Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.
Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.
A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.
Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.
Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.
O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.
As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.
O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.
Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.
Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.
Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.
O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.
O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.
Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.
Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.
No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.
Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie Messer, A balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.
A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.
O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.
O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.
* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.
O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).
Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu