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A máquina de fazer festas e… tiranos
Crítica do espetáculo Édipo REC

Jocasta (Nash Laila) coroa o DJ Édipo (Giordano Castro).Foto Camila Macedo / Divulgação

DESEJO DE SABER: Dançar até os pés ficarem inchados

Pompeia, SP, 28 de setembro de 2024. Dia seguinte à estreia do espetáculo Édipo REC, do Grupo Magiluth, do Recife

O desejo de poder é uma das forças motrizes das ações de Édipo, my love. Tem também o amor… um belo exercício de poder.

E a vida é decepcionante???

Mas será que somos gregas? A democracia foi forjada lá? E o teatro nasceu na Grécia? Gaguinho, personagem da atriz Odília Nunes em A Guará Vermelha, da Cia. do Tijolo, também contestou essa tese. O Corifeu de Édipo REC, na ressaca anos após a festa,  pondera que “já se fazia muito teatro em muitos lugares, nas mais variadas línguas, espalhados num território gigante e plural hoje singularizado na palavra África”.

Mas antes tem “a” festa e ela dura horas, muitas; anos, séculos. E como nos alimentamos desses estímulos de som, do banal ao mais potente, energia pura e outras pujanças de uma luz mágica de Jathyles Miranda que maneja as emoções, dessas que estão à flor da pele, mas busca o tutano.

Fazemos pose, se dói em algum ponto do corpo ninguém vai ver, até a queda final.

A música e o DJ, que será rei, as pequenas invejas e as grandes traições ocupam os espaços, se deslocam, traçam coreografias.

Na festa tão contagiante com suas drags provocadoras, adivinhadoras, somos levadas por tantas sensações e ambientes do poder macro ao micropoder. Do país Brasil, ao universo das nossas bolhas de tantas performances e multiplicações de imagens.

Mas afinal, do que você está falando?

De mim, bebê, pois cada uma fala de si e tenta valer sua narrativa, mesmo quando disfarça com os escudos da teoria.

Mário Sergio, no papel de Creonte, que ambiciosa ser o poderoso chefão. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Do fim da peça Édipo REC passando pelo  drink no templo da Pina Bo, das negociações da galera no Pompeu às tarefas prosaicas de limpar casa, preparar comida, e tentar elaborar algum pensamento sobre o 15º campeonato do Magiluth foram muitos tempos intercalados…. em apenas um dia.

Nem sabemos exatamente como chegamos naquele baile tão cheio de nuances, que o dono da sina só chega muitas poses depois.

Seguimos o Coro drag Erivaldo Oliveira e suas inflexões debochadas, seu modelito brilhante e botas de plataformas enormes.

Ainda na convivência, o clima se instala. Munido com sua máquina de captar imagens, Bruno Parmera de barba e boné (quase um disfarce) se projeta em Corifeu multiplicado por muitos clicks.

Creonte se apresenta ambíguo, quem é ele ?

Caímos na festa – o palco do Sesc Pompeia – com suas arquibancadas vazias e seu dancing lotado de espectadores/colaboradores que seguem o fluxo de Parmera, de Mário, de Erivaldo.

E são muitos climas de festa… a chegada de Pedro-Tirésias, num figurino deslumbrante, a dizer alguma verdade e celebrar outros teatros zecelsianos e muitos níveis de influências. A presença do Pedro Wagner traz uma liga, uma segurança, uma propriedade na cena; que o audiovisual permita que ele esteja muitas vezes no teatro. 

A atriz Nash Laila (Jocasta) na estreia, ao lado da diretora Cibele Forjaz. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Nash Laila como Jocasta. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Eu danço, tu danças, ela dança, nós dançamos, el_s dançam. E chega o “dono” da festa, o DJ Édipo (Giordano Castro), que conquistou sua Jocasta (Nash Laila) e apaziguou um país. Pelo menos por um tempo…

E que coisa mais linda a presença da atriz Nash Laila. Que coisa boa o Magiluth acolher uma intérprete depois de tantos anos sem a presença feminina no palco. Pareceu-me que o jogo ficou mais… delicioso. O que pode a atuação de uma mulher num elenco masculino? Muchas cosas, cariño. Inventa outras humanidades.

Enquanto dançamos, a máquina de fabricar “estados de felicidade” (que remete à peça Dinamarca) faz seu papel de explorar e questionar as imagens na sociedade contemporânea. A festança esconde, mas não anula com sua tecnologia, esse “clube” em crise existencial, aprisionado em ciclos de consumo, excessos que levam à sensação de vazio.

O jogo cênico com imagens gravadas e em tempo real promovem uma realidade nuançada e desafios interpretativos para quem observa ou se posiciona no palco. Muitas chaves são lançadas para quem busca significados. As ferramentas estão no ar.

 E como já pode ser considerado pré-histórico o costume de fotografar e partilhar vivências íntimas em álbuns de família discretamente… A narrativa visual da era digital é uma guerra extenuante e incessante de exposições públicas, cada qual “palestrando” sua saga no vasto anfiteatro digital da contemporaneidade.

O primeiro jorro / A primeira golfada, poucas horas depois da festa-peste saiu assim… Mas sem conectividade e com as memórias cheias dos meus equipamentos, o texto ficou grudado nas barreiras de saída…

Pedro Wagner- Tirésias em primeiro plano. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Desejo de saber: Pestes, enigmas, sinas.

SP, alguns dias após a estreia de Édipo REC

Traduzida como Édipo Rei em algumas versões (Mário da Gama Kury, Lilian Amadei Sais, Trajano Vieira e outros), e intitulada Édipo Tirano na edição publicada pela Todavia em 2017 (com tradução e comentários de Leonardo Antunes), a peça entrelaça incesto e patricídio. Esta, que é uma das mais renomadas tragédias gregas, foi escrita por Sófocles por volta de 429 a.C. e tem sido revisitada e recriada por artistas de diferentes épocas.

A obra explora a jornada de Édipo, rei de Tebas, em sua busca pela verdadeira identidade e pela solução do assassinato do antigo rei, Laio. A trama desvela gradualmente o terrível destino do protagonista, que, sem saber, matou seu pai e se casou com a própria mãe, cumprindo uma antiga profecia.

No artigo Édipo: a encruzilhada fatal, a psicanalista Maria Homem aponta que o texto dramatúrgico de Sófocles pode ser considerado o primeiro grande thriller ocidental, com várias reviravoltas, girando em torno de um crime central. “Quem matou Laio? Fio condutor do suspense. A essa camada se superpõe uma história de investigação de si mesmo, um processo – trágico – de desvelamento de si. O detalhe é que desde o início somos advertidos pelo cego que mais vê, Tirésias, de que o saber pode ser perigoso… [1]”

Édipo e Jocasta em sua festa. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Édipo REC, a 15ª montagem do grupo Magiluth reinterpreta a tragédia de Sófocles da perspectiva contemporânea e podemos pensar nos conceitos desenvolvidos por Jean Baudrillard, de que vivemos em um mundo de simulacros – cópias sem originais – onde a distinção entre realidade e representação se tornou borrada. Neste contexto, a “hiper-realidade” substitui a realidade “autêntica”, e os signos e símbolos se tornam mais reais do que aquilo que supostamente representam. Os indícios que nos guiam por esse caminho revelam-se na encenação, que enfatiza os processos de produção na tecnologia, mídia e cultura da imagem.

O espetáculo está dividido em dois atos: o primeiro é uma celebração exuberante que ecoa o excesso de estímulos visuais da nossa era; o segundo apresenta o desenrolar da tragédia inevitável.

O primeiro, com direito a esquenta-festa na temporada paulistana na área de convivência do Sesc Pompeia, começa enquanto o público aguarda para adentrar no teatro. Alguns personagens – Corifeu (Parmera), Coro (Erivaldo), Creonte (Mário Sérgio) e Mensageiro (Lucas) circulam. Os outros personagens só “aparecem” dentro do teatro.

O Coro-drag, equilibrado em suas plataformas e do alto da escada convoca: “Sejamos carnaval. Sejamos essa alegria devastadora embriagada…” para depois cravar “Vamos fazer dessa noite, a noite mais linda do mundo”, um refrão também da música A Noite Mais Linda Do Mundo (A Felicidade), cantada por Odair José, que já faz um diálogo com outra canção popular inserida em Dinamarca, Quando Chegar o Amanhã, gravada por Leonardo Sullivan.

Neste trabalho comemorativo dos 20 anos de trajetória do Grupo Magiluth, a companhia realiza uma retrospectiva artística, tecendo habilmente elementos e temas de seus espetáculos anteriores na trama de Édipo REC. Esse processo de autorreflexão cênica está carregado de  referências sutis e explícitas a produções passadas. A dramaturgia expande as citações, abrangendo desde a mitologia grega até a cultura brasileira.

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Ainda no prólogo, o Coro-drag-Erivaldo, entre batidas de leque e toques de sarcasmo, afirma que ninguém poderá ser considerado feliz antes de ter vivido todos os dias até sua morte. Essa ideia constitui um dos pilares de qualquer versão de Édipo, sintetizando uma de suas reflexões mais profundas.

O Coro pergunta, responde, aconselha: “A vida é decepcionante? É decepcionante! Mas é isso que temos! Então finjam ter outra vida…”

O título Édipo REC reporta-se simultaneamente à cidade do Recife e ao ato de gravação (REC). Esta escolha expõe a combinação do mito clássico de Édipo com elementos contemporâneos da era digital, trazendo para a cena as pesquisas do diretor Luiz Fernando Marques – Lubi sobre as intersecções entre teatro e cinema. A obra esquadrinha o impacto da constante documentação e compartilhamento de nossas vidas nas redes sociais e outros meios digitais sobre nossa percepção da realidade e identidade.

Marques, em conjunto com o dramaturgo Giordano Castro e o elenco, desenvolve procedimentos cênicos que desafiam as convenções temporais e espaciais, criando um jogo complexo entre o passado mítico e o presente urbano. A não-linearidade cronológica da montagem aciona um dispositivo questionador da própria natureza do tempo no teatro e na vida.

A festa com o público no palco. Camila Macedo / Divulgação

O cenário transforma o palco em um ambiente frenético de celebração: luzes, fumaça, telões com projeção e música alta, envolvendo a plateia em uma experiência sensorial imersiva. Durante esse momento de “descontração”, muitas pequenas situações são expostas como o chamado para  dançar até os pés ficarem inchados, numa evocação ao nome Édipo ou quando o Coro faz menção a Édipo como elucidador de mistérios, homenageando a figura de Chico Science ao apontar que ele é aquele que fincou uma antena em meio às esculturas de lama e decifrou os enigmas.

A encenação de Édipo REC abraça e explora a noção de simulacro de maneira envolvente. A transformação do palco em uma boate com DJ e interação direta com o público cria uma hiper-realidade que engole tanto atores quanto espectadores. Esta reinterpretação encampa o poder avassalador da mídia e da cultura pop na formação das identidades. 

O uso de tecnologia audiovisual, com câmeras filmando e projetando cenas ao vivo, adiciona uma camada extra. Acompanhamos simultaneamente ao “real” e sua representação mediada. Esta dinâmica se estende à representação de Tebas como um “Recife-Pompéia fantasmagórico”, evocando uma ilusão de comunidade efêmera.

Em meio a esse fluxo, Édipo é coroado. Como diz um personagem: “Ele que é o próprio LSD – Luz, Som e Desejo!”

O jogo é intenso entre o elenco formado por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner, com a participação da atriz Nash Laila. Os personagens Corifeu, Coro, Édipo, Mensageiro, Tirésias, Creonte e Jocasta coexistem com figuras e dilemas contemporâneos.

O Corifeu convida o público a sair do teatro, sob o pretexto de que precisa filmar tudo novamente. Nesse segundo ato, enfrentamos a tragédia em sua essência. Tirésias, o sábio cego, reitera uma das frases mais lúcidas, belas e devastadoras da dramaturgia de todos os tempos: Nunca digas que uma pessoa foi feliz sem que tenha vivido o último dia de sua vida.

Vinte anos se passaram desde aquela grande festa, das juras de amor e da coroação de Édipo. O clima predominante é diametralmente oposto ao do primeiro ato. A peste se alastrou pela cidade, imperando o medo e a desconfiança. Tudo está à beira do abismo.

Essa tragédia festivo-pestilenta convoca para o teatro temas políticos e morais da nossa era. Questões éticas e suas consequências são abordadas, como o célebre episódio do fotógrafo que registrou a imagem de uma criança esquelética espreitada por um abutre. [2]

Parmera, o Corifeu, que capta as imagens. Foto: Camila Macedo / Divulgação

O Corifeu propondo a dancinha juntos na festa. Foto: Camila Macedo / Divulgação

As interrupções constantes do Corifeu (“Corta!”) e as mudanças abruptas de cena enfatizam a artificialidade da narrativa, tensionando qualquer noção de realidade coerente e unificada. 

A intensa interatividade e o uso extensivo de tecnologia podem, por vezes, obscurecer a fluidez e as questões filosóficas fundamentais da tragédia original. Há momentos em que o espetáculo corre o risco de priorizar o secundário. Já a apropriação da violência e do trauma levanta questões éticas sobre a estetização da barbárie no teatro. Um aspecto com muita possibilidade de discussão.

Embora por vezes corra o risco de se perder em seus  próprios labirintos, Édipo REC é um espetáculo tão provocador quanto potente em suas interpretações plurais e singulares. É a montagem que celebra os 20 anos do Grupo Magiluth, prosseguindo um trabalho de pesquisa importante de uma companhia que tem a coragem criativa para não deixar os clássicos intocáveis e mete a mão nessas obras para buscar a pulsação dos tempos atuais.

Lembrei de um espetáculo que assisti no Festival de Avignon, França, em 2023, que, embora não dialogue diretamente em temática com o trabalho do Magiluth, apresenta aproximações interessantes em dois aspectos: a celebração festiva e o uso inovador de recursos de projeção de imagem.

Extinction, dirigido por Julien Gosselin, apresenta-se como uma produção ambiciosa de cinco horas que desafia as convenções teatrais tradicionais. A peça inicia com um concerto de techno de uma hora, durante o qual cerveja flui gratuitamente e o público recebe convites para dançar.

Há uma radicalidade no uso de tecnologia visual em Extinction. Uma tela gigante exibe imagens em preto e branco, pontuando momentos de intensidade dramática. A transição para a representação principal é marcada por uma mudança na técnica de apresentação: os atores são vistos em parte na presença teatral e em imagens filmadas ao vivo e projetadas em preto e branco, com cinegrafistas invisíveis ao público. Baseado em textos de Thomas Bernhard, Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal, o espetáculo explora temas complexos da sociedade vienense e suas reverberações. 

A alegria do primeiro ato. Foto: Camila Macedo/Divulgação.

A sisudez do segundo ato, quando Tirésias passa a real para Édipo. Foto: Camila Macedo / Divulgação

A dramaturgia de Giordano Castro e a cena de Lubi são ricas em intertextualidade, incorporando referências de filmes como Édipo Rex de Pasolini, Funeral das Rosas, de Matsumoto; Hiroshima, mon amour, de Alain  Resnais com roteiro da poeta Marguerite Duras. Além de filmagens num Recife soturno e desolado. Essas imagens, juntamente com outras, oferecem insights para significações e camadas que podem amplificar a recepção.

Há muito o que desenvolver sobre o diálogo entre o teatro e o cinema elaborado na montagem, especialmente a partir da questão lógica espectral e fantasmática dos que retornam da memória de outros tempos, bem como da sensação de solidão em meio a essa comunidade efêmera. No entanto, no momento, sinto-me exaurida. Registro apenas o desejo de retornar a esses assuntos e revisitar Édipo REC por outra perspectiva. Talvez depois de assistir ao espetáculo uma segunda vez, quem sabe.

O Édipo de Castro é arrogante, tirânico, que ostenta sua a húbris [3]; charmoso como alguns déspotas e meio infantil; reconhece por um lado seus traumas, mas ainda quer fazer valer o seu poder através de palavras e gestos, parecendo não entender que as “massas” abandonam os derrotados.

Por enquanto, encerro por aqui constatando que em Édipo REC o corpo assume a cidade numa pulsação alucinante. Levar a peça para a festa consagra o poder de ruptura com o tempo cotidiano, enquanto manifestação minúscula do encontro trágico na Antiguidade. E mesmo que não haja aqui o “incêndio das consciências”, na expressão de Roland Barthes, Édipo prossegue sendo o próprio enigma.

O Mensageiro (Lucas Torres), o amigo de Laio que testemunhou o assassinato. Foto: Camila Macedo / Divulgação

NOTAS

[1] HOMEM, Maria. Édipo: a encruzilhada fatal. In: SÓFOCLES. Édipo Tirano. São Paulo: Editora Todavia, 2017. E-book
[2] A fotografia “O abutre e a menina”, tirada por Kevin Carter em 1993 no Sudão, durante uma grave crise humanitária causada pela guerra civil, tornou-se um ícone do fotojornalismo e desencadeou um intenso debate ético. Carter acompanhava uma missão da ONU quando capturou a imagem de uma criança desnutrida com um abutre ao fundo. A foto, publicada no New York Times, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1994, mas também gerou controvérsia sobre a ação do fotógrafo em não ajudar a criança. Carter enfrentou depressão devido às críticas e ao trauma de suas experiências, culminando em seu suicídio em 1994. Anos depois, descobriu-se que a criança era um menino chamado Kong Nyong, que sobreviveu à fome, mas faleceu adulto em 2006 devido a uma febre.
[3 A húbris ou hybris (em grego ὕβρις, “hýbris”) é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunçãoarrogância ou insolência (originalmente contra os deuses)… https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%BAbris
 Na tragédia grega clássica, húbris era frequentemente uma deficiência fatal que causava a queda do herói trágico. Normalmente, o excesso de confiança levava o herói a tentar ultrapassar os limites das limitações humanas e assumir um status divino, e os deuses inevitavelmente humilhavam o ofensor com um lembrete agudo de sua mortalidade. https://www.merriam-webster.com/dictionary/hubris

Serviço:
Édipo REC
Quando: Até 26/10. Quinta a sábado, 20h. Domingos, 17h. Dia 12/10, sábado, 17h. Dia 23/10, quartas, 20h
Quanto: R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada), R$ 18 (credencial plena)
Onde: Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP
Duração: 105 minutos
Classificação etária: 18 anos

Ficha técnica:
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Bote a mão na consciência desde criança
Crítica de “O Estado do Mundo…”
7ª edição MIRADA

O ator Edi Gaspar manipula pequenos objetos com projeção na tela. Foto: Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), uma produção do grupo português Formiga Atômica, flerta com  a tradição do teatro engajado, utilizando a arte como meio de conscientização social. Focada principalmente no público infantojuvenil, a encenação aborda a urgente crise climática, mostrando-se ousada, oportuna e necessária no contexto atual. A obra dialoga em algum grau com o movimento projetado por Greta Thunberg, reconhecendo o poder dos jovens na luta contra as mudanças climáticas.

O espetáculo propõe uma análise sobre a situação do mundo em seus diversos aspectos: natural, político, geográfico, social, histórico, econômico e humano. O ator Edi Gaspar desenvolve um monólogo progressivamente envolvente, situado em uma esfera gigante que representa um meteorito ou um planeta, concebida pelo cenógrafo Eric da Costa. Ao lado, uma tela de projeção circular permite ao público visualizar em detalhes – através de uma câmera operada por Edi – todas as miniaturas que ilustram grandes catástrofes ambientais: o desmatamento da Amazônia, o mar de plástico na Malásia, a poluição atmosférica na China, entre outras. 

O texto de Inês Barahona e Miguel Fragata mescla o cotidiano com o fantástico. A jornada de Edi, o protagonista de 8 anos, serve como dispositivo narrativo para abordar conceitos complexos de forma acessível.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) explora a responsabilidade ambiental e o impacto global dede ações cotidianas. O espetáculo joga com a relação entre pequena e grande escala, entre o individual e o coletivo, lembrando do papel de objetos comuns em potenciais catástrofes naturais. A encenação investiga questões cruciais, como a extensão da influência de itens do dia a dia em desastres ambientais de larga escala e como nossas ações locais repercutem em regiões distantes do planeta. 

O T-Rex surge como símbolo de resistência, convocando as crianças para uma guerrilha simbólica. O meteorito, com aberturas articuladas, revela diferentes geografias protagonizadas por outras crianças ao redor do mundo.

A peça colocar em cena relações de causa-efeito entre gestos aparentemente insignificantes e suas amplas consequências. Foto: Divulgação

Embora a peça apresente uma abordagem criativa e eficaz para simplificar questões socioambientais complexas, é importante reconhecer que esta simplificação pode resultar em uma visão excessivamente otimista da realidade. A ideia de responsabilidade compartilhada entre indivíduos, empresas e Estados merece um escrutínio mais aprofundado, considerando as intricâncias do sistema capitalista global e os interesses econômicos enraizados. Essa perspectiva subestima o poder de grupos de interesse, lobbies corporativos e dinâmicas geopolíticas que frequentemente se sobrepõem aos desejos da população em geral.

Mesmo que Brasil e Portugal compartilhem a mesma língua oficial, as variações linguísticas entre o português brasileiro e o português europeu podem ser substanciais. Essas diferenças não se limitam ao vocabulário, mas incluem pronúncia, entonação, ritmo e até construções gramaticais. Isso pode resultar em barreiras de compreensão, especialmente em contextos onde a clareza e a imediaticidade da comunicação são cruciais, como no teatro.

Isso aconteceu apresentação do espetáculo do Grupo Formiga Atômica. A quantidade de texto, a velocidade da fala do ator e seus acentos lusitanos criaram dificuldades de entendimento para as plateias brasileiras. Qual seria a solução para uma situação dessas? Utilizar legendas projetadas em português brasileiro durante a apresentação? Não tenho respostas, mas perguntas. O que aconteceu foi uma dispersão do público infantil nos momentos mais textuais.

Montagem do grupo português Formiga Atômica. Foto: Divulgação

As ações e, principalmente, as execuções dos jogos com as miniaturas filmadas mostrando as catástrofes magnetizaram a plateia. A incorporação de projeções de vídeo e filmagem ao vivo, procedimento utilizado em algumas encenações contemporâneas, enriquece visualmente a montagem e ressalta a velocidade digital em que vivemos. Esse recurso reflete um mundo onde eventos globais são transmitidos em tempo real, funcionando de maneira eficaz no contexto desta montagem.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) demonstra como o teatro infantil pode abordar temas complexos de forma acessível e envolvente. Apesar dos desafios linguísticos e de alguma simplificação, a peça consegue plantar sementes importantes para a conscientização ambiental, estimulando o pensamento crítico e o engajamento do público infantojuvenil.

 

FICHA TÉCNICA
Encenação: Miguel Fragata
Texto: Inês Barahona e Miguel Fragata
Interpretação: Edi Gaspar
Cenografia: Eric da Costa
Figurinos: José António Tenente
Música original: Fernando Mota
Desenho de luz: José Álvaro Correia
Vídeo: João Gambino
Adereços: Eric da Costa, José Pedro Sousa, Mariana Fonseca e Rita Vieira (design gráfico)
Maker: Guilherme Martins
Construção de cenografia: Gate7
Direção técnica: Renato Marinho
Consultoria: Henrique Frazão
Produção executiva: Luna Rebelo e Ana Lobato
Produção: Formiga Atómica
Produção no Brasil: Sendero Cultural | Adryela Rodrigues
Assistente de produção no Brasil: Robson Emílio
Assessoria jurídica no Brasil: Carnide, Rodrigues e Souza Sociedade de Advogados
Coprodução: LU.CA – Teatro Luís de Camões, Comédias do Minho, Materiais Diversos e Théâtre de la Ville  

A Formiga Atómica é uma estrutura apoiada pelo Ministério da Cultura | Direção-Geral das Artes  

www.formiga-atomica.com | @formiga.atomica.ac

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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MIRADA 2024:
Um Palco para as Urgências da Ibero-América

El teatro es un sueño, montagem peruada, abre o MIRADA na rua. Foto de Ramiro Contreras / Divulgação

Esperanza, do Peru, país homenageado da edição, começa a maratona teatral no palco. Foto: Paola Vera 

  • A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

Vozes da Ibero-América ecoam através das artes cênicas em Santos, cidade litorânea paulista situada a 72 km da capital. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas transforma a Baixada Santista em um vibrante palco internacional, já consolidado em sua sétima edição como um dos principais eventos teatrais do Brasil. Idealizado pelo Sesc São Paulo, o festival bienal ocorre de 5 a 15 de setembro de 2024, ocupa os espaços tradicionais de teatro e se espalha por diversos locais da cidade e seu entorno, incluindo ruas, praças e edifícios históricos.

O MIRADA 2024 apresenta uma programação com 33 espetáculos de 10 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Uruguai), promovendo debates sobre identidade, realidades sociais e crises políticas. além de shows e atividades formativas, uma instalação imersiva e o Mirada Pro – um encontro que reúne programadores e diretores de festivais de artes cênicas tanto do Brasil quanto do exterior.

O festival propõe reflexões sobre temas contemporâneos e urgentes, encarados nas diversas montagens, como questões indígenas, perspectivas decoloniais, relações com a natureza, diversidade e representatividade, deslocamentos humanos e suas implicações sociais.

 Este ano, o festival homenageia o Peru, país que tem demonstrado vitalidade cultural frente a desafios políticos e sociais. Serão apresentados onze trabalhos peruanos, incluindo oito peças teatrais e três performances musicais. A abertura do evento, com El Teatro Es un Sueño, do Grupo Cultural Yuyachkani, leva às ruas de Santos um espetáculo que testemunha a força do teatro comunitário e político. Inspirada no ensaio Notas sobre una Nueva Estética Teatral do poeta peruano César Vallejo, esta produção utiliza música ao vivo, personagens mascarados e interações. 

Também na noite inaugural, Esperanza, do dramaturgo peruano Abel González Melo, transporta o público para o início dos anos 1980 em Lima, período turbulento que sucedeu o regime ditatorial naquele país. Dirigida por Marisol Palacios e Aldo Miyashiro, produzida pela Compañía de Teatro La Plaza, a peça é ambientada no microcosmo de uma residência de classe média e desenrola-se ao longo de um único dia, quando uma família prepara um almoço estratégico para um candidato à prefeitura, visando garantir um cargo ao patriarca. A trama revela as tensões e expõe o contraste entre as aspirações de ascensão social e a realidade caótica do cenário político.

A instalação sinestésica Florestania, concebida pela artista Eliana Monteiro, convida o público a romper com a rotina urbana e mergulhar na experiência sensorial da Amazônia. A obra, que estreou na 15ª Quadrienal de Praga, apresenta 13 redes confeccionadas em fibras de buriti por mulheres indígenas da Amazônia brasileira e peruana. Os visitantes são convidados a se deitar nas redes enquanto escutam, através de fones de ouvido, os sons ambientes de um dia na floresta amazônica. Fica em cartaz durante todo o festival.

La vida em otros planetas foca na educação pública no Peru. Foto: Marina García Burgos / Divulgação

Quemar el bosque contigo adentro. Foto: Paola Vera / Divulgação

Monga, com Jéssica Teixeira. Foto de Ligia Jardim / Divulgação

Existe uma forte presença de obras que exploram a questão feminina sob diversas perspectivas. Dirigido por Mariana de Althaus, La Vida en Otros Planetas traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de professores e alunos. Inspirada no livro Desde el Corazón de la Educación Rural de Daniela Rotalde, a peça incorpora relatos reais de educadores e testemunhos pessoais do elenco. Em um cenário que remete a uma sala de aula, os intérpretes se alternam entre personagens – docentes, estudantes e familiares – e apresentam dados históricos sobre o ensino no país, esse “outro planeta” desassistido pelo sistema. A dramaturgia de Althaus ilumina a precariedade do sistema educacional e questiona o papel da mulher nesse contexto, muitas vezes invisibilizada e subvalorizada.

Outra obra de Mariana de Althaus, Quemar el Bosque Contigo Adentro, reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico que entrelaça natureza e relações sociais. Em um ambiente rodeado de folhas secas e galhos de eucalipto, a montagem expõe a história de três mulheres – avó, mãe e filha – que vivem numa zona rural peruana marcada por abusos contra meninas. A chegada do pai da garota, há anos distante, desvenda feridas silenciadas e traumas profundos. A montagem estabelece uma analogia entre o abuso do corpo feminino e a depredação da natureza.

Já a diretora chilena Paula Aros Gho apresenta Granada, uma releitura do mito grego de Perséfone que investiga a origem da violência patriarcal. Motivada pelas mobilizações feministas da quarta onda no Chile, Gho emprega o mito para abordar a luta contra a violência de gênero. A obra tem um caráter biográfico e contextual, refletindo sobre as experiências pessoais da diretora como professora universitária durante as manifestações de 2018.

¿Dónde Están las Feministas? Conferencia Performática de una Falsa Activista, de Liliana Albornoz Muñoz é uma conferência performática que mergulha nas complexidades e desafios do feminismo contemporâneo. A peça explora, através de sete capítulos e um epílogo, diversos aspectos da vivência feminista, desde estereótipos até incoerências nas atitudes de quem se identifica com o movimento.

Estratagemas Desesperados, concebida e dirigida por Amanda Lyra, é uma abertura de processo fundamentada em escritoras latino-americanas que investigam o horror e a violência em narrativas onde a mulher é o sujeito da ação. O espetáculo examina as manifestações da raiva feminina na sociedade contemporânea, explorando o contraponto entre a passividade do espaço doméstico ancestral e o desejo de um revide violento no âmbito social. Lyra, em sua primeira direção, traz à tona personagens que criam estratagemas desesperados para sobreviver e inverter a lógica de poder, desafiando os padrões morais e culturais de feminilidade.

Em Monga, Jéssica Teixeira continua a pesquisa iniciada em seu primeiro solo, E.L.A., utilizando seu corpo como matéria para a construção dramatúrgica. O trabalho revisita a história de Julia Pastrana, frequentemente referida como “mulher macaco” e transformada em atração de freak shows. Monga traz à tona o gênero do terror psicológico para questionar as normalizações do corpo feminino e derrubar mitos, na perspectiva de construir outros imaginários possíveis.

Yo soy el monstruo que os habla, do filósofo Paulo B. Preciado. Foto: Enric Rubio / Divulgação

Tierra gira em torno da morte da mãe do autor Sergio Blanco. Foto: Nairí Aharonián / Divulgação

Paul B. Preciado destaca-se no âmbito da filosofia e dos estudos sobre identidade e sexualidade, sendo reconhecido por sua abordagem pioneira na teoria queer e por questionar incessantemente as normas convencionais de gênero e sexualidade. A peça Yo Soy el Monstruo que os Habla é uma adaptação teatral de um discurso que Preciado proferiu em 2019 para 3.500 psicanalistas em Paris. O título, Eu Sou o Monstro que Vos Fala, já indica o tom desafiador e provocativo da obra. Preciado, como homem trans e pessoa não-binária, coloca-se na posição do “monstro” – aquele que a sociedade e a ciência tradicionalmente patologizaram.

A produção teatral busca ampliar o impacto do discurso original ao colocar em cena cinco performers trans e não-binários. Estes “monstros” são convidados a sair da “jaula” metafórica em que foram colocados pelas normas sociais vigentes. A peça critica a violência que a psicologia tradicional exerce sobre corpos dissidentes, convida a uma reformulação radical do pensamento sobre gênero e identidade.

Conhecido por sua exploração da autoficção no teatro, o dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sergio Blanco tem consistentemente borrado as linhas entre realidade e ficção em suas obras. Tierra (Terra) é uma peça profundamente pessoal que gira em torno da morte da mãe de Blanco, Liliana Ayestarán, uma respeitada professora de literatura. A obra se passa numa quadra esportiva escolar, com a escrivaninha de sua mãe, criando um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e ressonante.

Neste contexto, Blanco “entrevista” três personagens fictícios que foram alunos de sua mãe. Cada um traz consigo uma história íntima de perda, criando um mosaico de experiências sobre o luto e a memória. Essa configuração possibilita a Blanco investigar tanto sua própria dor quanto o aspecto universal do luto e seu impacto em nossas vidas.

Essa abordagem questiona a natureza da narrativa e da representação teatral, coisa que Blanco já fez em obras como Tebas Land, La Ira de Narciso e El Bramido de Düsseldorf.

Produção argentina A Velocidade da Luz. Foto: Kazuyuki Matsumoto / Divulgação

Montagem Palmasola, sobre o sistema prisional boliviano. Foto: David Campesino / Divulgação

Duas produções site-specific (espaços urbanos transformados em palcos vivos para a exploração de temas sociais complexos) que se destacam no cenário teatral contemporâneo e que estão presentes no MIRADA são A Velocidade da Luz e PALMASOLA – uma cidade-prisão. Essas obras utilizam espaços urbanos para criar experiências provocativas.

A Velocidade da Luz, dirigido pelo argentino Marco Canale, com duração de 180 minutos, é um espetáculo itinerante que convida o público a embarcar em uma jornada pelas ruas da cidade. A peça entrelaça histórias reais de moradores locais com uma trama fictícia. Durante uma residência de quatro semanas, Canale trabalhou com idosos da região para coletar suas memórias e experiências. Esses relatos pessoais foram incorporados à performance, permitindo que os próprios moradores participassem como atores, muitos sem experiência teatral prévia.

Os espectadores são guiados por diferentes locais da cidade, incluindo as casas dos participantes e um local considerado “sagrado” para a comunidade. Em cada parada, histórias são compartilhadas, canções são entoadas, e uma cartografia emocional do território é gradualmente construída.

Criado pelo grupo suíço KLARA-Theaterproduktionen em parceria com artistas bolivianos, PALMASOLA – uma cidade-prisão promete proporcionar uma experiência teatral impactante. Transformando a Casa da Frontaria Azulejada em Santos numa réplica da penitenciária Palmasola em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, a obra se aprofunda na realidade alarmante desse local. Ali, detentos e seus familiares compartilham um cotidiano sob regras próprias, em meio a desigualdades sociais e econômicas marcantes.

A trama avança a partir da ficção de um viajante estrangeiro capturado por tráfico de cocaína. Com encenação de Christoph Frick, diretor artístico da KLARA, a obra mescla elementos ficcionais e documentais, apresentando as realidades brutais do sistema prisional. A produção incorpora elementos multimídia, com vídeos que provavelmente ampliam a sensação de imersão e fornecem contexto visual adicional. A música investe na construção da atmosfera e tensão dramática.

A montagem paulista Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento em destaque, sob a direção de Naruna Costa e texto de Jhonny Salaberg, lança um olhar crítico sobre o sistema prisional feminino no Brasil, com foco especial nas mulheres negras e mães.

O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona traz à cena Esperando Godot. Nesta interpretação da clássica peça de Samuel Beckett, que serve como uma metáfora para a desolação pós-conflitos bélicos, o grupo propõe uma ruptura com a noção de messianismo, incentivando uma postura ativa e um apreço pelo viver o momento. 

O Grupo MEXA prossegue com sua exploração em torno do teatro baseado na realidade e do documentário teatral através de Poperópera Transatlântica. Este trabalho tece uma conexão entre as vivências pessoais dos membros do elenco e o poema épico Odisseia, de Homero. 

O Estado do Mundo (Quando Acordas), de Portugal. Foto: Manuel Lino / Divulgação

Vila Socó rememora tragédia de bairro operário. Foto: Sander Newton / Divulgação

Contra Xawara, com Juão Nyn. Foto: Bruna Damasceno / Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), da companhia portuguesa Formiga Atómica, e Vila Socó, pelo brasileiro Coletivo 302, compartilham uma preocupação com as consequências ambientais e sociais de ações humanas, destacando a urgência de uma consciência coletiva voltada para a sustentabilidade. A tragédia industrial narrada em Vila Socó é resgatada através de uma experiência imersiva que resgata a memória e a história de um bairro operário.

A preocupação ambiental é radicalizada no manifesto performático Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta, do brasileiro Juão Nyn, que discute as enfermidades e explorações trazidas pelo contato entre povos originários e colonizadores e suas consequências duradouras sobre as comunidades indígenas.

Ubu Tropical, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz _Foto: Maíra Ali Lacerda Flores / Divulgação

G.O.L.P. Foto: João Octávio Peixoto / Divulgação

Cabaré Coragem. Foto de Guto Muniz / Divulgação

A temática da ambição pelo poder e suas consequências devastadoras é explorada em Ubu Tropical e Mendoza. A primeira, uma produção da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do Brasil, utiliza a sátira para criticar a corrupção e a estupidez no poder, inspirando-se na obra de Alfred Jarry e refletindo sobre o cenário político brasileiro com influências do tropicalismo e modernismo. Enquanto El Presidente Más Feliz (Peru) é uma sátira que discute a corrupção e o abuso de poder, utilizando dança, música e criações audiovisuais para retratar a polarização e a fragmentação social.

Por outro lado, Mendoza, da companhia mexicana Los Colochos Teatro, reimagina a tragédia de Macbeth para o contexto da Revolução Mexicana, oferecendo uma perspectiva crítica sobre a luta pelo poder e suas implicações sangrentas.

G.O.L.P., um esforço conjunto do Teatro Experimental do Porto de Portugal e do Teatro La María do Chile, introduz uma camada adicional de complexidade ao debater a eficácia dos sistemas políticos através de uma ucronia (subgênero da ficção, que explora realidades alternativas baseadas em “e se” históricos. A ucronia reimagina o passado, propondo um desvio em eventos históricos conhecidos, resultando em um presente ou futuro alternativo) que contrasta um Portugal comunista idealizado com um Chile democrático em crise. A encenação questiona a capacidade de aprender com o passado para moldar futuros mais promissores, adicionando ironia e reflexão sobre a natureza cíclica do poder e da política.

Cabaré Coragem, apresentado pelo Grupo Galpão, do Brasil, reafirma o papel vital da arte como um meio de resistência. Inspirado na obra de Bertolt Brecht, esse espetáculo mistura teatro, música e dança, celebrando a identidade e a persistência artística frente às adversidades, e ecoando as preocupações com o poder e a corrupção presentes nas outras obras.

El Rincon De Los Muertos, do Peru. Foto: Claudia Cordova Zignago / Divulgação

Arqueologias do Futuro. Foto: Rodrigo Menezes / Divulgação

Historia de una oveja. Foto de CNA (Centro Nacional de las Artes – Delia

El Rincón De Los Muertos, monólogo protagonizado pelo ator Ricardo Bromley, mergulha nos ciclos de violência que marcaram profundamente a cidade de Ayacucho, situada na região dos Andes peruanos. Mama Angélica, pela Antares Teatro, conta a história de Angélica Mendoza de Ascarza, uma ativista social que busca seu filho desaparecido, refletindo sobre os direitos humanos e o impacto da violência política no Peru.

Historia de una Oveja, pela colombiana Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes, expande essa discussão ao trazer à tona as histórias de deslocamento e busca por identidade. Enquanto Subterrâneo, um Musical Obscuro, uma colaboração entre os portugueses da Má-Criação e os brasileiros do Foguetes Maravilha e Dimenti, é inspirado no acidente da mina San José no Chile. O espetáculo imagina as histórias dos 33 homens presos.

Arqueologias do Futuro, de Mauricio Lima e Dadado de Freitas, combina memórias pessoais do artista Mauricio Lima com vídeo depoimentos de jovens envolvidos no projeto Museu dos Meninos. Esse trabalho investiga as narrativas corporais, questionando quais corpos são reconhecidos e ouvidos, além de refletir sobre quem possui a autoridade para contar suas próprias histórias.

As Cores da América Latina. Foto: Hamylle Nobre / Divulgação

Azira’i, da atriz Zahy Tentehar. Foto: Annelize Tozetto / Divulgação

VAPOR, ocupação infiltrável (Brasil) e As Cores da América Latina (Brasil) são destaques na dança. VAPOR utiliza a capoeira e o breaking para criar uma dança não simétrica que emerge de movimentos cotidianos, refletindo sobre a invisibilidade social dos jovens nas periferias brasileiras. Já As Cores da América Latina celebra tradições culturais latino-americanas, como a Fiesta de la Tirana e o Cavalo Marinho, propondo um diálogo entre essas manifestações e elementos do teatro, para contar a história do último Fofão do Carnaval maranhense. Ambas as produções exploram a ressignificação de fronteiras e a preservação das tradições culturais.

De Mãos Dadas com Minha Irmã mescla técnicas teatrais e linguagens afro-brasileiras para narrar a trajetória da heroína Obá, explorando a desvalorização das mulheres e a importância da memória cultural. 

A encenação argentina Sombras, Por Supuesto e a produção brasileira Azira’i trazem narrativas intimistas e pessoais, explorando a ausência e a memória. Sombras, Por Supuesto inspira-se no universo de Rainer Werner Fassbinder para criar uma trama realista com diálogos absurdos, enquanto Azira’i narra a relação da atriz Zahy Tentehar com sua mãe, a primeira mulher pajé de sua reserva indígena, utilizando elementos da cultura indígena e da memória pessoal. Essas produções investem no mergulho emocional de histórias que exploram a identidade e a herança cultural.

Teuda Bara, atriz de Cabaré Coragem, do Grupo Galpão participa do Encontro ao Vivo. Foto de Nayra Maria 

O MIRADA inclui atividades formativas, encontros críticos e apresentações musicais, como a da banda de cúmbia peruana Los Mirlos.

Os Encontros ao Vivo, as entrevista, com a mediação da jornalista Adriana Couto serão oportunidade de conhecer um pouco mais de alguns artistas e pensadores das artes cênicas ibero-americanas. Miguel Rubio Zapata e Marisol Palacios discutirão o potencial transformador do teatro na sociedade e a importância dos festivais como espaços de inovação. Daniel Veiga e Faby Hernández abordarão a representatividade e a identidade, destacando a arte como um meio de ativismo e inclusão. Teuda Bara e Mariana de Althaus conversarão sobre a intersecção entre dramaturgia e atuação, explorando como o teatro reflete e constrói realidades. Ricardo Bromley e Jéssica Teixeira compartilharão suas experiências em trabalhos que questionam memória, identidade e o uso do corpo na arte, sublinhando o papel da expressão artística como veículo de transformação social.

O Boteco Crítico é iniciativa que recria a atmosfera descontraída das conversas pós-espetáculo, convidando o público a participar de debates informais sobre as obras apresentadas. A ação neste festival é conduzido por um grupo de críticos teatrais Amilton Azevedo, Fernando Pivotto, Heloisa Sousa, Guilherme Diniz e Fredda Amorim; os quatro primeiros do do projeto Arquipélago.

O festival também oferece uma série de oficinas e aulas abertas, como a oficina com Ricardo Aleixo, que explora a poética da performance, e a aula aberta com Cristian Duarte, que propõe uma experiência coletiva de movimento e dança.

Os Encontros para o Futuro reúnem artistas, pensadores e fazedores de arte para discutir proposições criativas e reflexões sobre o futuro das práticas artísticas. Mediados por profissionais como Cristina Moura e Márcio Abreu, essas ações oferecem um espaço para diálogos abertos sobre os caminhos possíveis para a arte contemporânea.

Programação completa e mais informações em:  https://sescsp.org.br/mirada

Serviço:

MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas
Data: 5 a 15 de setembro de 2024
Local: Santos, SP, Brasil
Ingressos: Disponíveis no portal do Sesc SP, app Credencial Sesc SP, Central de Relacionamento Sesc SP, e nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo. (https://sescsp.org.br/mirada).
Preços:
R$ 10 (credencial plena)
R$ 20 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 40 (inteira)

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Agora Crítica, CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Minha pequena maratona pelos bosques do Mirada

Erupção – O levante ainda não terminou, da ColetivA Ocupação, de SP. Foto: Matheus José Maria / Divulgação

Fuck me, espetáculo da argentina Marina Otero. Foto: Diego Astarita / Divulgação

Hamlet, montagem com artistas com Síndrome de Down da Teatro La Plaza, de Lima, Peru. Foto: Divulgação  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, do dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sérgio Blanco. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, do Teatro Bombón, da Argentina. Foto: Divulgação

Fiz minha pequena maratona pelos bosques do Mirada. 13 espetáculos + um e uma abertura de processo em seis dias, de 12 a 17 de setembro. Minha curadoria particular seguiu alguns critérios. Montagens com maior dificuldade de ver depois, visto que não desceriam a serra ou pouco provavelmente circulariam pelo Brasil. Alguns grupos que já conhecia, interesse pela temática, disponibilidade de ingresso e intuição, ou seja, apostar no que a produção estava vendendo como espetáculo. Dessa forma consegui assistir peças de Portugal, Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai.

O Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas ocorreu entre 9 e 18 de setembro. Cheguei no quarto dia de festival e fui embora antes do fim. Acho que tenho algum problema com essa ideia de fim.

No Mirada acontecem tantas coisas ao mesmo tempo, com choques de horários, que é humanamente impossível acompanhar tudo. Então existem muitos Miradas dentro do Mirada, como ocorre com grandes festivais pelo mundo. Performances, ações formativas, lançamento de livros, etc. etc. etc.  Só de espetáculos programados foram 36.  Alguns não verei jamais e espero que não sejam os que me tocariam profundamente. Mas isso a gente nunca saberá. Parecem ideias tão abstratas como as possibilidades de encontros não concretizadas.

Foi um percurso irregular em meio a essa profusão de vozes que projetam, talvez, o recorte mais cintilante da produção contemporânea das artes cênicas ibero-americanas.

De gratas surpresas e pequenos desapontamentos (mas isso é porque de algum modo havia expectativa), confirmações e inquietações. A vida é um pouco assim, né?!!!

No ano que marca o bicentenário da “Independência” do Brasil, Portugal é o país homenageado. Independência com muitas aspas, mas a data é oficial. É uma provocação pensar sobre a relação entre os dois países. Isso foi posto em cena de alguma forma. Nós que avançamos de colônia à monarquia até chegar à República, já passamos por tanta coisa: “libertação”, eleições restritas, ditaduras, golpes, ditaduras, eleições amplas, democracia, golpe, de-mo-o-quê?, a “invasão” de Portugal por brasileiros que fugiram desse estado de coisas dos últimos quatro anos. Não sei se assisti aos mais impactantes espetáculos portugueses. Mas muitas redes foram trançadas, vi de longe.

Farei um passeio pelos espetáculos que acompanhei desse evento produzido pelo Sesc São Paulo, por ordem das peças que assisti, mas isso pode mudar ao longo do caminho. 

As atrizes Mayra Homar e Maiamar Abrodos estão no espetáculo La Mujer que Soy. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, Teatro Bombón

O saguão do histórico Atlântico Hotel, situado defronte do mar de Santos ficou animado para as apresentações da peça La Mujer que Soy, uma produção do festival argentino Teatro Bombón, de Buenos Aires, Argentina, que se tornou o xodó do Mirada, com todas as sessões lotadas.  O número reduzido de espectadores, o local fora do teatro (a peça foi criada para ocorrer em site specific), a simultaneidade da encenação em dois apartamentos exibindo duas perspectivas da mesma história, talvez, tenham sido o chamariz.

As surpresas positivas ainda são maiores no jogo cênico. Escolhi começar pelo lado B, Martha’s, um apê sóbrio, que traduz o estilo de vida da moradora. Num pequeno espaço, com cerca de 30 espectadores “muito unidos”, a personagem Cecilia, a filha (Mayra Homar) chega com a namorada (Daniela Pal) na casa de Marta, a mãe (Silvia Villazur), para passar uma temporada. Marta, e a plateia, suspeitam que a namorada é uma tremenda aproveitadora, disposta a dar uns golpes enquanto faz declarações de amor.

No lado A, Mercedes’, um apê vibrante, de temática queer; Marta tenta reconquistar o carinho do ex-marido, a travesti Mercedes que fez a transição de gênero após o divórcio, vivida pela atriz transexual Maiamar Abrodos. É inspiradora como é conduzida na peça uma relação amorosa entre uma mulher trans e outra cisgênero, sem conotações estranhas ou discriminatórias: um exercício amoroso no fluxo de vida. 

É uma história de gente comum, às voltas com seus dramas ordinários, movida pela busca de felicidade, contada de forma emotiva e com uma proximidade desconcertante. A dramaturgia e direção de Nelson Valente equalizam as tensões com maestria.

Para mim se destacam nesta montagem as corpas insubmissas aos padrões de beleza, a bulir de desejo e que vão à luta para conquistar o que querem.

La Mujer que Soy me ganhou pelas interpretações fortes, com intensidade e entrega e vibração específica, marcadas de uma jeita argentina de ser, algo que vai do estridente à delicadeza. E como destaque dessa cena, a atuação de Silvia Villazur com sua presença intensa, com capacidade de dizer muito com um levantar de sobrancelhas ou um pequeno gesto com a cabeça. Fez o coração do público pulsar em suas mãos.

Essa lente de aumento para uma determinada realidade que o Teatro Bombón propõe é super interessante. Criado em 2014 enquanto festival de arte site-specific de obras curtas, o programa já chegou a dez edições, com mais de  60 obras originais de teatro, dança e performance. Com curadoria de Monina Bonelli, Cristian Scotton e Sol Salinas, o Teatro Bombón ativa o sentido comunitário do fazer teatral, que, ao que parece, tem resultados excelentes de reconexão humana.

A Produção no Brasil é assinada pela OFF Produções Culturais, com André Cajaiba, Celso Curi, Heloisa Andersen e Wesley Kawaai.

La Mujer que Soy foi um dos melhores momentos do meu percurso neste sexto Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc, o Mirada 2022.

Orgia, Pasolini, montagem portuguesa com direção de Nuno M Cardoso. Foto: Raquel Balsa / Divulgação

ORGIA, PASOLINI Teatro Nacional 21 

Há uma radicalidade na encenação de Orgia, Pasolini, do diretor português Nuno M Cardoso, que não é fácil de entrar, ou de ficar. A densidade do texto exige muita atenção e disponibilidade da plateia. A ação cênica é rara, quase ausente. Os elementos da encenação são reduzidos. O diretor já disse que se espera que plateia ouça mais que veja.

O palco se transforma em altar sacrificial, um círculo de muitas toneladas de argila preta onde os atores se confundem com o material – uma instalação da artista Ivana Sehic. Um território enlameado combina violência, culpa e obsessão. Mas não é uma história pornográfica ou erotizada. O figurino negro, a luz baixa, os elementos são combinados para saturar o trajeto noturno.

Orgia ocorre num domingo de Páscoa. Um homem já morto vai ao teatro contar sobre os momentos finais da sua vida e elucidar o motivo do suicídio. Uma voz póstuma, entre narrador e protagonista a “rebobinar a existência”. Ele e uma mulher buscam se entregar aos prazeres sadomasoquistas, mas a moral hipócrita da sociedade produz a esquizofrenia, que pressiona a mulher a se suicidar. O homem vai atrás de outra parceira, mas ele se suicida.,

Teatro da palavra, protagonismo da palavra, Orgia é reflexão densa, profunda sobre Eros e Tânatos. É arma contra o pensamento precário destes tempos.

A peça adentra pelos rituais de continuidade em repetição. As figuras são ideias a serem ouvidas durante uma hora e meia. Três intérpretes (Albano Jerónimo, Beatriz Batarda e Marina Leonardo) se deslocam no palco. Albano Jerónimo e Beatriz Batarda lutam, sem fúria. Os movimentos são contidos, a velocidade é lenta. Mas a palavra fere.

Festa de inauguração, do Teatro do Concreto, com direção de Francis Wilker Foto: Diego Bresani

Festa de inauguração  – Teatro do concreto

A história é uma construção, com predominância das narrativas dos vencedores, ou seja, da elite, é o que performa o Teatro do Concreto na sua Festa de inauguração, apresentada na Casa da Frontaria Azulejada. Mas de vez em quando os subalternos driblam essa regra. A peça foi inspirada numa reforma por infiltração no teto do Salão Verde do Congresso Nacional, em 2011. Foram encontradas no local mensagens (para o futuro) escritas a lápis, nas paredes que ficam entre o forro e a laje, pelos operários que construíram o prédio em 1959.

Entre os registros, o de José Silva Guerra, datado de 22 de abril: “Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra”.

O espetáculo, com Gleide Firmino, Micheli Santini, Adilson Diaz e Diego Borges, trabalha o ciclo constante da humanidade de construção-destruição-construção para irradiar com humor corrosivo, às vezes com melancolia, ou até faíscas de esperança, a relação entre o público e o privado, o que de público é realmente usufruído pelo coletivo e o confisco da coisa pública por alguns privados.  

A dramaturgia de João Turchi e a direção de Francis Wilker manejam em quadros performativos os conteúdos soterrados que emergem em algum apontamento da história pela ação artística.

A plateia participa ativamente dos momentos de quebrar e do ajuste de compor os destroços para a próxima sessão. Há algo de esperançar nesse performar ruínas.

Uma alegria assistir a essa montagem em que o microfone da peça e a coroa do príncipe de Shakespeare são revezados pelos atores. Um Hamlet inesquecível. Foto: Divulgação

Levar ao palco uma visão de mundo revigorada por jovens e adultos com Síndrome de Down foi o que o grupo peruano Teatro La Plaza fez no espetáculo Hamlet. A experiência dessas pessoas preenche algumas lacunas da máquina da ficção e desloca outras brechas para criar diferentes percursos para o clássico de William Shakespeare.

Sem pudores nem autocomplacência, a turma segue e subverte as pulsações do príncipe da Dinamarca, potencializa Ofelia, cria outras armadilhas para Claudio. Ao falar direto com a plateia sobre a condição deles, algum tipo de comprometimento intelectual ou dificuldade motora, o elenco revela sobre a singularidade de cada artista, de forma engraçada e apaixonante. E mais, o elenco reafirma como é difícil e prazeroso fazer teatro.

Com irreverência, originalidade e eco pop, a montagem – assinada pela peruana Chela De Ferrari com dramaturgismo com Claudia Tangoa, Jonathan Oliveros e Luis Alberto León –  propõe algumas subversões. Dificuldades de fala e linguagem, problemas de habilidades sensoriais e perceptivas são levantados para apontar que nosotros / nosotras temos algo quebrado, insuficiente, qualquer um e como é difícil reconhecer.

Ao combater o preconceito e a discriminação com uma onda elétrica de humanidade, pela via do teatro, os artistas do La Plaza sinalizam para quem quiser ver e ouvir que como é baixa nossa vã filosofia sobre normalidade e arte.

Vida longa à ColetivA Ocupação, de São Paulo e a sua Erupção – O levante ainda não terminou, que estreou no Mirada. Foto: Divulgação

Erupção – O levante ainda não terminou

Estreia disputada do espetáculo Erupção – O levante ainda não terminouda ColetivA Ocupação, de São Paulo, com direção de Martha Kiss Perrone.  A montagem foi gestada da indagação: “O que é o fim do mundo para mundos que já terminaram há muito tempo?”. A existência é luta no trabalho desses jovens artistas que carregam a cena de revolução, festa, guerra, subversão no tempo espiralado entre passado e futuro, numa perspectiva decolonial. As corpas cis e trans fervem e desse calor são traçadas coreografias, experimentados breves virtuosismos da dança urbana, numa insubordinação da Terra que borbulha e gente se revolta.

Há uma mistura de bruxaria negra, levante dos Malês, Revolução de São Domingos e uma energia concentrada de que a guerra é contra todos aqueles que os querem matar, fisicamente, intelectualmente, psicologicamente, e de outros jeitos.    

A coletivA é feita por jovens artistas que buscam o protagonismo de suas histórias com sede de liberdade.  Erupção – O levante ainda não terminou é a segunda peça da companhia que chegou chegando com Quando Quebra Queima (2017), erguida nas ocupações de escolas públicas em São Paulo.

A presença quente dessas garotas e desses garotos nesta segunda peça da ColetivA Ocupação projeta-se vibrante e utópica. Em Quando quebra queima, o elenco transpirava arte com um jeito meio desengonçado das corpas desequilibradamente de adolescentes em  crescimento, aquela fase de transição em que há desajustes de domínio. Em Erupção – O levante ainda não terminou, a trupe chega com carga total de hormônios. E ainda destreza das corpas, ousadia e uma beleza coletiva contagiante, numa mostra de que a vida que importa é poesia, e essa poética se traduz em revolução. A montagem cruza temas como colonialidade, questões ambientais, genocídios e antirracismo. Vida longa e força na luta para a ColetivA Ocupação, de São Paulo e seu espetáculo Erupção – O levante ainda não terminou. Evoé!!!

Tijuana, com o ator Lázaro Gabino Rodríguez. Foto: Divulgação

A crise de representatividade como questão da política, e do teatro, é tensionada pelo coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, no espetáculo Tijuana. Nele, o ator Lázaro Gabino Rodríguez conta e performa sua experiência quando adotou / inventou a identidade, por quase seis meses, de Santiago Ramírez, um cidadão que vai morar em Tijuana (Baja California, na fronteira com os Estados Unidos), para ganhar um salário-mínimo numa fábrica.

Com essa experiência, o artista buscou explorar as possibilidades de representação. “Viver” a vida de outra pessoa, isso seria atuar? Essa é uma pergunta constante no trabalho.

Santiago Ramirez “escolheu” morar numa das regiões mais pobres da cidade, onde alugou um quarto numa casa de família.

Gabino Rodriguez é um ator com bom trânsito no circuito dos festivais internacionais. Em Tijuana ele expõe seus arquivos de texto e vídeo, narra o que passou e embaralha o status de verdade. A família que lhe alugou o quarto aceita tão plenamente o disfarce como real que Ramirez é agregado nos almoços de domingo.

O intérprete viveu esse tempo apartado do seu mundo de classe média e mergulhou na dureza da vida operária. Não atingiu os seis meses com 3,5€ euros por dia, desafio que tinha se proposto. Pesaram as dores nas costas, o medo de ser desmascarado e agredido por não ser quem dizia ser até a morte, a pressão do bairro, a falta de água quente. A rotina massacrante comprometeu, aos poucos, sua condição emocional.

Essa dramaturgia baseada em práticas dos teatros do real, documentário e performativo desloca a percepção do espectador. Os procedimentos do real e do ficcional são borrados durante a encenação provocando desequilíbrios constantes na apreensão cognitiva e percepção sensorial do espectador. 

A peça integra um ousado projeto chamado La Democracia in Mexico e prevê a criação de uma série de espetáculos na intenção de conjeturar acerca da realidade mexicana e suas contradições.

Fuck me, espetáculo de Marina Otero com cinco bailarinos. Foto: Divulgação

A argentina Marina Otero realmente me desconcertou com seu com Fuck me. Saí atordoada do espetáculo, sem saber o que pensar nos primeiros momentos. Sotero aparece em cena andando com dificuldade e convence que se arrebentou na lida da dança radical, nos traumas e tombos, nas quedas de quebrar ossos.  Mas em Fuck me, a fraqueza é apenas uma máscara da bailarina imponente.

A artista levou seu corpo ao limite humano em prol de seus projetos. Esse equipamento de carne-nervos-sangue-ossos submetido a tantos choques e aberturas aparece danificado na cena. Prejudicada com seu instrumento de trabalho, ela convoca cinco bailarinos, belos, musculosos e dispostos a tomar o lugar de sacrifício para substituí-la na cena, na derradeira parte de um autorretrato criado por Otero.

São cinco Pablos, nome escolhido pela dançarina e coreógrafa argentina, entregues à causa narcisista de Marina Otero. Cada um deles narra um pedaço da trajetória dela. Marina dança desde a infância. É uma obsessão desde lá. E ela revela mais de sua vida, a filha de pai militar, e a repercussão da trajetória da ditadura que devastou seu país, a misoginia e o machismo de homens com os quais se envolveu. A violência que sempre atravessou seu corpo.

Marina é convincente e os arquivos de sua vida pregressa comprovam as manobras corporais feitas pela artista, que beiram a autodestruição, alguns espetáculos, suas memórias familiares e os registros do hospital que dão testemunho de sua espinha estragada. O sofrimento, a operação, a dança que cai.

Foi numa cama de hospital que ela concebeu essa última parte da série auto fictícia Recordar para Vivir, iniciada em 2012 com Andrea, seguida em 2014 com Recordar 30 Años para Vivir 65 Minutos. Ela lembra uma Frida Kahlo do século 21, às voltas em expressar com arte suas dores de corpo quebrado, de ser ela própria arte apesar de toda ruína. É impactante, desafiador.

Essa peça-catarse remete para qualquer coisa de amodovariana na exposição desses destroços, desses elementos que a artista leva para o palco, da criação feita enquanto se recuperava de uma grave lesão na coluna, ocorrida em 2019. O acidente a deixou sem caminhar, dançar e trepar, que em sua prática está tudo relacionado.

Marina embaralha os tempos presente e passado. Mesmo quando se apresenta como uma velhinha com limitações motoras, ela se mostra altiva a exigir de seus bailarinos uma doação máxima. Sem poder dançar, ela passa para eles a missão de executar movimentos ousados, extravagantes, numa multiplicação dela mesma.

Essa peça arrebatadora atiça nas suas camadas os efeitos do passar do tempo. Traz um desempenho deslumbrante dos bailarinos Augusto Chiappe, Cristian Vega, Fred Raposo, Matías Rebossio, Miguel Valdivieso. É possível lembrar da autoflagelação de Angelica Liddell. Mas Marina Otero tem um percurso todo seu, deslumbrante na oscilação do tragicômico. E acima de tudo admirável e imprevisível em sua cena final.  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, com dramaturgia e direção de Sergio Blanco. Foto: Divulgação

“A verdade também se inventa”,  é uma frase do espetáculo Tijuuana, do coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, mas que cabe muito bem em outras peças.

As pistas falsas traçam os fios no jogo da autoficção do dramaturgo franco-uruguaio Sérgio Blanco na peça Cuando pases sobre mi tumba. Mais uma vez ele narra sua própria morte de forma fictícia e nesta montagem Blanco é interpretado por Sebastián Serantes. Ele decide morrer e para isso recorre ao suicídio assistido, em uma clínica em Genebra, na Suíça. Faz uma consulta com o Dr. Godwin (Gustavo Saffores). O último desejo de Sergio é que seu corpo, depois de enterrado, seja violado por um jovem necrófilo iraniano (Felipe Ipar).

Blanco faz uma autópsia do desejo de poder decidir sobre o término da existência. E explica na encenação a diferença entre a morte assistida e a eutanásia. O tema é tabu e quem já viu alguma coisa da trajetória do artista prossegue encantada com sua capacidade de criar tramas tão inventivas, que não sabemos o que é real e o que não.

 Blanco, que assina o texto e a direção, tem um estilo único de misturar elementos, de ajustar a progressão dramática, mexer com  gráficos projetados, utilizar intervenções musicais, manejar com precisão drama pesado com momentos engraçados. 

A encenação é dinâmica e encantadora, intensa e maneja bem as emoções. Blanco é expert em manter a plateia entusiasmada por suas histórias.

La Luna en El Amazonas, do Mapa Teatro, da Colômbia. Foto: Rolf Abderhalden / Divulgação

La Luna en el Amazonas – Mapa Teatro

Mas é preciso apressar o passo desse passeio. E serei mais suscita nas próximas paragens. Espero.

O espetáculo La Luna en el Amazonas, dirigido pelos irmãos Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden, do grupo Mapa Teatro, de Bogotá, faz conexões da realidade atual com episódio do século 19, sobre uma comunidade indígena que se isolou em virtude da violenta invasão ao seu território na Amazônia colombiana.

O espetáculo faz referências ao filme Memória (2021), do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, gravado na Colômbia e com atuação de dois atores da peça.

Para erguer a montagem eles fizeram uma cuidadosa pesquisa cruzando textos  científicos e ficcionais, articulando potente material visual, sons eletrônicos e música ao vivo e o resultado é uma enxurrada de imagens, arranjadas em variadas velocidades e combinações que se assemelha a uma viagem lisérgica.

 São muito graves denúncias de destruição, assassinatos, apropriações que o grupo faz com no espetáculo. A trupe fala em resistência poética das áreas da floresta contra uma possível nova colonização. Mas não consegui abraçar em plenitude o excesso de informações, imagens, jogos visuais e gráficos, dramaturgia desse quase-manifesto.

Brasa, de Tiago Cadete. Foto: Bruno Simão / Divulgação

Brasa – Tiago Cadete/Co-Pacabana

Séculos se passaram desde a chegada dos portugueses ao que hoje chamamos de Brasil. Depois disso, sabemos agora com mais consciência (torço), vieram a colonização, evangelização forçada, escravização dos povos originários e dos trazidos forçosamente da África, tudo isso realizado com muita violência e incalculável número de mortos. Tiago Cadete é um criador lusófono que investiga os impactos desses processos e as relações entre Brasil e Portugal atualmente.

Brasa, de Cadete examina essas negociações atuais desse ato de cruzar os oceanos de antigos colonizadores e colonizados, agora motivado por outras ordens e o aumento das migrações de brasileiros para Portugal.

O próprio Tiago Cadete vivenciou esse trânsito entre entre Lisboa e Rio de Janeiro nos últimos oito anos. Artista performativo e visual, o português veio ao Brasil para cursar pós-graduação na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ao lado de cocriadores migrantes dos dois países – Isabél Zuaa, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco e Raquel André -, Cadete constrói sua Brasa de crítica histórica.

Na peça ele expõe atritos de percepções e convergências e tenta aprofundar a análise em algumas perspectivas. Leva à cena com doses de humor a “Carta do Achamento do Brasil”, do Pero Vaz Caminha, desdobrada em outras sequências em que são exploradas questões de xenofobia e ações antidemocráticas de vários tipos, em graus ampliados.

A plateia é alojada em um dos dois espaços cenográficos e acompanha imagens de uma floresta em chamas, dança das caveiras, referências ao futebol, à língua, aos sentimentos  para fazer arder um pensamento crítico sem subserviência.  

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion – Grupo Yuyachkani

O grupo peruano Yuyachkani explora uma linha memorialística em seus trabalhos e em Discurso de promoción (Festa de formatura) passa em cena o bicentenário da Independência do Peru, agenciando criticamente as heranças coloniais. Existe uma exuberância na cena que beira o caótico e o exagero para apresentar vários períodos históricos e a crítica a esses momentos. A trupe teatral nascida em 1971 tem uma importância indiscutível para o mapa das artes do seu país, tanto por sua atuação coletiva quanto pelas escolhas políticas, das teatralidades peruanas e das tradições indígenas.

O Yuyachkani utiliza nas suas obras arquivo documental, fotografia, instalação, dança e jogo, valorização do corpo no espaço e ativismo cidadão, como eles chamam. Sob a direção de Miguel Rubio Zapata, Discurso de promoción tem de tudo isso um pouco, de forma muito intensa. Entre ações performativas, envolvendo cultura popular e dispositivos do teatro documentário são mais de duas horas.

Apresentado no Herval 33, uma espécie de grande galpão em Santos, a ação se deslocava no espaço cênico e o público precisava acompanhar as andanças, ora sentando-se no chão, ora ficando em pé, o que provocou um cansaço desnecessário. Há de ter outras soluções menos incômodas para a fruição do espetáculo.

A encenação passa por vários estados – do festivo ao fúnebre – e começa com uma espécie de quermesse em que estudantes com um civismo cego exaltam o bicentenário da independência e com apresentações amadoras buscam arrecadar dinheiro para a formatura da turma, que será comemorada com uma excursão a Machu Picchu, cidade edificada pelos incas.

O segundo ato dá uma guinada para a revisão crítica dos heróis oficiais e de outras representações históricas. São muitos dados específicos da contestação dos atos emancipatórios e da ocupação dos espaços de libertação por homens brancos com algum destaque político ou religioso e a representação secundária do povo. É extremamente louvável essa crítica e autocritica no trato da história. Mas há dificuldade de recepção para a cena, principalmente para quem não é do país do Yuyachkani.

Fronte[i]ra |Fracas[s]o, parceria do Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare Foto: Rafael Telles  / Divulgação

Fronte[i]ra |Fracas[s]o – Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare

Da parceria de duas importantes trupes cênicas de pesquisa, o Teatro de Los Andes, de Yotala, na Bolívia, com os brasileiros do Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), nasceu o trabalho cênico Fronte[i]ra |Fracas[s]o, que começou a ser gestado no ambiente digital.

Parece-me um espetáculo com muito caminho pela frente, de reajustes dos procedimentos escolhidos. Na primeira parte, no pátio do espaço Arcos do Valongo, os atores expõem o processo criativo das trupes, dividindo a plateia em grupos menores para escutar as histórias das pesquisas de campo nas cidades de Brasiléia, no Acre, e Cobija, no Departamento de Pando, na Bolívia.

O procedimento dos pequenos deslocamentos no local, até a ação de pular corda mostrou-se como muito esforço para pouca fruição.

No segundo momento é apresentada uma fábula que orbita em torno do prenúncio da divisão territorial de um vilarejo fictício. Com presenças mornas no palco e um cansaço evidente por toda a luta empreendida, o espetáculo não empolgou na apresentação de estreia no Mirada.

Todo e qualquer revés registrado na cena, na minha opinião, é reflexo das garras insaciáveis do capitalismo. As nefastas ações (ou desações) de políticas culturais que vêm tentando sufocar os artistas, no Brasil e em outros países, tem repercussões no corpo individual e no corpo de cada conjunto.

Na encenação, o elenco fala que outros atores e atrizes foram embora, largaram os grupos, ou até mesmo deixaram (espero que momentaneamente) o teatro para conseguirem sobreviver em outra função. Isso é muito grave e além das questões políticas dos territórios, o que me chamou mais atenção foram esses relatos diluídos em meio à fábula. A sobrevivência dos artistas, a integridade de seus grupos, é uma questão urgente a se pensar.

Dragón, de Guillermo Calderón. Foto: Eugenia Paz / Divulgação

Dragón, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón leva para a cena uma crise artística. Enquanto articula o próximo projeto, o coletivo teatral Dragón – que se reúne periodicamente no restaurante Plaza Italia, na região central de Santiago – vê emergir um conflito interno incontornável entre seus integrantes. Eles tinham elegido o tema da traição e o motivo se transforma em contexto. Qual a posição da arte nas batalhas políticas?

O historiador negro Walter Rodney (1942-1980), da Guiana, um panafricanista, e ativista político, morto vítima de atentado à bomba, em 1980, aos 38 anos, é uma das inspirações da dramaturgia. Ele é citado nas conversas do coletivo. As técnicas do teatro do oprimido, mais especificamente a do teatro invisível, do diretor Augusto Boal (1931-2009) estão entre as referências como método de ação.  

Falso e verdadeiro em tempos de fake News.

A peça propõe um debate ético sobre o que artistas podem apresentar e quem eles podem representar e de que forma. A maneira, a inflexão, acentuação, modulação. Configura-se que o grupo cai na própria armadilha. Ao deixar o Chile e escolher a América Latina como cenário, na sessão que vi no Mirada o grupo adota o Brasil como território das suas referências. Não foi bom, não.

Calderón já havia dito em alguma entrevista sobre Dragón que procurou “um novo sentido de humor, uma renovada ideia de comédia”.

O tom das referências ao Brasil – de deboche e de escárnio – faz perguntar até onde pode ir um artista ao formular enunciados ou tomar o lugar da representação. Em uma cena, alguém do elenco utiliza uma peruca para falar de cotas para negros no Brasil. Isso foi incendiário.   

Com racismo entranhado nas estruturas deste país, me parece que Calderón não tinha o direito de fazer esse tratamento. Com o Brasil tingido de sangue principalmente dos negros e uma situação política deplorável, é inaceitável determinadas alusões.

Para fazer uma exposição das contradições latentes o autor precisaria ter mais propriedade de fala. O humor ácido não é um salvo-conduto para enfiar um país nas suas experimentações.

O breve e acalorado debate que se seguiu à apresentação no Mirada trouxe a tona a indignação de parte da plateia com os procedimentos levados ao palco, que chegaram como zombaria, escárnio. Ou uma atitude tão arrogante de um artista que mostrou desprezo, desconsideração ou insensibilidade com as linhas tênues do que é possível performar e representar na casa alheia.   

Ou, como diz Pollyanna Diniz, a peça reproduz no palco o que a gente condena na arte. Dragón explicita (e é) uma arte branca, falsamente engajada, que não sabe se posicionar de modo efetivo, mas faz barulho. A cena conduz a crítica a partir da reprodução do modelo criticado. E o traído é o espectador. Será que para criticar o modo como fazemos arte precisamos insistir nos mesmos moldes? Vamos tentar ampliar para problematizar as escolhas: será que, para criticar o machismo, é necessário reproduzir o machismo em cena? Para criticar uma violência, é preciso reproduzir violência? Neste caso, o espectador é o traído, aquele que encontrou no palco uma dramaturgia, entendida de modo ampliado, que apenas reitera o que critica.

Cosmos, Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema. Foto: Divulgação

Cosmos – Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema

Dois momentos do espetáculo Cosmos ficaram acesos na memória, a da vibração do corpo coletivo, da grandeza para fazer a revolução, com potência para inventar novos mundos.

A jornada interplanetária de Cosmos, das artistas Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema e elenco é feita de feixes de luz para transportar personagens entre guerras, atravessar fome e pandemia, enfrentar o capitalismo selvagem e o racismo e seguir em busca de liberdade.

A peça fala de criação de um novo mundo, mas que existem outros antecedentes. As artistas de linhagens cabo-verdiana, angolana e portuguesa buscam na mitologia africana e no afrofuturismo as sustentações do espetáculo.

Desse trajeto pelo Mirada, os sinais emanados do palco que chegam é que as democracias estão sempre em risco. É disso que o teatro está falando. Que o mundo é / está desumano, nós já sabemos. Mas mesmo com todo o histórico de colonização, golpes de estado, e violência há sempre injeções de ânimos na veia política, como propõe Erupção e da poética como investe Hamlet. Até o próximo festival Mirada!

  • A jornalista e crítica Ivana Moura viajou a convite da organização do Mirada 2022 – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas e do Sesc São Paulo
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