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A trajetória de uma guerreira do samba
Crítica de Leci Brandão – Na Palma da Mão

Leci Brandão – Na Palma da Mão. Foto: Valmyr Ferreira

O espetáculo Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical biográfico que presta homenagem à vida e à obra de Leci Brandão, uma das mais influentes cantoras e compositoras do samba brasileiro. Nascida no Rio de Janeiro, Leci rompeu barreiras ao se tornar a primeira mulher a integrar a prestigiosa ala de compositores da Mangueira, afirmando-se como uma artista engajada que sempre utilizou sua música como instrumento de denúncia e resistência, abordando temas como desigualdades sociais, racismo, violências de gênero e conservadorismo.

A montagem revisita a trajetória de Leci desde suas origens humildes na periferia carioca até sua consagração como uma das vozes mais potentes e respeitadas da música popular brasileira, destacando a relação profunda e transformadora com sua mãe, Dona Lecy, figura fundamental em sua formação como mulher, artista e cidadã.

A importância cultural e política de Leci Brandão – Na Palma da Mão se manifesta em diversas camadas. Inicialmente, o musical se insere em um movimento crescente de produções que valorizam a presença de narrativas e profissionais negros nos palcos brasileiros, contribuindo para a diversificação e a democratização do teatro musical no país. Além disso, ao abordar a história de Leci, o espetáculo ilumina o pioneirismo de uma mulher negra que rompeu barreiras e ocupou espaços de poder em uma sociedade marcada pelo racismo e pelo machismo, tornando-se um símbolo de resistência e empoderamento.

A peça cita en passant a coragem de Leci em afirmar publicamente sua identidade lésbica ainda nos anos 1970, período de intensa repressão e conservadorismo. Embora o recorte dramatúrgico e de direção se concentre na relação de Leci com sua mãe, Dona Lecy, explorando os laços afetivos, os aprendizados e as trocas entre essas duas mulheres e suas lutas no mundo, seria fundamental abrir espaço para abordar esse aspecto essencial da trajetória de Leci Brandão.

Em um momento de avanços por visibilidade e direitos LGBTQIA+, mas também de recuos com a marcha do fascismo, seria crucial que a peça incorporasse mesmo que de forma sutil, a decisão corajosa de Leci de se afirmar como lésbica em pleno regime militar. Essa escolha não apenas presta um tributo mais completo à artista, como também posiciona a obra diante dos desafios atuais. Além disso, o comportamento destemido de Leci Brandão ecoou ao longo das décadas, inspirando gerações de artistas e ativistas LGBTQIA+ a lutar por seus direitos e a expressar suas identidades sem medo, deixando um legado de coragem e determinação que poderia ser celebrado e transmitido na montagem. Até porque o espetáculo ressalta o compromisso inabalável da artista em utilizar sua arte como instrumento de transformação social.

O texto do espetáculo, assinado por Leonardo Bruno, revela uma estrutura dramatúrgica que transita entre passagens narradas e diálogos vívidos entre os personagens. A narrativa segue uma temporalidade predominantemente cronológica. Essa estrutura é enriquecida pelas canções, que pontuam momentos-chave da trama. Essa construção dramatúrgica entrelaça os elementos escolhidos para compor a trajetória de Leci Brandão no palco: a música como expressão de resistência e celebração da vida; a religiosidade como fonte de sabedoria e conexão com o sagrado; e o engajamento político como compromisso ético com a transformação da realidade.

As intervenções bem-humoradas dos instrumentistas funcionam como respiros e comentários, buscando uma cumplicidade com a plateia. 

Sob a direção de Luiz Antonio Pilar, premiado com o Shell de melhor diretor, a encenação valoriza, com delicadeza e humanidade, a relação entre Leci e sua mãe, Dona Lecy, revelando a cumplicidade, o afeto e a força dos laços que unem essas duas mulheres. Pilar privilegia a música como elemento central da narrativa, entendendo o samba como instrumento de resistência, afirmação identitária e comunicação com o público. As composições de Leci são trazidas à cena como convites irresistíveis para que a plateia se integre ao espetáculo, criando uma atmosfera de alegria, celebração e partilha que evoca a energia contagiante das rodas de samba. 

Há uma sequência exaustiva de músicas,  composições que se tornaram clássicos da música popular brasileira. Sucessos como A Filha da Dona Lecy, canção autobiográfica que homenageia a mãe da artista, e Papai Vadiou, samba que retrata com sensibilidade e humor as dificuldades enfrentadas por uma família chefiada por uma mulher negra. Além de Gente Negra, um hino de afirmação da identidade e da resistência afro-brasileira, e Preferência, samba-canção que exalta a liberdade de amar sem rótulos ou preconceitos. E a antológica Zé do Caroço, uma das canções mais emblemáticas de sua carreira, que denuncia a violência policial contra as populações periféricas.

Além das composições de Leci, o espetáculo também rende homenagens a outros gigantes da música brasileira que cruzaram o caminho da artista. É o caso de Cartola, representado por Corra e Olhe o Céu, e da própria Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que acolheu Leci como a primeira mulher em sua ala de compositores e que é lembrada pelo samba-enredo História pra Ninar Gente Grande. Mas a trilha não é suficiente para criar nuances na dramaturgia. 

Embora o espetáculo apresente inúmeras qualidades, é importante reconhecer alguns aspectos para ser pensados. Durante a apresentação realizada no Teatro do Parque, no Recife, como parte da abertura do Festival Palco Giratório, o público demonstrou entusiasmo e apreço pela montagem, aplaudindo calorosamente ao final. No entanto, a estrutura narrativa predominantemente cronológica revelou, em boa parte, uma certa monotonia, carecendo de reviravoltas ou de uma maior inventividade formal.

A opção por uma linearidade quase didática, se por um lado facilita a compreensão da trajetória de Leci Brandão, por outro acaba limitando as possibilidades de experimentação estética. Apenas citar ou não entrar nos conflitos de passagens importantes enfraquece o potencial explosivo dessa trajetória. Como exemplo, a entrada e a permanência da artista no time de compositores da Mangueira e os bastidores mais conflituosos são evitados ou apenas citados, quando poderiam ser os giros de acionamentos de potência dentro do espetáculo.

Outro ponto que merece atenção é a questão da inteligibilidade das falas em determinados momentos do espetáculo. Apesar dos atores demonstrarem grande talento vocal e interpretarem as canções com maestria, em diversas passagens dialogadas suas palavras se tornavam incompreensíveis, seja por problemas acústicos do teatro, falhas nos equipamentos de som ou mesmo pela projeção vocal insuficiente dos intérpretes.

Essa perda parcial das falas compromete a fruição plena da narrativa e dificulta o envolvimento emocional do público com a história. 

Verônica Bonfim, Sérgio Kauffmann e Tay O’Hanna. Foto: Valmyr Ferreira

O elenco, composto por Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sérgio Kauffmann dão conta de todos os personagens. Tay interpreta Leci com muita personalidade, captura a força, a garra e a paixão dessa artista em cada gesto, olhar e inflexão vocal. Sua performance revela as lutas, as alegrias e as dores que moldaram esse percurso. Verônica Bonfim, por sua vez, confere à figura de Dona Lecy uma combinação tocante de doçura e determinação. Sua atuação está carregada da sabedoria e o amor dessa mãe que foi o alicerce e a inspiração constante na vida de Leci.

Sérgio Kauffmann demonstra versatilidade ao encarnar diversos personagens masculinos que cruzaram o caminho de Leci, desde o líder comunitário Zé do Caroço, compositor Cartola, o pai da cantora ou na pele de Exu.

O foco central do espetáculo é celebrar a vida e o legado de Leci Brandão, convidando os espectadores a mergulhar em seu universo pessoal e artístico de forma sensível e empática. Ao adotar essa abordagem, o musical se alinha ao conceito de “ética do cuidado”, proposto pela pesquisadora e ativista Patricia Hill Collins. Essa perspectiva valoriza a empatia, a responsabilidade e a conexão como princípios norteadores na produção e partilha de saberes e narrativas, especialmente quando se trata de histórias de mulheres negras.

Ao contar a trajetória de Leci Brandão, o espetáculo busca estabelecer uma relação de proximidade e afeto com o público, convidando-o a se reconhecer e se emocionar com as lutas, as alegrias e as conquistas dessa artista. Essa abordagem empática permite que a plateia se conecte com a humanidade de Leci, entendendo suas escolhas, seus desafios e seus triunfos a partir de uma perspectiva de cuidado e solidariedade.

Já a representação da religiosidade de matriz africana no espetáculo é um ponto que demanda reflexão. Incluir elementos da religiosidade afro-brasileira no musical é uma escolha corajosa e necessária, contribuindo para a valorização e visibilidade das tradições.

No entanto, mesmo que os envolvidos na montagem tenham um conhecimento profundo das questões religiosas, nem sempre esse entendimento é traduzido de forma plena no palco. 

Apesar das ressalvas apontadas, Leci Brandão – Na Palma da Mão permanece como um espetáculo de grande relevância e necessidade, celebrando a trajetória de uma artista fundamental para a cultura brasileira. Ao colocar no centro dos holofotes a história de uma mulher negra que enfrentou e desafiou os preconceitos e as opressões de seu tempo, o musical contribui significativamente para a construção de uma narrativa mais plural.

 

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Crítica: Ledores do Breu

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Dinho Lima Flor anda com personagens que sofrem com o analfabetismo. Foto: Divulgação

Quando assisti ao espetáculo Ledores do Breu em sessão na SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt, o deputado que jurou de pés juntos que era inocente ainda não dormia no xilindró. Era útil ao sistema e havia autorizado há poucos dias a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. O golpista começava a mostrar suas unhonas de traíra, ao enviar cartas à presidenta com um chororó de que era um “vice decorativo”. A situação política no Brasil era tensa. Tudo piorou. Direitos confiscados. Ensino sucateado. Do Planalto ao Cais do Recife a educação sofre duros golpes, incluindo o indisfarçável cárcere privado de professores sob o desapreço de Geju.

O solo Ledores do Breu já é em si e por si de grande potência, mas ganha amplitude na contraluz da realidade, como um foco de resistência e de lucidez.

O educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) – que criou o método de alfabetização de adultos que leva seu nome – alertava que “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”.

Entram como fatores que dificultam o processo de alfabetização o desemprego e os seus males, jornadas longas e estressantes e a falta de incentivo e até mesmo questões sexistas. Como é exibido na peça, uma menina que é proibida de estudar pelo próprio pai por ter nascido mulher. Ignorância terrível, mas que a personagem não acata e dá o seu jeito de aprender.

Então, não sejamos tolos. Mas Freire também martelava que “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”. E é nisso que pulsa Ledores do Breu.

Paulo Freire se junta a Patativa do Assaré, Zé da Luz, Jackson do Pandeiro, Lêdo Ivo, Guimarães Rosa, Luis Fernando Veríssimo, Cartola. Entre canções como Palavras, de Gonzaguinha, episódios, causos, relatos, a dramaturgia é costurada com afeto e cumplicidade da plateia. Seja na imitação dos passarinhos, nos abraços carinhosos e danças.

Dinho Lima Flor chega com sua atuação emotiva, por vezes barroca e experimenta vários estilos interpretativos, navegando inclusive pela comicidade popular. Sozinho em cena trafega por vários personagens, a expor situações extremas e cobrar responsabilidade de todos nós. Como pode, em pleno século 21 o Brasil ostentar um índice tão alto de analfabetismo nas suas mais variadas gradações? Uma pergunta que vejo como resposta uma tentativa de prosseguir com a opressão, com os privilégios de quem historicamente massacrou e desviou recursos e direitos dos mais pobres.

São muitos teatros que essa montagem Ledores do Breu leva para a cena. E esse ator generoso conduz o espectador a sentir a escuridão que cerca os que não sabem ler. É uma cegueira. Como a história do homem que matou a mulher que amava por não conseguir decifrar uma carta, narrado em Confissão de Caboclo, do poeta Zé da Luz.

A Cia. do Tijolo transborda política na sua poética. Desde Concerto de ispinho e fulô, a mostrar a grandeza de Patativa do Assaré. Passando por Cantata para um bastidor de utopias, com seus anônimos na peleja para subverter as injustiças. Até a montagem O Avesso do Claustro, em que resgata a trajetória de Dom Helder Camara (1909-1999), o Bispo Vermelho, com discursos igualitários, projetos de educação e iniciativas de combate à miséria, que esteve no Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano.

O figurino branco vai sendo machado de carvão ao longo da peça. O carvão é usado para escrever em rolos imensos de papel e também como estrada e outros suportes. E nessa caminhada orquestrada que a direção de Rodrigo Mercadante vai indicando pulsações e andamentos, num jogo de sombra e luz, silêncio e som.

A imagem de mulheres expondo faixas com dizeres como “Mais escolas e menos cadeias” (de um vídeo de manifestações exposto na cena) indica que a ignorância, infelizmente, pode ser parte de uma engrenagem que a elite que odeia os diferentes faz questão de alimentar. Mas fiquemos com outra cena do espetáculo que enseja alguma esperança. A de um homem que ao escrever sua primeira palavra, um nome de mulher, se emociona e percebe como o mundo e o seu mundo podem ser ampliados.

Serviço:
Ledores do Breu – Cia do Tijolo (São Paulo-SP), no Circuito Nacional Palco Giratório.
Quando: Quarta (26/07), às 20h
Onde:Teatro Marco Camarotti (Sesc de Santo Amaro), Recife
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)

Ledores do Breu no 13º Festival Aldeia do Velho Chico
Quando: Segunda-feira (07/08), 20h30
Onde:Teatro Dona Amélia, Petrolina
Quanto: R$ 20 (Usuário), R$ 10

Ficha técnica
Atuação, cenário, figurino: Dinho Lima Flor
Direção: Rodrigo Mercadante
Assistente de direção: Thiago França
Dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Criação de luz: Milton Morales e Cia do Tijolo
Orientação corporal: Joana Levi
Produção: Cris Rasec e Cia do Tijolo
Produção e difusão: Thaís Teixeira – EmCartaz Empreendimentos Culturais
Registro: Bruta Flor Filmes
Câmeras registro: Bruna Lessa Cacá Bernardes e Mirrah Iañez

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