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Rituais de fim do mundo
Crítica da peça O Jardim das Delícias
Festival d’Avignon

Le Jardin des délices, de Philippe Quesne, reinaugura a Carrière de Boulbon. Foto: Martin Argyrogio / Divulgação

Peça é inspirada na pintura de Bosch. Foto: Martin Argyrogio / Divulgação

Ritual em torno do Ovo, numa cena de Le Jardin des délices, no Festival d’Avignon. Foto: Martin Argyrogio 

Le Jardin des délices se manifesta exigente. Um pouco mais de disposição para o deslocamento e muita disponibilidade imaginativa. Para se chegar à mítica Carrière de Boulbon (15 km da cidade dos Papas), durante o 77º Festival Internacional de Teatro de Avignon, para assistir à peça de Philippe Quesne é preciso pegar um ônibus do festival nas aproximações da Gare Central ou ir de carro. Lá chegando tem uma estrutura de bar para venda de alimentos e bebidas. Como o sol só vai se deitar próximo das 21h nesse verão europeu é possível admirar o entardecer na imensidão do território antes do acesso às arquibancadas para a sessão teatral.

A pedreira, fechada há sete anos, foi palco do épico Mahâbhârata, de Peter Brook, em 1985, peça que inaugurou o sítio como espaço de representação. Outros artistas se apresentaram na Carrière de Boulbon, como o brasileiro Antonio Nóbrega, que exibiu seu espetáculo Pernambuco em 1999.

O Jardim das Delícias foi criado especialmente para estrear na pedreira, como parte das comemorações dos 20 anos da companhia do diretor Quesne, o Vivarium Studio. A peça é anunciada como uma epopeia retrofuturista, inspirada nas alegorias do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516). O encenador já disse que tomou o quadro como um enigma inspirador. Talvez essa palavra seja importante para pensar as chaves dramatúrgicas, que nem sempre escancaram as portas para o espectador.

Trupe utiliza uma teatralidade exacerbada, com números deliberadamente caricatos, em algumas cenas

Oito personagens, um ônibus, muitas digressões entre o futuro e o passado nas sessões no Festival d’Avignon

Um ônibus branco aparece naquele cenário desértico, lunar, diriam alguns, empurrado por oito personagens esquisitos vestidos de cowboys e cowgirls – calças boca de sino, franjas, botas e chapéus, ternos e gravatas. Sondam o terreno. Dão rápidos golpes no solo com uma pá e uma picareta, para em seguida instalar uma grande escultura em forma de Ovo. Em volta desse Ovo gigante eles fazem um estranho ritual – um dá um beijo, outro joga umas pedrinhas, um punhado de areia, faz uma reverência, etc. Depois eles tocam violão, pandeiro e flauta doce, em celebração ao redor desse Ovo.

Em outra cena, Gaëtan Vourc’h, o ator careca na função de mentor dessa expedição controversa, convoca os outros sete participantes (Jean-Charles Dumay, Léo Gobin, Sébastien Jacobs, Elina Löwensohn, Nuno Lucas, Isabelle Prim, Thierry Raynaud) para o ônibus, onde serve qualquer coisa num copinho, oferece máscaras de oxigênio que podem até ter cheiro de chá de ervas e faz gestos de extrema preocupação com o bem-estar desses viajantes.

Quem são eles? Hippies deslocados num ritual de resgate nas suas andanças ou estão a inventar novas regras para o devir? Não dá para responder com convicção sobre essa trupe.

No pós-apocalíptico ecológico Farm Fatale, espetáculo de Philippe Quesne que esteve no Brasil em 2020 (na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp), os personagens – um grupo de espantalhos – utilizavam humor e ironia na construção utópica de um novo mundo, quiçá melhor, um mundo sem humanos.

O Jardim das Delícias, a peça, convoca matérias de sonhos, utopias, paisagens insólitas. A sequência das cenas estremece lógicas do que se passa e as pretensões do bando. O que fica evidente é que a humanidade como se apresenta não é suficiente para fornecer respostas. O mundo está em ruínas. “Tem certeza de que a Terra não é o inferno de outro planeta?”, solta uma das figuras.   

Nessa viagem entre o futuro e o passado, prevalece o nonsense. Com cenas de grande impacto visual, essa pequena comunidade recita poemas, entrega-se a rituais e rodas de conversa. Tudo parece um pouco delirante: as questões filosóficas levantadas e passadas adiante, os deslocamentos por todos os cantos da pedreira, o monitoramento de fogueiras virtuais, a escuta e gravação do som do solo pedregoso, a ausculta das paredes do alto de uma escada, a filmagem, a busca por ideais.

Quando eles transformam o ônibus em palco improvisado – com direito à fumaça e fogos de artifício nas apresentações – ganha destaque a escolha da teatralidade exacerbada, do modo trash, patético, kitsch. Um treco carregado propositalmente de uma precariedade interpretativa que crispa entre o riso e o espanto diante da escolha. Números deliberadamente ridículos, caricatos, grotescos, mal executados. Como o pastiche do nascimento de Vênus, com o ator com macacão vermelho.

A origem textual não fica totalmente evidente. A ficha técnica diz que os textos originais são da poeta Laura Vazquez e que outros textos estão em curso. Na cena, nas rodas de discussão, com muitas digressões de crises existenciais, são lidos trechos de O Inferno, de Dante, talvez um Shakespeare aqui ou acolá. É uma profusão de palavras proferidas pelos cowboys e cowgirls, junção de aforismos a leituras de poesias, exibições de palavras no ecrã. E o humor beirando o absurdo.

Na real, a pedreira é a personagem central desta criação. Quesne valoriza a imponência da Carrière de Boulbon. E quando ela ganha protagonismo pleno, como na tempestade sonora ou nos efeitos de iluminação, sentimos a paisagem a falar do fim de um mundo.

A sucessão de momentos aparentemente desconexos está carregada de ideias abundantes que rejeita tentativa uníssona de significado. O humor cáustico da encenação é excessivo, um humor muito particular, difícil de alcançar.   

Diante dessa pedreira imensa, majestosa, esses personagens sugerem que os humanos (com suas histórias) são menores do que sua arrogância: “nos tempos da Terra vazia, tu eras a Terra”. Nesse quadro meio desencantado, meio melancólico, saio me perguntando como a potência da  arte se expande para expressar o desastre.
 

Ficha técnica:

Com Jean-Charles Dumay, Léo Gobin, Sébastien Jacobs, Elina Löwensohn, Nuno Lucas, Isabelle Prim, Thierry Raynaud e Gaëtan Vourc’h
Conceito, realização e cenografia: Philippe Quesne
Textos originais: Laura Vazquez
Outros textos
 em curso

Figurinos e esculturas: Karine Marques Ferreira
Cenografia colaboração: Élodie Dauguet
Dramaturg: Éric Vautrin
Assistente de direção: François-Xavier Rouyer
Colaboração técnica: Marc Chevillon
Som: Janyves Coïc
Iluminação: Jean-Baptiste Boutte
Vídeo: Matthias Schnyder
Acessórios: Mathieu Dorsaz
Direção geral: François Boulet e Martine Staerk
Direção de palco: Ewan Guichard
Direção de luz: Cassandre Colliard
Design: Estelle Boul
Construção de cenários: Ateliers du Théâtre Vidy-Lausanne
Produção e distribuição:
Judith Martin e Elizabeth Gay (Théâtre Vidy-Lausanne)

Produção: Charlotte Kaminski (Vivarium Studio)

Produção

Produção; Vivarium Studio, Théâtre Vidy-Lausanne  
Co-produção: Festival d’Avignon, Ruhrtriennale (Alemanha), Athens Epidaurus Festival, Tangente St. la Cultura de Amiens pólo europeu de criação e produção, 2 Palcos Cena nacional de Besançon, Centro dramático nacional (Espanha), MC93 Maison de la culture de Seine-Saint-Denis Bobigny, Maillon Theatre de Estrasburgo Cena europeia, Kampnagel (Hamburgo), Próximo Festival (Lille-Kortrijk-Tournai e Valenciennes), Palco Nacional Carré-Colonnes Bordeaux-Métropole, Berliner Festspiele, Teatro Nacional e Sala de Concertos Taipei (Taiwan)
Residências: FabricA do Festival d’Avignon, La Carrière de Boulbon, Théâtre Vidy-Lausanne
Com o apoio da cidade de Boulbon
Gravação em parceria com a ARTE 
Representações em parceria com a France Médias Monde 

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