Pense numa cidade rica e injustamente desigual como São Paulo. Faça um esforço para ouvir as vozes caladas, as figuras apagadas em muitas camadas de concreto. Porque além de abstrato, aniquilamento, eliminação são feitos concretos. Sinta as ondas energéticas de negociação por espaço de existir. Perceba os corpos insubordinados que falam / gritam / surraram em muitas linguagens suas existências plenas de vida.
Eu fiz esse exercício antes do terceiro sinal e essa ambiência grudou ao contorno do meu corpo.
Hip-Hop Blues – Espólio das Águas, peça-show do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos celebra os 20 anos de atividades e atuação continuadas do grupo que em 2022 chega aos 22 anos. Parece que engoli um tempo aí, mana, mas são as coisas da pandemia e muitas operações da necropolítica, que além de coisas roubadas como horizontes, nos surrupiaram o tempo, nosso bem tão preciso.
Tô indo desacelerada porque não quero que acabe. Não quero que acabe o Hip Hop Blues que me diz tanto, que expande tanto as questões identitárias, que de novo e de novo e de novo Eugênio Lima lembra do corpo-político, do corpo-ocupação. Ai minhas deusas, Nilcéia Vicente o que você nos faz com sua voz e com sua presença a conduzir por esse percurso de labirintos que soa, ecoa, ressoa, reverbera da caixa torácica aos vãos cabeça com seus sete buracos e aos mindinhos do pé. Ai mulher, que força da natureza!
O espetáculo compõe microcenas individuais do elenco. Faz cruzas incríveis. Mergulha em ancestralidades, dá partida, que podem ir e voltar. Os atores elegem depoimentos a partir dos passos de cada qual. A marca desse diálogo entre o teatro épico e a cultura hip-hop que o grupo faz como ninguém está lá viva ardente acesa afogueada audaciosa (me prometi não usar a palavra potente nesse texto).
São os corpos que habitam São Paulo. É um grupo de teatro que pensava antes da pandemia em montar um texto de Bertolt Brecht. É a cidade que assusta, que não tem paciência com as dores de seus habitantes apressados. Canções, poemas, ações dramáticas se encaixam nessa curadoria, nesse passeio por São Paulo que aterrou seus rios, pelas memórias dos atores que destampou suas dores.
Com dramaturgia e a direção de Claudia Schapira e concepção geral do Núcleo Bartolomeu, os artistas – atrizes e atores MC’s – Cristiano Meirelles, Dani Nega, Eugênio Lima, Luaa Gabanini, Nilcéia Vicente e Roberta Estrela D’Alva – mais Daniel Oliva na guitarra se revezam no centralidade da cena para questionar os lugares, reivindicar o protagonismo negro, expor em alta escala as nervuras do mundo e as mudanças inadiáveis.
E no meio, na borda, no alto, no íntimo da coisa toda está a música, que sempre vai mais além, que toca mais fundo que cria revoluções temporais. E a música é azul de muito sangue derramado, de muita na estrada, da política e da diáspora, dos levantes.
Rima com rima. É a visão do mundo do Bartolomeu de guerras e guerrilhas, atravessadas por uma pandemia que deixou e ainda deixa suas marcas nos corpos, que atualiza de forma feroz a travessia.
Mas Hip Hop Blues – Espólio das Águas é celebração. Estamos vivos e isso é inegociável. Vivos e com fome de vida digna. Para quem quase sempre foi preterido.
Na cena, um grupo de teatro conta como tentou montar a obra Os Sete Pecados Capitais dos Pequenos Burgueses, de Brecht, mas não parava de chover, e a chuva continua. Baldes de alumínio são deslocados durante a cena para aparar as goteiras. Brecht virou disparador para confrontar questões contemporâneas das marcas coloniais que pulsam na sociedade brasileira.
Depoimentos é uma a palavra que está no título do Núcleo Bartolomeu e vibra nos procedimentos do grupo, que faz isso há 22 anos. Na cena, Roberta Estrela D’Alva destrincha a estratégia para o público, como funciona. Cada um dos artistas leva para cena um ou mais episódio de suas vidas, suas subjetividades, o preço alto pago para chegar até aqui.
Esses sujeitos históricos em exposição alinham sequências ricas de sentidos individuais, que projetam os constantes deslocamentos, a lutas e as escolhas do Bartolomeu.
A visão de mundo é blues. As memórias são blues carregadas de violências de gênero, raça e classe que formam uma cena tão plenas de vida.
Nilcéia Vicente canta e conta da sua avo, aquela figura pequena, concentrada, anônima, violentada por outra quase igual numa fábrica de exploração – negrinha com xingamento – até atingir o refluxo da água. Não menosprezem a força da água represada, ela pode responder com tsunami ou enxurrada.
Eugênio Lima expõe os elepês que ele considera fundamentais para alimentar essa história, esse imaginário. Espólio do que sobrou do alagamento e que os discos traduzem como poucas coisas no mundo. O que pulsa de uma linha musical da cultura negra. Essa curadoria sonora é regada por samples que inundam o ar, enquanto Eugênio comenta sobre alguns vinis, como o de Miles Davis herança-orgulho de sua mãe. É eletrizante sua coleção, Tim Mais, Jorge Ben Jor, e que inclui o bolachão de Chico Science e NZ: “Cadê as notas que estavam aqui / Não preciso delas! / Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos” (o Brasil ainda precisa redescobrir Chico Science, sua genialidade).
Dani Nega tensiona o próprio passado de adolescente, as escolhas estéticas, as pressão social, a violência dos padrões impostos, os movimentos de exclusão, a partir de um retrato com cabelo alisado. O que foi, o que não pode ser negado, e marcas no seu corpo dessa experiência subjetiva e social.
Alguns artistas pretas, trans e indígenas aparecem em vídeo ou áudio para dar o seu recado ou são citados como Adeleke Adisaogun Ajiyobiojo, MC Neguinho do Kaxeta, Nêgo Bispo, Matriark, Reinaldo Oliveira, Aretha Sadick, Zahy Guajajara e Kiki Domaleão, drag afro tupini queen de Cristiano Meirelles,
Os assuntos da branquitude são enfrentadas a partir de duas cenas da atuação de Luaa Gabanini. O primeiro é o teste para o papel da peça de Brecht, em que entram os sentimentos de uma atriz branca, que não será escolhida para interpretar a personagem do dramaturgo alemão, que será feita por uma atriz negra. Os incômodos, os lugares de privilégio, as possíveis mudança de protagonismo dão voltagem à cena, que se vale de um humor corrosivo para desenvolver a temática. No segundo momento Gabanini apresenta o refluxo, em que tenta entender esse momento em que lhe está destinado um lugar secundário.
A opressão sofrida por Cristiano Meirelles chega pela sua homossexualidade e cobranças familiares e sociais, e as pressões em casa e na rua e a hipocrisia brasileira da família. E sua opção pela arte, pelo desbunde e pela alegria.
A atriz-MC Roberta Estrela D’Alva explora um não-saber, nesse tempos tempos em que quase todos tem discursos prontos. Na sua construção de palavras-ruelas, estradas, becos, cidades, a artista leva para cena o caso do menino Miguel. A cadela não era dela, a mão opressora que chamou o elevador. É sufocante, apavorante, quase palpável as palavras que Roberta convoca para contar essa história.
Mas o espólio das águas desse Hip-Hop Blues é para lavar o corpo, para energizar, desafogar, seguir como água que pode desviar das pedras do caminho, que segue o curso e sempre encontra um um jeito de existir, com força, com fúria, enchente, que nunca desiste, porque é essencial.
Ficha técnica
Hip-Hop Blues – Espólio das Águas
Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
Direção: Claudia Schapira
Dramaturgia: Claudia Schapira e elenco
Concepção Geral: Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
Atores/Atrizes-MC’s: Cristiano Meirelles, Dani Nega, Eugênio Lima, Luaa Gabanini, Nilcéia Vicente e Roberta Estrela D’Alva
Guitarra: Daniel Oliva
Direção musical: Dani Nega, Eugênio Lima e Roberta Estrela D’Alva
Músicas: Núcleo Bartolomeu e elenco
Assistência de direção: Rafaela Penteado
Cenografia: Marisa Bentivegna
Criação e operação de luz: Matheus Brant
Assistência de iluminação: Guilherme Soares
Criação e operação de vídeo: Vic Von Poser
Assistência de cenografia: César Renzi
Cenotecnia: César Rezende
Assistência de vídeo: Beatriz Gabriel
Direção de movimento: Luaa Gabanini
Técnica de spoken word e métricas: Roberta Estrela D’Alva e Dani Nega
Técnica de canto blues: Andrea Drigo
Técnica de sapateado: Luciana Polloni
Danças urbanas: Flip Couto
Participações especiais vídeo: Adeleke Adisaogun Ajiyobiojo, Aretha Sadick e Zahy Guajajara
Participações especiais áudio: Matriark, Reinaldo Oliveira e Nêgo Bispo
Pensadores-provocadores convidados: Luiz Antônio Simas, Luiz Campos Jr. e Celso Frateschi
Engenharia de Som: João de Souza Neto e Clevinho Souza Intérprete Libras: Erika Mota e equipe
Figurinos: Claudia Schapira
Figurinista assistente e direção de cena: Isabela Lourenço
Costureira: Cleuza Amaro Barbosa da Silva
Direção de produção, administração geral e financeira: Mariza Dantas
Direção de Produção Executiva: Victória Martinez e Jessica Rodrigues [Contorno Produções]
Assistência de produção: Carolina Henriques e Helena Fraga
Coordenação das redes sociais: Luiza Romão
Assessoria de Imprensa e Coordenação de Comunicação: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério
Programação Visual e Desenhos: Murilo Thaveira
Fotos divulgação: Sérgio Silva
Agradecimentos Lu Favoreto, Estúdio Nova Dança Oito, Pequeno Ato, Galpão do Folias, Lucía Soledad, Marisa Bentivegna, Colégio Santa Cruz – Raul Teixeira, Périplo Produções