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É urgente a amazonização dos mundos
Crítica do espetáculo Altamira 2042

Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Foto: Nereu Jr / Divulgação

Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha.

Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências.

A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio.

Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta para a Natureza.

Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas.

Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense).

Foto Nereu Jr

Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento.

Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz mitos amazônicos, como o da mulher-cobra,

A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia.

A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. 

Foto: Nereu Jr

Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos.

Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo.

No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos:

Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos.

Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”.

O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte.

Cena Expandida

Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.

A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno.

Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.

Ficha técnica:
Altamira 2042
Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha
Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral
Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Jimmy Wong
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro
Figurino: Carla Ferraz
Luzes: Cibele Forjaz
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Foto: Nereu Jr.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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