. Eu sempre fui uma pessoa comprometida em compartilhar os meus processos através de workshops, a gente fazia girar uma cena de workshops. Eram trabalhos que tinham sempre muita gente ao redor, que estavam sendo feitos continuamente, mas não estavam  sendo sustentados financeiramente. Então é um grupo de teatro independente que vem para um programa da cena principal de Avignon. E acho que isso é alguma coisa.

Lembro que, quando soltaram a programação, recebi muitas mensagens de amigas minhas do Brasil, diretoras, inclusive muitas que foram minhas alunas, dizendo: “Uau! Agora a gente pode sonhar que isso é possível!”. E eu me reconheço nisso, porque não achava que era possível. Uma diretora como eu, que vem de uma família de classe baixa, que tem um monte de gente que está no mesmo corre. A gente só tinha 247 empregos para conseguir fazer o que a gente precisa fazer! Estou falando isso, mas não é para dizer “Vejam como a gente fez um caminho árduo”. Não, não é essa a narrativa, não tem a narrativa heroica. Eu já dizia isso no Brasil. As pessoas falavam: “Mas vocês conseguem se virar, fizeram Lobo com crowdfunding…” e eu respondia: “Vão se fuder! Não exaltem isso. Eu não estou exaltando essa precariedade”. Mas, pra mim, a coisa mais importante é que outras diretoras entendam que espaços como esse são possíveis.

Nessa mudança na direção do festival, Tiago Rodrigues defendia, entre outras coisas, a paridade, e conseguiu por em prática nesta edição. Há uma maioria de mulheres que dirigem espetáculos na programação.

Totalmente. Acho que somado a tudo, há uma mudança na direção para um artista incrível, que é o Tiago Rodrigues, uma pessoa muito sensível, que tem uma relação profunda com o Brasil, com a América Latina. Então muda essa estrutura de ter na programação só espetáculos que são inalcançáveis. Nesse contexto, que acho que tem a ver com questões de classe, mas isso é outro assunto, acho importante que a gente comece a poder estar nesses espaços

Você acha que essa participação em Avignon já deu uma nova direção, um outro rumo para seu trabalho. Já está repercutindo?

Sim, no sentido de que a gente já tem turnês, já tem espaços que estão interessados no projeto. E sobretudo poder trabalhar com dignidade com o meu coletivo. Conhecer, eu diria, como é possível fazer um teatro assim.

O que é fazer um teatro com dignidade? Você está falando economicamente ?

Não só economicamente… quase que psiquicamente. Você começa a ver que o trabalho está gerando retornos. Você vai vendo palpavelmente o que pode acontecer. Isso para mim é inédito.

Saíram críticas bacanas no Le Monde e em muitos jornais e revistas importantes de vários países da Europa.

Isso é inédito. A gente falava isso, no Brasil, não saía nada. A gente ia fazer site e não tinha fortuna crítica. Claro, já sinto que há uma grande mudança. Pra mim, uma das coisas mais lindas era abrir a Folha e ver lá uma crítica da Janaína Leite, minha amiga, e a gente dizia “Alguma coisa está acontecendo”, porque há algum tempo a gente não tinha nem espaço; eram as pessoas de sempre ali, os espaços centrados nos mesmos diretores, então vamos furando esse lugar que, pra mim, é muito importante.

“Como se esse corpo estivesse
sempre tentando se aproximar
tentando desvendar
um enigma impossível.
Então isso é a linguagem”.

Gostaria que você falasse mais sobre linguagem e o desenvolvimento da sua pesquisa sobre feminicídio, feminino e tal. Porque a questão não é o tema, não é assunto, mas a linguagem. O que é a sua linguagem, como você desenvolve essa linguagem e isso entra para mexer com o teatro brasileiro e agora para além?

Esse é um dos meus temas preferidos. Sinto que sou muito obcecada por essa criação. A gente falou na Jana leite e lembro de quando ela foi participar de um debate sobre Lobo – depois de uma apresentação que eu a tinha convidado para ser provocadora dessa conversa – e ela disse que quando ela assistia aos nossos trabalhos, ela sentia que um mundo muito particular era criado. E eu uso essas palavras dela agora para refletir sobre esse mundo particular, como isso opera. O meu desejo de que através do teatro seja possível manifestar algum tipo de invenção, de como esse imaginário se manifesta.

Eu sinto que isso começa a partir da escrita. Estou falando isso porque a minha dramaturgia, a minha escrita, tem uma particularidade de imagens, de como essas imagens vão acontecendo, dessas associações. Acho que esse já seria o primeiro passo. Quando estou compartilhando informações, eu não só compartilho informações, mas tem alguma coisa ali que vai parar dentro de outra coisa, na maneira como escrevo. Por isso o espetáculo tem que ser em português. A gente está rodando com um espetáculo de duas horas e meia, com texto do começo ao fim, onde as pessoas vão ter que ler, e é isso, o espetáculo é em português. Tem uma coisa dessa poética, que vem. Esse é o exercício de linguagem número 1, a escrita. 

E, a partir dessa escrita, como a gente manifesta na cena, junto com a minha companhia Cara de Cavalo, como nós manifestamos na cena – através de práticas que a gente vem desenvolvendo – como a gente se aproxima, como a gente dá corpo, como a gente manifesta essas ideias. É como você falou, não é o assunto, o assunto a gente já sabe, não é isso. A peça para mim é sobre isso, sobre linguagem. Tem essa pergunta: “É possível criar algo que seja tão violento quanto o ato em si?”. A peça é uma tentativa. Como se esse corpo estivesse sempre tentando se aproximar, tentando desvendar um enigma impossível. Sinto que isso é a linguagem.

Poder ter essa cena, onde existe o musical dentro do carro, que está misturada a outras coisas, com esse rasgo do real que é a performance, com esse acúmulo infinito de camadas, isso está conectado com essa criação de uma linguagem.

E você surpreende quem pensa que a peça fica na parte da palestra. Depois vem uma produção complexa, do carro, todas aquelas coisas, a movimentação. Da palestra para a coisa mais representacional e por que você fez essas escolhas?

Eu acho que tem a ver com esse fio dramatúrgico: a palestra era para compartilhar as informações sobre a vida e as histórias dessas artistas. E eu não poderia fazer isso de outra forma. Essas informações precisavam ser compartilhadas. Então, a performance vem como gesto de aproximação dessas histórias de violência. Estou falando de uma performer que foi assassinada (Pippa Bacca); como falar, como me aproximar dessa história? Então também coloco meu corpo em vulnerabilidade para conseguir chegar a essas histórias. Acho que, por outro lado, na segunda parte, o teatro vem reclamar o seu espaço completo; porque depois que você toma o “boa noite cinderela”, para onde nós vamos? A gente vai para o teatro. A gente precisa ir para essa representação alucinante.  Acho que essa era a única maneira que tinha de seguir elaborando. O teatro precisa vir com essa possibilidade de elucubrar, como espaço de sustentação, o teatro precisa sustentar a sequência desse acontecimento. Eu preciso do teatro para tornar possível essa aproximação.

“Esse trabalho tem
que ser árduo num pacto
com o espectador. Nós não
podemos falar de violência
e sair daqui numa
nice”.

 

Você falou que o teatro não é um lugar seguro. E na peça você fala que há um outro tetro que não se arrisca. Gostaria que você desenvolvesse essa ideia do teatro ser um lugar inseguro e dos riscos que você resolve, escolhe e vai por esse caminho. E outra coisa é que você está desbravando, está inventando a cada passo.

Para mim é muito importante dizer – e essa pergunta está dentro do texto da peça, quando falo com o quê o teatro tem que se parecer.  Eu não acho que os teatros tenham que ser iguais, são muitos teatros. E acho que essa é a grande beleza da existência do teatro. Eu sou uma pessoa que ama o teatro. Mas o teatro que estamos fazendo nesse coletivo, nós sim acreditamos que o teatro é o espaço da instabilidade. Se a gente está falando de violência sexual – e acho que estamos sempre falando em nossos trabalhos de alguma maneira disso – o teatro precisa ser um espaço da instabilidade, ele precisa colocar em jogo um trabalho árduo. Encarar isso é um trabalho árduo e esse trabalho não pode ser árduo só para mim, ele tem que ser árduo num pacto com o espectador. Vamos juntos nessa jornada olhar para isso. Nós não podemos falar de violência e sair daqui numa nice.  

Acho que por isso o “Fuck Catharsis”. A gente sabe que esse tipo de experiência não tem cura. Eu sei que esse tipo de experiência não tem cura. Você não vai superar, mas você vai entender, vai ficar olhando para ela e entender: “Ok, como eu faço, quais as minhas ferramentas para entender, como fui lidando com elas ao longo dos anos?”. E, nesse sentido, o teatro, não é que ele precise de riscos, colocar coisas em risco, mas o teatro é um espaço que não é seguro no sentido de que ele precisa atravessar você de alguma maneira, algo precisa se mover, algo precisa acontecer.

Eu não acredito que o teatro vai mudar o mundo, que porque estreei essa peça, 10 mil feminicídios vão acontecer a menos. Isso é uma bobagem, não acredito nisso. Mas acredito que algum movimento pode ser feito, se esses espectadores que estão assistindo à peça saírem um pouco perturbados, isso no próprio corpo, algo aconteceu. Esse algo a gente precisa deixar no mundo, para ver o que acontece depois.

Fuck Catharsis é um conceito?

Sim, mas não um conceito, digamos, teórico. Ele é um conceito da experiência. Num momento em que você vive uma violência sexual,  porque eu sinto assim que tem muito esse papo, eu vejo outras peças que abordam o mesmo tema que adotam muito esse slogan “a vida depois disso, a cura, a superação”. Não tem superação! Fudeu! E aí o grande trabalho da sua vida é dizer “e agora ?”. Aí tem que buscar ferramentas para lidar com a violência. Não é dizer “assim, gente, estou curada do estupro que sofri, tô de boas, a peça me ajudou”. Porque tem muita essa ideia na peça autobiográfica de quando você vai lá e expõe seu problema com o público e o público te aplaude, chora, se pensa, aí Catharsis, pronto, ficou para trás. Não ficou para trás! Todos os dias você vai carregar consigo os efeitos disso. O que começa a acontecer é que você vai encontrando formas de lidar, de articular isso.

Na peça você fala que não existe amor, só ternura. Como é isso?

A sobrevivência à uma violência sexual implica em algo que confunde completamente a linha do tempo. E por isso, claro, é precisa inventar uma maneira de se relacionar com o desejo, com o amor, com as relações pessoais. Nesse sentido, esse amor que não existe na peça é a constatação de que depois de um ato tão violento não se entende o que é o amor. Mas há a ternura, e aí tem outro ponto chave do trabalho que é entender qual o papel da amizade. O espetáculo termina com uma carta a uma amiga. Qual o papel da amizade? Como a amizade pode sustentar, a amizade entre as mulheres sobretudo, essa continuidade, esse seguir vivendo? Por isso o Fuck Catharsis, porque não é cura. A  gente tem que entender o que fazer, articular e descobrir como seguir.

Qual o poder do teatro?

Eu diria que uma das coisas mais importantes do teatro é o seu processo coletivo, a coletivização das coisas, a coletivização das questões, a experiência coletiva. Desde o grupo até o encontro com o público, a experiência de coletivizar algo. Ainda mais no caso de A Noiva e o Boa noite Cinderela, que traz experiências que deveriam ser abafadas, pertencer ao lugar privado; o que significa colocar essas experiências lá, por isso é que é confuso, por isso são essas camadas que quase dão a sensação de que a gente não suporta mais, porque essas histórias vêm como uma avalanche, ela só pode vir assim como uma grande tempestade de merda. Porque não tem como, a gente precisa falar. E aí tem esse grande trabalho aí que é a escuta. Como é que a gente escuta essas histórias, como é que a gente conta?  

Leia a crítica do espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, de Carolina Bianchi e do coletivo Cara de Cavalo.

 

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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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