Cartola, para mim, sempre teve gosto de carinho de “vó”. Para quem não sabe, cartola é uma sobremesa feita com banana, manteiga, queijo do sertão (chamado também de queijo manteiga), açúcar cristal e canela. É Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de Pernambuco (Lei 13.751, de abril de 2009). Pesquisadores atestam que a iguaria é originária das casas-grandes dos engenhos e que sua receita é fruto da “mistura de ingredientes, técnicas e hábitos culturais dos colonizadores portugueses, dos indígenas e dos escravos africanos”. O gosto da cartola e a sensação de conforto invadiram mente e corpo durante a apresentação do espetáculo Interior, do grupo Bagaceira. A ligação foi imediata quando o elenco distribuiu pequenos pedaços de bolo para a plateia.
O mais recente trabalho do bando cearense tem tudo a ver a com as melhores lembranças do convívio com avós, essas criaturas sempre amorosas. E eles usam chaves delicadas para incluir o público nessa empreitada.
A exibição de Interior, dentro da programação do X Festival de Teatro de Fortaleza, ocorreu no Sesc Senac Iracema, ontem. Hoje tem outra sessão no mesmo local, às 20h. O espaço de pé direito altíssimo se presta à mudança na configuração da plateia – a exemplo do que ocorria com o Teatro Armazém (ai que saudade desse espaço, Paula de Renor) ou como funciona o Teatro Hermilo Borba Filho, ambos no Recife.
A produção do Bagaceira utiliza três arquibancadas. Duas frente a frente, com uma distância de cerca de um metro entre elas. A terceira fica um pouco mais longe, transversal com as outras duas. A proximidade do elenco com o público faz parte da proposta de encenação e do “encontro”. O cenário borra limites entre ator e espectador, assim como ocorreu em A mão na face (que lança luz sobre duas criaturas da noite, uma cantora de cabaré e um travesti, que se deparam no camarim. Uma saindo de cena e outra se preparando para estrear; em que a plateia fica bem juntinho da cena). Mas, se A mão na face é bem urbano, Interior tem traços, digamos, bem rurais. O diretor coloca a plateia ainda mais perto em Interior, criando um clima de conversa de pé do ouvido, rapsódias com ternura e canto.
Em cena duas velhinhas, já mortas, que se recusam a serem enterradas. Uma é avó, a outra é neta. Primeiro chega uma e se aboleta no centro de uma arquibancada. Distribui pedaços de bolo e passa a falar de sua vitalidade, como escapou de vários sepultamentos. Sua netinha aparece depois. A segunda chega e se instala no outro poleiro, no meio da plateia. A memória partilhada entre elas é narrada de forma delicada, engraçada, com uma pertinência na nostalgia. São conversas cheias de calor humano e as atrizes compartilham esses pertencimentos para a plateia. Os diálogos estão recheados de dialeto cotidiano de um Brasil profundo (mas aqui as referências específicas são do Ceará).
São figuras centenárias, que andam curvadas pelo peso do tempo. Carregam histórias imemoriais, que saem desfiando. Utilizam máscaras para marcar os rostos encarquilhados.
Em um momento da peça, uma das personagens pede à plateia para escrever o nome e a cidade onde nasceu a avó. Ela explica que é para dobrar o papel e colocar numa pequena caixa. O espetáculo corre e a caixinha também. Lá para as tantas ela recupera a caixa e vai extrair as memórias do público. Já acompanhei outros espetáculos em que a assistência era convocada a participar com suas lembranças. É sempre muito precioso.
A pesquisa para erguer o espetáculo levou mais de um ano, de dois que conseguiram patrocínio da Petrobras para o projeto. Nessa incursão pelas cidades de dentro do Ceará eles colheram subsídios, elementos materiais e imateriais para construção da cena. As máscaras que envelhecem os intérpretes foram criadas a partir da caracterização do reisado, dos caretas e dos tremembés de Itarema (237 km de Fortaleza). Agricultores idosos inventam as alegorias e traçam figurinos a partir de camisas, coco e borracha.
De Beberibe (83,3 Km de Fortaleza) o grupo tomou emprestado duas músicas do grupo Acasos das Dramistas. Em Tauá (344,7 Km de Fortaleza) e Icó (358,1 Km de Fortaleza), a trupe fez intercâmbio com companhias teatrais. O ator francês Maurice Durozier (do Théâtre du Soleil) indicou a direção da figura da avó e as mais afetuosas perspectivas.
As duas velhas são defendidas em atuações excelentes das atrizes Tatiana Amorim e Samya de Lavor. Rafael Martins e Rogério Mesquita trabalham no apoio e na contrarregragem, assegurando o clima.
O texto de Rafael Martins e a direção de Yuri Yamamoto caminham pelas veredas da delicadeza. A aparência do trabalho é de muita simplicidade. Mas a força emotiva revela um processo sofisticado, em que o elenco recorre a fotografias antigas e canções que envolvem a plateia.
Yuri Yamamoto constrói categorias de significados. A primeira vista estão a poesia da velhice, e o susto diante da morte. E na plataforma das centenárias senhoras, cheias de humor que insistem em não sucumbir. Em torno disso há a película do tempo, um tempo estendido e ameno.
Mas existem outras camadas que podem ser apontadas. Uma delas é bizurada pelas personagens, que já foram artistas, vem de famílias de artistas e mostram isso através de fotografias antigas. Nesse jogo cênico, também entram as questões da arte que brota em qualquer lugar e resiste longe dos incentivos oficiais.
Um espetáculo singelo, tocante, suas personagens de velhas com suas rabecas e seus bolos de banana, que carregam sacos plásticos e brincam com a ignorância com relação a tecnologia, que implicam uma com a outra e fazem divertir com tanto sentimento bom.
SERVIÇO
Interior, espetáculo do Grupo Bagaceira de Teatro
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Elenco: Samya de Lavor, Tatiana Amorim, Rogério Mesquita e Rafael Martins
Quando: Hoje, às 20h, no SESC Senac Iracema (Rua Bóris, 90C, Praia de Iracema.
Fone: 85 3252-2215)
Quanto: Grátis
Outras informações: Facebook.com/Grupo Bagaceira de Teatro