Arquivo da tag: Santa Ignorância Cia. de Artes (São Luís – MA)

As vidas do artista popular

O miolo da estória parte do bumba-meu-boi para discutir a sociedade brasileira. Fotos: Ivana Moura

O miolo da estória parte do bumba-meu-boi para discutir a sociedade brasileira. Fotos: Ivana Moura

Satisfeita, Yolanda? no Palco Giratório

Conhecemos bem os versos “O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao Brazil”, interpretados por Elis Regina no álbum Transversal do Tempo. Querelas do Brasil, composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc, acusa a elite econômica do país de sufocar a cultura popular. A canção é de 1978. E alguma coisa mudou. Mas não o suficiente para fazer de nossos bricantes cidadãos plenos.

Ainda assim, o Brasil é um país repleto de inteligências e sensibilidades desconhecidas. E esse ocultamento reflete uma democracia imperfeita. Um espetáculo da Santa Ignorância Cia. de Artes (São Luís – MA) expõe, por um lado, o talento da trupe e, descendo ao âmbito da ficção, esquadrinha os sentimentos de um desses excluídos pelo modo voraz de produção capitalista.

A peça O miolo da estória tira do anonimato um brincante de bumba-meu-boi do Maranhão. E faz questão de frisar que a representação da ingenuidade não lhe cai bem. O artista popular é um ser crítico e que percebe o que ocorre no mundo. Sabe da exploração e da mais-valia, do cinismo dos políticos, do sensacionalismo de uma imprensa descompromissada com questões da justiça social. E principalmente não quer ser mais massa de manobra.

Então, O miolo da estória– com texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia de Lauande Aires – se desdobra num arco crítico desse mundão que Deus nos deu.

Lauande Aires assina texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia

Lauande Aires assina texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia

No solo, o intérprete mostra a história de João Miolo, um trabalhador da construção civil e brincante do bumba. Ele é aquela figura que fica embaixo do boi, mas na realidade ele quer ser cantador, para ser visto e reconhecido. Sua tentativa de mudar de papel é rejeitada pelo dono da brincadeira. E o operário se sente explorado no trabalho e no folguedo.

O teatro evidencia sua função política e toca em pontos cruciais para se ter uma vida digna. A visibilidade é uma condição humana de sobrevivência simbólica e psíquica, cultural, social e política. Esse homem rústico constrói com suas mãos calejadas os edifícios das cidades (prédios que ele não vai morar). Esse homem humilde faz bailar um boi colorido que é o motivo da festa, mas só os seus pés aparecem.

O operário e brincante João Miolo é invisível e não tem voz. Seu pleito é maior do que ser cantador da boiada. E querer ser visto é atitude sintonizada com a contemporaneidade, dominada pela indústria cultural.

Como pedreiro, ele tem consciência da temporalidade do seu “emprego”. Como brincante, chega à conclusão de que o dono do brinquedo negocia apresentações em troca de votos. O apoio que chega e uma verba maior só aparece quando eles são enxergados como eleitor, quando favorecem determinado político.

Se o Teatro Marco Camarotti tivesse um pé direito mais alto, a cena da bicicleta ficaria ainda mais bonita

Se o Teatro Marco Camarotti tivesse um pé direito mais alto, a cena da bicicleta ficaria ainda mais bonita

Nosso personagem fica revoltado e resolve não sair da boiada daquele ano. Mas isso lhe custa em ressentimento e ao tentar afogar suas mágoas na bebida, vai trabalhar embriado e termina ferindo o pé. Nesse ponto o espetáculo revela a origem religiosa dessas manifestações da cultura popular e que muitas vezes perdem seus elos para virar atração para turistas.

E Miolo fica doente. Com o pé infectado, não pode nem trabalhar e nem brincar. Se volta para o santo de sua devoção – São Pedro – e faz uma promessa para não perder a perna.

De uma só tacada o autor expõe uma sociedade desigual e excludente, o risco da brincadeira virar número para manipulação política e a ruptura com a religião e o ritual, que está na origem de muitos desses folguedos.

Peça ressignifica elementos da construção civil

Peça ressignifica elementos da construção civil

É uma realidade crua apresentada pela Santa Ignorância Cia. de Artes. O espaço de atuação é uma circunferência de 4 x 4 metros, arrodeada de maracás e seis caixotes de madeira. No chão, o couro de um pandeirão. Dentro do círculo estão uma escada de madeira, onde estão pendurados capacetes, enxada, pá, pandeiros. Mais à esquerda um conjunto de latas e um par de botas. Mais à direita um carro de mão pendurado com uma imagem de São Pedro.

Esses elementos são ressignificados ao longo da peça. A escada é a casa. Duas peneiras de areia e um pá formam uma bicicleta. O carro de mão pode ser o boizinho. Esse cenário é dinâmico e o ator parece fazer mágica desses elementos quando desloca suas funções. Do alto, na bicicleta, ele critica a mobilidade urbana, o egoísmo dos motoristas. E depois a imprensa sanguessuga.

A autoria da peça pulsa durante todo o espetáculo. A performance de Lauande Aires é para ser aplaudida. Ele canta, dança, utiliza um linguajar simples a partir de cinco personagens. O próprio João Miolo, Nêgo Chico, Cazumba, Amo do Boi e Curandeiro. Há uma coreografia perfeita do gestual do ator e o jogo que faz com todos os elementos.

O personagem deseja sair da invisibilidade e ter voz

O personagem deseja sair da invisibilidade e ter voz

Em resumo: é um espetáculo forte, com ideias e execução bem articuladas para criticar a sociedade, mostrar o fosso simbólico da exclusão social, o desespero e a precariedade das condições de vida de determinadas categoria de trabalhadores. A religião entra com suas sanções e salvações. A crueldade do capitalismo é ressaltada. E é cobrada da mídia uma atuação que condiga com sua dimensão de espera pública. E, principalmente, que todo ser humano deseja e merece ser reconhecido e iluminado.

Ficha técnica
Texto, direção, atuação, música, figurino e cenografia: Lauande Aires
Iluminação: Eliomar Cardoso e Júlio Cesar da Hora (Jarrão)
Operação de luz: Jarrão
Operação de sonoplastia: Rosa Ewerton
Treinamento de brincante e auxiliar de palco: Léo Alves
Consultoria artística: Antônio Freire, Léo Alves, Manoel Freitas e César Boaes

*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.

Postado com as tags: , , , ,