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Sinfonia de silêncios e palavras explosivas
Crítica de Apenas o Fim do Mundo

Bruno Parmera (Suzanne) e Pedro Wagner (Louis), em Apenas o fim do mundo. Foto: Ivana Moura

A proximidade do público cria uma intimidade desconfortável. Foto: Ivana Moura

Durante infindáveis cinco minutos (ou foram cinco horas ou cinco anos), um grupo de desconhecidos (ou quase) e eu, aguardamos pela chegada de Louis (ou Luiz, como queiram), o filho que partiu 12 ou 14 anos antes, e muito pouco ou quase nada enviou de notícias e afetos para a família. Essa espera pensativa aciona as memórias de cada pessoa, mas também de uma cidade, o Recife. Mesmo que o texto original seja francês, o corpo do Magiluth é recifense e isso transpira, ainda mais quando o site specific, o lugar da encenação, é o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), que fica na Rua da Aurora, de frente para o Rio Capibaribe, tendo como fundo a Rua do Sol. As portas abertas, os portões de ferro fechados, mas por onde vemos os carros passarem, ônibus e motos também deixam seus rastros nesse quadro. O registro acústico de fora contrasta com o silêncio cúmplice dos que velam. Ouvimos o fluxo do Capibaribe e sentimos a dramaturgia sonora inicial de uma cidade que quase se esquece do seu centro à noite, em contraste com a expectativa de uma plateia pela personagem, que vem anunciar sua morte próxima.

 A volta de Louis não segue o script do filho pródigo bíblico; talvez convoque outro mito, de Caim e Abel, em que as disputas e ciúmes ativam mágoas antigas. Antoine, o irmão do meio, que permaneceu “em casa”, não suporta imaginar a vida vibrante de Louis mundo afora, tão diferente da sua própria. Esse retorno desavisado acende sentimentos de ofensa, de inveja, algo aquebrantado, intensificando o conflito doméstico. Não há celebração nem abraços calorosos na chegada; vinga a mudez dos segredos de emoções íntimas e as palavras que quando surgem são explosiva ou devastadoras.

O francês Jean-Luc Lagarce escreveu Apenas o fim do mundo – uma obra de sutilezas e que verticaliza a pulsação humana – em 1990, período em que já estava ciente de seu diagnóstico de AIDS, uma condição que, na época, era praticamente uma sentença de morte. Ele continuou a refinar o texto até 1995, ano de sua morte aos 38 anos. Sua peça proporciona uma delicada e impiedosa reflexão sobre a finitude, algo inexorável, e joga desde o seu título (o desaparecimento de alguém não é o fim do mundo) com as ironias dessa experiência que é viver.

Almoço ou jantar em família. Foto Ivana Moura

A musicalidade e o ritmo singular do original francês são alimentados na tradução sensível de Giovana Soar, que articula em português as hesitações e repetições, as pausas e frases inacabadas, bem como o embaraço desses titubeios. Essa tradução captura a tempestade de emoções reprimidas e os rancores abafados, sustentados por anos de distância, criando assim uma verdadeira partitura verbal.

A direção de Giovana Soar e Luiz Fernando Marques (Lubi) transforma o texto desafiador de Lagarce em uma experiência teatral imersiva e sensorial que dura aproximadamente duas horas e meia. Como teatro site-specific, a dupla cria um labirinto emocional nos espaços apresentados que equivale à jornada interna das personagens.

No Mamam, o público – limitado a cerca de 60 pessoas por sessão – é convidado a seguir os atores por diferentes ambientes do museu, ajustado para a peça pela direção de arte de Guilherme Luigi e Lubi. A cada nova cena, somos confrontadas com outra faceta do drama familiar. Nessa cenografia dinâmica e reativa, objetos são desarrumados no decorrer da encenação, mesas se partem durante discussões acaloradas, criando um ambiente caótico que reflete o tumulto interno dessas figuras. 

A proximidade do público, nesse contexto, é uma escolha deliberada da direção. Essa estratégia visa criar uma intimidade desconfortável que espelha e intensifica a paleta de sentimentos de abandono e desemparo que cada personagem carrega. Ao reduzir a distância física, a produção busca envolver os espectadores de maneira mais intensa, permitindo que eles experimentem as emoções complexas e muitas vezes dolorosas que permeiam a narrativa. Essa proximidade favorece uma conexão emocional mais intensa, na qual cada gesto, expressão facial e nuance vocal dos atores são amplificados.

A iluminação apresenta momentos que oscilam entre tons amarelo-sépia, evocativos de lembranças empoeiradas, e azuis etéreos, que sugerem uma realidade quase onírica. A trilha sonora aprofunda o rasgo melancólico, com uma suspensão desse clima na performance rock da banda que se instala no meio da sala.

A banda de rock. Foto: Ivana Moura

Tive a oportunidade de assistir a esta obra teatral quatro vezes: duas no SESC Avenida Paulista, onde estreou em 2019, uma no Mamam no mesmo ano, e agora novamente em 2024, na temporada comemorativa. É gratificante observar o amadurecimento do Magiluth, pois, em termos artísticos, parece ser um processo sempre em construção. Com 20 anos de uma trajetória inspiradora, o grupo reafirma seu compromisso com a arte. Esta peça, tristemente bela, me faz pensar e sentir mais a cada sessão.

A discussão antes da despedida. Foto: Ivana Moura

Embora o texto de Lagarce tenha sido escrito no contexto da “epidemia do HIV/AIDS” no mundo, dos anos 1990, sua montagem no Brasil em 2019 pelo Magiluth (e sua continuação em 2024) ganha outras camadas de sentido no contexto sociopolítico atual. A menção à extinção do departamento de AIDS do Ministério da Saúde pelo governo Bolsonaro, citada no início do espetáculo, estabelece uma ponte entre o drama pessoal de Louis e questões mais amplas de saúde pública e política. Esta conexão sublinha a relevância contínua da obra de Lagarce e a habilidade do Grupo Magiluth em fazer pulsar o político no teatro.

 Catherine (Giordano Castro), encarada por Antoine (Mario Sergio), observado por Louis. Foto: Ivana Moura

Apenas o fim do mundo é uma peça que, perturbadoramente, fala de amor, de forma brutal, desenterrando o que ficou escondido, as recordações, mágoas, ressentimentos e culpas. É uma peça densa e triste, uma beleza melancólica que me toca profundamente.

A vivacidade do jogo físico, característica marcante do grupo, é transposta para o jogo de palavras. O percurso, o deslocamento e a apropriação dos ambientes do Mamam impõem sensações únicas. A conexão com o público está intimamente ligada à experiência de ocupar esses ambientes, potencializada pelo incômodo e desconforto do próprio deslocamento. A visão é fragmentada, variando conforme o ponto de observação.

Essa fragmentação do olhar da plateia projeta as perspectivas diferenciadas de cada personagem, motivadas pela partida de Louis. Assim como o público percebe a cena de maneira parcial, dependendo de sua localização, cada personagem também possui uma visão limitada e subjetiva dos eventos, influenciada por suas emoções e experiências pessoais.

Pedro Wagner no papel de Louis. Foto: Ivana Moura

Em Apenas o fim do mundo, o Grupo Magiluth cria um ensemble afinado. Pedro Wagner, no papel de Louis, entrega uma performance de contenção admirável. Há uma gravidade maior na maneira como Pedro Wagner mastiga aquelas palavras em silêncio, para depois cuspi-las. Sua atuação possui uma densidade mais intensa do que em 2019, quando a peça estreou. Naquele ano, estávamos todas assustadas com o pandemônio e sua gangue, que, alguns anos depois, começa a ser desmascarado. A eloquência de Louis é carregada pelo silêncio que pesa fisicamente sobre todos os presentes.

Interpretando a Mãe, Erivaldo Oliveira desafia as convenções de gênero com uma atuação que transmite fragilidade e empoderamento da matriarca. A personagem, única sem nome, conhece profundamente cada um de seus filhos. Sua tentativa de promover a harmonia entre eles é evidente, assim como seu esforço para garantir seu lugar na memória familiar, relembrando os domingos de verões passados nas conversas durante as refeições. Em uma cena delicada, ela explica a Louis que seus irmãos desejam falar e conversar, destacando a justeza de cada um que permaneceu e a necessidade de serem encorajados. O ator navega habilmente entre a aflição e o humor.

Suzanne, a irmã mais nova, é vivida por Bruno Parmera, que a interpreta com uma energia nervosa que beira o frenético. A prosódia do ator traduz a urgência da personagem em conhecer o mundo, na esperança de um dia poder explorá-lo como Louis fez anos antes, e também em expressar sua própria identidade. Seus movimentos são ágeis e entrecortados, refletindo essa inquietação interna. Quando Suzanne encontra o irmão mais velho, ela fala incessantemente, confessando que esse comportamento não é habitual. Essa dinâmica indica tanto sua admiração por Louis quanto seu desejo de se afirmar em um mundo que ainda está descobrindo.

Assumindo o personagem de Antoine, o irmão do meio, Mario Sergio Cabral entrega uma atuação impressionante, um verdadeiro tour de force, onde projeta suas emoções como um vulcão prestes a entrar em erupção. Descrito pela Mãe como um homem de pouca imaginação, Antoine surpreende ao revelar gradualmente seus sentimentos em relação ao irmão. É desconcertante e ao mesmo tempo envolvente observar como ele, com sua rudeza, fala de amor de maneira tão crua e sincera, tornando suas emoções quase palpáveis. Quando Antoine se permite chorar, o público inevitavelmente se comove, derretendo-se diante da vulnerabilidade que ele expõe.

No papel de Catherine, a cunhada, Giordano Castro, fornece uma perspectiva externa vital para a dinâmica familiar. Entre o riso e o escárnio, e sem a memória da infância por não ser parte integrante daquele núcleo desde sempre, o ator investe em pequenos gestos e sutis alterações vocais para expor verdades ditas a meia-voz, revelando as nuances das intimidades daquela família. Casada com Antoine, Catherine navega entre a vergonha dos pequenos escândalos, as explosões temperamentais do marido e a perturbadora presença de Louis, o cunhado cuja chegada abalou o tênue equilíbrio parental. Em meio a esse tumulto, ela se esforça para proteger Antoine, enquanto sugere que guarda cuidadosamente seus próprios segredos.

Mas nessa peça de tantos desafios há sobretudo um domínio impressionante da técnica. Da técnica interpretativa em que os atores, em alguns momentos, saem de suas personagens para cuidar da artesania dos bastidores, à medida que a casa vai se revelando e se distorcendo ao longo do espaço. Este espetáculo exige um rigoroso controle na administração da sequência das cenas. E o maestro dessa operação é o ator Lucas Torres, que atua como contrarregra, garantindo que toda a engrenagem funcione perfeitamente. Há uma camada metateatral, com Lucas Torres dando instruções no início da sessão, percorrendo todas as cenas e aparecendo como o baterista da banda na sala de jantar. Todo o elenco permanece atento ao andamento da encenação e aos seus detalhes, frequentemente oferecendo orientações à equipe de apoio.

A peça se desenrola como uma dança intricada em torno de um vazio central, com cada personagem orbitando em torno da verdade que Louis veio compartilhar, mas que nunca consegue expressar plenamente. Os movimentos se transformam em uma coreografia elaborada de aproximações e afastamentos, espelhando as tentativas frustradas de conexão entre eles. Não há redenção. Com Apenas o fim do mundo, o Magiluth nos incita a ampliar nossas perspectivas de afeto e a ter cuidado com os segredos e com as verdades que criamos.

Mãe conversa com o filho mais velho. Foto: Ivana Moura

Leia outras críticas de Apenas o fim do mundo,
a de Pollyanna Diniz Hello stranger
e outra de Ivana Moura Magiluth vasculha política nos laços afetivos

 

Apenas o fim do mundo
Ficha técnica:

Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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“Aqui você tem tempo”
Crítica de Guará Vermelha,
espetáculo da Companhia do Tijolo

 

Guará Vermelha é uma livre adaptação para o teatro do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende. Foto: Ivana Moura

Trabalhadores do espetáculo da Companhia do Tijolo. Foto: Ivana Moura

Alguém do elenco de Guará Vermelha, espetáculo da Companhia do Tijolo, escreve na lona, que serve de quadro e chão: “Aqui você tem tempo”. Que convite fascinante e irrecusável neste mundo capitalista, que nos rouba o sono e o desejo na sanha de consolidar no imaginário de que tempo é dinheiro. Não meus amigos. Tempo é muito mais que o vil metal. Danem-se as campanhas publicitárias e os donos das grandes fortunas que insistem nessa tecla. Tempo é vida que pulsa, feito a flor de Drummond que rasga o asfalto contrariando as regras. Tempo pode ser haicai ou poema épico e assim vai.

A trajetória do Tijolo tem dessas coisas de comungar. De partilhar as horas, de esticar o encontro numa troca de muitas bonitezas (mesmo ao apontar lados sombrios). Às vezes a trupe vai tão fundo nas humanidades que até dói. Mas investe no caminho da cura, devagarzinho. É uma aposta no caminho freiriano da educação como prática da liberdade, do aprendizado e formação do ser, da celebração coletiva, da atuação no mundo com arte no teatro.   

Na maioria das vezes, as montagens são longas, urdindo fabulações que parece aquela música do Gilberto Gil, Entra em beco e sai em beco, cuja personagem começa sentada numa pedra.

As pedras estão em toda parte em Guará Vermelha. No meio do caminho. Pedra bruta do cotidiano. No lombo do ajudante da construção civil iletrado, que conta histórias com a maestria de Sherazade (narradora dos contos de As Mil e Uma Noites). Na educação pela pedra de João Cabral. Na pedra que ensina à criatura da aridez geográfica e humana.  

Pedrinhas que simbolizam pessoas que passaram e seguiram. Elas se fazem presentes. Pedras que podem traçar as pistas do itinerário, mas os apressados transeuntes desmancham sem nem notar. Pedras que entram na constituição de casas, escolas e teatros.  

Cena de Guará Vermelha, com Thaís Pimpão no papel de Anginha ao centro. Foto Ivana Moura

Guará Vermelha, a peça, se ergue em livre adaptação do romance O voo da Guará Vermelha, de Maria Valéria Rezende, que fala das necessidades afetivas, das fomes e carências dos que são achatados na pirâmide social e da epifania do encontro. São muitas coisas, muitas emoções da perspectiva dos oprimidos que a pedagoga, educadora popular (que colaborou com o professor Paulo Freire nas suas andanças pela educação) e escritora, Maria Valéria Rezende provoca e o Tijolo põe em cena.

O espetáculo tem direção de Dinho Lima Flor e um elenco grande, como gosta o Tijolo, de se ajuntar. Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes.

As personagens Irene e Rosálio,. Foto Ivana Moura

A atriz Karen Menatti e o ator Rodrigo Mercadante. Foto: Ivana Moura

O encontro de dois seres.. Foto: Ivana Moura

Irene (Karen Menatti) e Rosálio, (Rodrigo Mercadante) são os protagonistas, mas outras figuras acendem na cena – Anginha (Thaís Pimpão), João dos Ais (Jonathan Silva), Floripes (May Tuti), Beto do Fole (Nanda Guedes), Gaguinho de nome de pia Eustáquio (Odilia Nunes) e outros. O grupo faz também citações e homenagens: Conceição Evaristo, Ivone Gebara, Lourdes Barreto, Margarida Maria Alves, Abdias Nascimento, Antônio Candido, Nêgo Bispo, Paulo Freire. E muito mais.

“Das fomes e vontades do corpo há muitos jeitos de se cuidar porque, desde sempre, quase todo o viver é isso, mas agora, crescentemente, é uma fome da alma que aperreia Rosálio, lá dentro, fome de palavras, de sentimentos e de gentes, fome que é assim uma sozinhez inteira, um escuro no oco do peito, uma cegueira de olhos abertos e…”, começa o livro de Rezende.

A peça arde com festejo da re-união. Uma celebração à vida, com elenco e uma boneca gigante de Maria Rezende, a interação das atrizes e dos atores com público ofertando pedra ou pedrinha e discorrendo sobre a força real e simbólica do mineral.

Afeto, simpatia, amor, amizade se entrelaçam numa rede para tratar de consciência de classe, opressão, injustiças e lutas. “Para onde fugiu a humanidade?”, pergunta atônito Rosálio, filho de mãe solteira, o Nem Ninguém que depois é chamado de Curumim e, que conquista a existência civil com o nome na documentação de Rosálio da Conceição.  

Ele inventou esse nome para si mesmo. Um primeiro passo para erguer-se como protagonista de sua própria história. A trajetória da personagem é tão mirabolante – escravizado, mira de revólver, mineração, libertação com a doação de pepita de ouro da velha senhora, voo de avião, nuvens, a escravização do liberalismo econômico (“Comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu, comeu feijão, trabalhou, lavou-se, dormiu”) que parece história de trancoso das “comunidades narrativas” da tradição oral do Nordeste do Brasil.

Rosálio analfabeto carrega consigo uma pequena mala com alguns livros (“Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor táctil”, canta Caetano).  Esses livros que cultiva são a fortuna de Rosálio, que correu o mundo motivado pela vontade de aprender a ler. (Isso é de chorar de alegria, num país que parte da população cultiva a bala como forma de intolerância). Rosálio não conseguiu o letramento nos lugares óbvios. Até se deparar com Irene.

Irene saiu do Norte. Em São Paulo vive/viveu da prostituição e pega/pegou Aids. No jogo de narrar e interpretar o grupo explica a diferença do HIV na década de 1980, com menos recursos de tratamento, mais desinformação e discriminação, para os dias atuais, quando a doença pode ser controlada, embora o preconceito seja um grande inimigo. Irene é uma prostituta que envelheceu com a doença, não consegue muitos clientes e tem que pagar para a mulher que cuida do seu filho.

No livro, existia um tal de Romualdo no passado de Irene. Mas a dramaturgia e a direção fizeram bem em diluir essa figura na cena.

A essência de Rosálio sintoniza com a essência de Irene. Mesma frequência de empatia com os seres viventes. Ele sentia a dor do corte no corpo quando arranjou um serviço de derrubar árvores. Um sagui e uma guará povoam a memória de cada uma dessas figuras como impulsionadores de compaixão.

A guará vermelha do título é uma ave de cor magnífica, bico fino, longo e levemente curvado para baixo. Pega essa pigmentação de plumagem rubra porque se nutre dos caranguejinhos vermelhos dos mangues. E é muito interessante saber que no cativeiro, com outras comidas, as plumas “desbotam”. Um paralelo com nós mesmos: somos também o que nos alimentamos no corpo, imaginário, espírito, utopias etc.

O público dança com os atores. Foto Ivana Moura

As andanças de Rosálio são incitadas por um desejo inquebrantável de aprender a ler. Irene também tem sua paixão pelas palavras, e guarda embaixo do colchão um caderno pensando em escrever histórias, um dia. Juntos, esses dois personagens forjam a “expansão do Universo” e adiam a chegada da morte. O entrosamento entre a atriz e o ator é de uma afinação profunda e isso é uma das riquezas do teatro de grupo, de anos trabalhando juntos, do conhecimento, entrega e respeito pelo outro.

Dessa troca de grupo são extraídos o humano, o onírico e o popular com delicadeza num jogo que conduz e envolve a plateia. A música, os arranjos musicais e as letras das músicas dialogam e coabitam os espaços cênicos produzindo texturas de forte apelo sensorial.

A cultura popular — com a literatura de cordel e as geniais oralidades – se entende muito bem com clássicos como Dom Quixote e As mil e uma noites, citados na peça. Palavras, frases, musicalidade da construção literária de Rezende se expressam perfeitamente pela boca e o corpo dos atores. 

O teatro, esse teatro, é uma forma de se posicionar contra as atrocidades do estado e da sociedade. Cria espaços para a reflexão crítica, como instrumento de transformação. A coerência estética do Tijolo faz sua práxis atenta às principais lutas políticas de seu tempo – contra a desigualdade social, o genocídio dos negros e dos indígenas, a opressão da classe trabalhadora, a violência contra a mulher e o feminicídio, o abuso de poder, a violência policial, a desvalorização de professores, a exploração, a homofobia, a transfobia, a lesbofobia, etc.

Na sua pesquisa estética continuada, a companhia enaltece a educação como prática da liberdade, da pedagogia anticolonialista, do aprendizado como estratégia de conscientização e realização de sonhos. O aprendizado da troca de afetos para iluminar o mundo.

Atriz Odília Nunes. Foto Ivana Moura

A encenação alterna presente, passado e futuro do passado em uma dinâmica bem elaborada, como ocorre também no livro. Narradores e personagens, os artistas utilizam técnicas épicas e dramáticas para obter escuta e acolhimento da plateia.

Os nomes dos capítulos do livro (cinzento e encarnado; verde e negro; ocre e rosa) estão estampados nos macacões do elenco. Em Alaranjado e verde vai pra cena um brincante que constrói um teatro no alto do morro e envolve toda a comunidade. Gaguinho narra essa história. Ou melhor Odília Nunes abraça e solta Gaguinho e fala também do seu projeto No Meu Terreiro Tem Arte, iniciativa linda realizada há alguns anos no Sertão do Pajeú, no sertão pernambucano, que promove intercâmbio cultural, residência artística, festivais como Chama Violeta e Palhaçada é Coisa Séria, no Sítio Minadouro.

A atuação de Odília é um farol, de um brilho vulcânico, com seu sotaque pernambucano e uma aterramento nas ancestralidades nordestinas. É um prazer vê-la em cena, a deslocar-se no palco, a acionar a ligeireza de raciocínio, o drible do jogo nas suas intervenções.

O elenco todo passa um compromisso com os princípios do Tijolo. Há algumas variações nas atuações. A inexperiência dos mais jovens está carregada de entusiasmo e acrobacias. Anginha de Thaís Pimpão é uma prostituta amargurada, revoltada e que não se importa se vai contagiar os parceiros com a doença. Mas há muita humanidade nesse ódio.

A cena melodramática, um trechinho de opereta cômico-popular do artista abandonado pela mulher amada tem um apelo de um hit chiclete. Com May Tuti (Floripes) e os músicos Jonathan Silva (João dos Ais) e Beto do Fole (Nanda Guedes), a cena utiliza-se da simplicidade e humor para fazer uma crítica ao patriarcado. 

É a palavra de Rezende que robustece a trilha de Rosálio e leva vigor para os últimos dias de Irene. Irene vive mais e melhor com as histórias que alimentam os dois. Irene ensina, Rosálio aprende, ele ensina, ela aprende.  Eles se alimentam de palavras e afetos. Eles se aceitam e não se julgam. Histórias de Brasis. Guará Vermelha defende que Irenes podem desejar sim viver de amor, mesmo que doam os “golpes dos pés do homem tarado”. O coração de Rosálio pode sim desejar contar histórias, ser um grande escritor.

A inclinação épico-dialético das narrações frenéticas com os pés no teatro contemporâneo, o arsenal  político-estético-pedagógico do teatro, o trabalho militante sem alienação do processo artístico desta peça do Tijolo projetam as questões e as contradições sociais como disparador do pensamento crítico.

Os pactos, a elaboração do diretor Dinho Lima Flor junto ao seu grupo apostam na chave brechtiana/ freiriana / rezendiana da diversão e do prazer do aprendizado. O desejo de modificar o mundo por uma vida mais digna está presente. Vida longa ao espetáculo. Viva o teatro!

Primeira temporada no Sesc Avenida Paulista. Foto: Ivana Moura

FICHA TÉCNICA

Direção geral Dinho Lima Flor
Elenco Karen Menatti, Rodrigo Mercadante, Odilia Nunes, Thaís Pimpão, Artur Mattar, Lucas Vedovoto, May Tuti, Danilo Nonato, Dinho Lima Flor, Jonathan Silva, Maurício Damasceno, Marcos Coin, Nanda Guedes
Direção musical William Guedes
Iluminadora Laiza Menegassi
Figurino Silvana Marcondes Cia do Tijolo
Cenário Andreas Guimarães Cia do Tijolo
Técnico de som Leandro Simões
Dramaturgia Fabiana Vasconcelos Cia do Tijolo
Concepção do projeto Dinho Lima Flor Rodrigo Mercadante Karen Menatti
Direção de produção Suelen Garcez
Assistente de produção Lucas Vedovoto
Fotos Alécio Cesar
Design gráfico Cia do Tijolo Fábio Viana
Espetáculo inspirado no livro O Voo da Guará Vermelha de Maria Valéria Rezende

Temporada
Sesc Avenida Paulista (Arte II (13º andar)
Duração: 170 minutos
Até 22/10
Sessões esgotadas

Temporada estendida até  05/11
Sessões de quarta a domingo
Ingressos https://www.sescsp.org.br/programacao/guara-vermelha/ ou nas bilheterias do Sesc

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Viagem ao abismo
Crítica da peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
Festival d’Avignon

Carolina Bianchi encara performances de alto risco. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina confrontando Pippa Bacca (em vídeo), italiana assassinada durante uma performance, e sua ingênua ideia de bondade. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A Noiva e o Boa Noite Cinderela, Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, é possivelmente o espetáculo mais ousado, espantoso, arriscado, no limite do (in)suportável, dessa temporada do Festival de Avignon. Nomes importantes da cena contemporânea mundial movimentam a programação, entre eles Julie Deliquet, Tim Crouch, Philippe Quesne, Chiara Bersani e Marco D’Agostin, Stefan Kaegi, Émilie Rousset, Julien Gosselin, Pauline Bayle, Susanne Kennedy, Milo Rau, Trajal Harrell, Gwenaël Morin, inclusive Tiago Rodrigues, para citar algumas das encenações que vi. Mas nada como a peça sem concessões de Carolina Bianchi & do coletivo Cara de Cavalo, que leva o público ao limite.

Carolina Bianchi apareceu nesse cenário como um tsunami a refletir sobre um dos crimes mais hediondos, o estupro, muitas vezes seguido do feminicídio. O espetáculo da encenadora, dramaturga e atriz brasileira, que atualmente mora em Amsterdã, estreou na programação principal de Avignon, com sessões de 6 a 10 de julho. Com esse trabalho, a artista e o coletivo expandem vertiginosamente os limites da sua arte e do seu teatro.

Blackyva em A noiva e o Boa Noite Cinderela. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Ob skene. Os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 20 de julho, atestam que o país registrou o maior número de casos de estupros da história em 2022: 205 ocorrências do crime por dia. Há que se considerar ainda a subnotificação, já que o levantamento considera casos em que as autoridades policiais foram informadas e muitas vítimas se calam, por medo, vergonha, porque não entendem a dimensão da violência que sofreram, e por muitos outros motivos.

Quase sempre os corpos das mulheres são encarados pelo capitalismo como mercadorias. Sabemos que o sistema do patriarcado está calcado na dominação e na violência contra as mulheres. As arbitrariedades para a manutenção do poder masculino e pela vigilância da sexualidade são feitas em muitas camadas, do controle do imaginário à ofensiva física. Todas, covardias. Algumas dissimuladas, outras ostensivas.

Então é genial quando Bianchi revira na cena essa questão que a ordem falocêntrica insiste em abafar como sendo apenas da esfera privada, particular, de exceção, quando na realidade se trata de um problema escandalosamente público.

E esse capítulo primeiro do tríptico Cadela Força atravessa camadas de temporalidades na perspectiva de instalar linguagens que vasculhem as possibilidades da arte entre o real e o encenado, sem escamotear o fantasmagórico e o misterioso.

No cenário dessa primeira parte, a da conferência, vemos uma mesa, cadeira, microfone, copos, garrafa d’água, alguma bebida alcoólica, uma caixa de remédios. Por baixo na mesa, um pequeno monte de areia preta sugere uma cova rasa. Por trás, uma parede falsa, que recebe a projeção dos vídeos.

Nesse ato, a artista pergunta quem conhece alguma mulher que lhe tenha segredado ter sido vítima de agressão sexual, o que foi dito e de que forma. Enfim, que lembranças ficaram. A atriz foi vítima de um estupro há dez anos. Na época, se calou entre suas memórias borradas, mas esses resíduos estão lá.

Ao levar ao palco o sofrimento encarnado – inscrito no corpo de Carolina e de outras mulheres artistas -, a narrativa explode para se instalar no bailado do elenco. O espetáculo reivindica uma humanidade saqueada. Ao ingerir 10 mg de “boa noite Cinderela”, Bianchi investe na “ressurreição de uma memória pessoal soterrada pela sua violência”, como registra o programa da peça.

Mas com esse gesto repetido a cada sessão, a artista não busca remissão (essa palavra tão católica) para os atos de violência sexual. Simplesmente porque não há como resolver o trauma, em toda sua complexidade, nem dentro, nem fora da peça. 

Seguindo o fluxo, o “Fuck Catharsis”, que está estampado na placa do carro na cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela, não é somente uma frase de efeito, mas uma lógica e uma chave para percorrer essa performance de alto risco.

Os recursos para articular esse enfrentamento no palco são criativos, com as tensões e atritos da construção de uma poética autoral. O material real, dela e de outras artistas convocadas, são processados como procedimentos teatrais e performativos que Bianchi utiliza, subverte, retorce, cria sua própria estética, utiliza em composição de seu teatro radical.

Boa noite – Trilogia Cadela Forca – Capitulo I – Foto: Christophe Raynaud/Divulgação

Arte e trauma. “O que acontece com as mulheres que sobrevivem ao estupro?”. Casos de agressões e feminicídios contemporâneos e que ocupam a história da arte são expostos. Vestida de branco, Carolina Bianchi lê trechos do Inferno, primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri e cita o romance 2666, de Roberto Bolaño. Na sequência são projetadas pinturas de Botticelli, inspiradas nos contos do Decameron, de Giovanni Boccaccio. É A história de Nastagio degli Onesti, em que uma jovem se vê coagida a casar com esse homem que não ama para evitar ter o mesmo destino da mulher perseguida e morta, cujo coração é lançado aos cães pelo cavaleiro rejeitado, numa ação repetida todos os dias.

A ficção não é mais horripilante do que a realidade. A artista recorda que, no Brasil, o goleiro Bruno Fernandes foi condenado pelo homicídio da ex-namorada e mãe de seu filho, que ela teve o corpo esquartejado e atirado aos cachorros do futebolista.

Na sua explanação, Carolina diz não ser a protagonista desse espetáculo, mas sim outras mulheres artistas que foram vítimas de violência. E resgata a performance da artista italiana Pippa Bacca, A Noiva do título, assassinada em 2008, perto de Istambul. Intrigada com as escolhas, trajetória e pensamento de Bacca, a brasileira revela admiração e desprezo e fala de semelhanças e diferenças entre as duas. No seu movimento de atração-repulsão por Pippa, Carolina investe num karaokê feroz em italiano.

A artista explica ao público o que significa “Boa noite Cinderela”, nome conhecido no Brasil da substância utilizada pelos canalhas/agressores sexuais que drogam e estupram suas vítimas em estado alterado de consciência.

Carolina Bianchi avisa ao público que vai tomar a substância. E, enquanto espera a droga “bater”, ela discorre sobre o assunto. Quando o treco fizer efeito, ela já confusa irá se deitar na mesa, e o coletivo Cara de Cavalo assumirá a continuação do espetáculo. Se o treco não “bater”, ela avisa que irá ler as 500 páginas de sua dissertação de mestrado. Mas a droga funciona.

A substância leva em torno de meia hora para fazer efeito. Enquanto isso, a atriz volta a Pippa Bacca, que se chamava Giuseppina Pasqualino di Marineo, e foi morta aos 33 anos. Ela viajava apenas de carona, com a amiga Sylvia Moro, no projeto “Noivas em viagem”, com o intuito de promover a paz para vários povos e nações. Mas elas se desentenderam e Bacca seguiu seu caminho até ser estuprada e morta na Turquia. Ela tinha uma fé inabalável no humano e cruzou territórios de guerra, marcadamente vulneráveis para as mulheres. Carolina também rememora a atuação de Tania Bruguera na Bienal de Arte de Veneza e evoca as Santas Mártires da Igreja Católica. 

Assisti à peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela duas vezes na curta temporada em Avignon. Na estreia e no segundo dia. A primeira sessão tinha uma predominância feminina na plateia. E uma pulsação de preocupação, identificação, manifestada na emoção ou algum mal-estar de alguma espectadora. A cena é forte, numa experiência compartilhada ao vivo e dessa energia acontecem coisas.

Na segunda sessão, havia uma leve supremacia masculina na plateia. Algo mudava, mesmo que eu não consiga precisar o quê, mas havia uma curiosidade, um quê de São Tomé, que levou um homem de meia idade a chegar perto da mesa com Carolina já desacordada para verificar os materiais expostos e tomar um pouco de água. Três ou quatro babacas ensaiaram aplaudir a atuação do cretino, que em seguida voltou ao seu lugar. Momento tenso fora do script.

Carolina Bianchi e o Coletivo Cara de Cavalo

Quando Bianchi fica inconsciente, o Coletivo Cara de Cavalo assume. É uma guinada radical. A parede falsa é desmontada e o amplo palco se revela. Os oito artistas estendem uma lona preta no chão. Um carro é descoberto. Com danças individuais e coletivas, os atores reorganizam o espaço, distribuem as mortalhas – com representações de corpos mortos – com um cadáver, um esqueleto, terra e flores, pó branco, e o colchão onde Carolina é deitada, em que passa a maior parte do tempo.

Domina uma atmosfera trash. Orgias simuladas em jogos de dois, três, quatro, em dinâmicas constantes. Várias pequenas cenas ocorrem ao mesmo tempo. Coreografias de danças, música alta, algumas vezes distorcida. Encontros que deixam dúvidas se são consensuais. O carro anda. O automóvel preto é lugar de encontros, é lugar de opressão.

Desacordada, Carolina já não fala, mas suas palavras, ou as frases que tomou emprestadas antes, estão estampadas nas telas. “Como eles podem dizer que sobreviver é vingança?” O capítulo dedicado às mulheres mortas de Ciudad Juarez, no México, do romance 2666, de Bolaño, também é utilizado como referência.

Será o sonho, ou pesadelo da artista desacordada, aqueles encontros fortuitos, regados a música alta, bebidas e outros entorpecentes, desejos e imposição de desejo? Na sequência das cenas, Carolina será deslocada para o bagageiro e em seguida para o capô.

Já no capô do carro com a placa “Fuck Catharsis”, Carolina Bianchi ainda em estado de semiconsciência passa por um exame vaginal filmado, feito pelas mulheres do elenco. Os movimentos internos são transmitidos ao vivo numa tela grande. Enquanto essa cena ocorre, ouvimos as palavras gravadas de Bianchi, que exaltam a amizade, sobretudo a amizade feminina, como uma grande proteção na vida.

Na última cena, a atriz está deitada em um colchão cercado de flores. A atriz vai acordar, atordoada. Numa placa atrás dela está escrito “SHE GOT LOVE”. Um dos atores do coletivo oferece um energético.

Depois dos aplausos, o público sai profundamente perturbado. Alguma zona pouco acessível foi acionada.

Fuck Catharsis está estampado na placa do carro. Foto: 

Artista fora do comum, Carolina obteve em Avignon uma visibilidade inesperada por ela e sua equipe de produção. Apresentações já se seguiram: Bélgica, Alemanha, Espanha e Suíça. O mesmo impacto. Além dos convites, os holofotes sobre o seu trabalho ganharam os principais jornais do mundo e, com isso, muitos outros horizontes de espaços, de público e de discussão. Mas ainda não há previsão de apresentações no Brasil. 

No artigo La vanguardia de las mujeres, assinado pelo poeta, crítico literário e teatral Andreu Gomila no principal jornal da Catalunha, ele avalia a força de um teatro conduzido por mulheres. O crítico cita as consagradas, a britânica Katie Mitchell e a espanhola Angélica Liddell, e destaca as novas correntes cênicas protagonizadas pelas mulheres, como a alemã Susanne Kennedy, a belga Sarah Vanhee, a brasileira Carolina Bianchi e a coreógrafa japonesa Midori Kurata. Sobre Bianchi, ele pontua: “A nova artista que mais se fala neste momento na Europa é a brasileira Carolina Bianchi, cujo primeiro capítulo da sua trilogia Cadela força : La núvia i el bona nit Ventafocs … que diz o que nunca foi dito sobre a violência contra a mulher”.

Novos rumos. A primeira crítica que saiu sobre o trabalho depois da estreia em Avignon, no Le Monde, situou: “Basta dizer que a atuação de Carolina Bianchi vai entrar para a história do Festival de Avignon e deixar uma impressão duradoura no público”.

O Satisfeita, Yolanda? conversou com Carolina Bianchi sobre a peça, a construção da sua linguagem, e a repercussão do espetáculo. Leia aqui!

Ficha técnica:

Com Larissa Ballarotti, Carolina Bianchi, Blackyva, José Artur Campos, Joana Ferraz, Fernanda Libman, Chico Lima, Rafael Limongelli e Marina Matheus
Texto, design, direção, dramaturgia: Carolina Bianchi
Tradução para legendas: Larissa Ballarotti, Luisa Dalgalarrondo, Joana Ferraz , Marina Matheus (Inglês), Thomas Resendes (Francês)
Dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça  
Direção técnica, música originale som: Miguel Caldas 
Iluminação: Jo Rios  
Cenografia: Luisa Callegari 
Vídeo: Montserrat Fonseca Llach  
Figurinos: Carolina Bianchi, Luisa Callegari e Tomás Decina
Colaboração artística: Tomás Decina
Treinamento de corpo e voz: Pat Fudyda, Yantó
Construção de automóveis: Mathieu Audejean, Philippe Bercot, Miguel Caldas, Luisa Callegari, Pierre Dumas, Lionel Petit, Xavier Rhame, Jo Rios – Oficina de construção do Festival de Avignon Diálogo sobre teoria e drama: Silvia Bottiroli 
Colaboração artística: Editar Kaldor (DAS Teatro) 
Vídeo karaokê: Thany Sanches 
Assistente de produção e diretora de palco: AnaCris Medina 
Direção de produção e administração da turnê: Carla Estefan 
Distribuição internacional: Metro Gestão Cultural (Brasil) 

Produção

Produção: Metro Gestão Cultural (Brasil), Carolina Bianchi y Cara de Cavalo
Coprodução: Festival d’Avignon, KVS Bruxelas, Maillon Théâtre de Strasbourg European Scene, Frascati Producties (Amsterdam)  
Com o apoio da Fondation Ammodo, DAS Theatre Master Program, 3 Package Deal do AFK – Amsterdams Fonds voor de Kunst, NDSM, Over het IJ Festival, Theatre der Welt, Kaaitheater (Bruxelas) e de l’Onda – National Office for Artistic Diffusion.
Representações em parceria com a France Médias Monde 
Residences DAS Theatre (Amsterdam), Festival 21 Voltz/Central Elétrica (Porto), Pride Festival (Belgrado), Festival Proximamente/KVS (Bruxelas), Espaço Desterro (Rio de Janeiro), Greta Galpão (São Paulo), Frascati (Amsterdam), A FabricA do Festival d’Avignon 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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É urgente a amazonização dos mundos
Crítica do espetáculo Altamira 2042

Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Foto: Nereu Jr / Divulgação

Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha.

Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências.

A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio.

Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta para a Natureza.

Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas.

Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense).

Foto Nereu Jr

Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento.

Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz mitos amazônicos, como o da mulher-cobra,

A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia.

A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. 

Foto: Nereu Jr

Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos.

Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo.

No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos:

Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos.

Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”.

O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte.

Cena Expandida

Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.

A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno.

Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.

Ficha técnica:
Altamira 2042
Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha
Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral
Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Jimmy Wong
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro
Figurino: Carla Ferraz
Luzes: Cibele Forjaz
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Foto: Nereu Jr.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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