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Representatividade e resistência LGBTQIA+
Entrevista || Coletivo de Dança-Teatro Agridoce

Coletivo Agridoce (da direita para a esquerda): Sophia, Nilo (camisa preta), Flávio (camisa branca), Igor e Aurora. Foto: Zito Junior/ Studio Z Fotografia

No intervalo de menos de seis meses, o espetáculo O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, protagonizado pela atriz trans Renata Carvalho foi censurado duas vezes em Pernambuco: no Festival de Inverno de Garanhuns, em julho de 2018, e no Janeiro de Grandes Espetáculos, na época do anúncio da programação, em dezembro do mesmo ano.

Como os acontecimentos muitas vezes trazem consequências e conexões que vão se desdobrando, esses episódios de censura marcaram significativamente a trajetória de um grupo pernambucano, o Coletivo de Dança-Teatro Agridoce. Foi assim: pouco tempo depois daquele FIG, a atriz e bailarina trans Sophia Williams entendeu que havia chegado o momento de montar o próprio coletivo para produzir projetos autorais. E, como movimento de resposta à censura no JGE, partiu desse coletivo a iniciativa de criar o festival Janeiro sem censura, que já teve três edições.

Com duas atrizes trans no elenco: Sophia William e Aurora Jamelo, o Agridoce fez sua estreia com a primeira temporada do espetáculo Trans(Passar), em março de 2019, no Teatro Hermilo Borba Filho. Em agosto do mesmo ano, estreou Mar Fechado. Tanto as questões de gênero quanto de raça permeiam os trabalhos do coletivo formado, além de Aurora e Sophia, por Flávio Moraes, Igor Cavalcanti e Nilo Pedrosa.

No último mês de abril, o grupo participou do projeto Cena Agora, do Itaú Cultural, com Rhizophora – Estudo nº1, primeiro experimento do novo trabalho, baseado em Homens e Caranguejos, de Josué de Castro. A nossa conversa com o Agridoce tratou da trajetória do grupo, as lutas, os preconceitos e o teatro como ferramenta para transformação política e social.

* Esta entrevista é resultado de uma parceria entre o Satisfeita, Yolanda? e o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas, que incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?

ENTREVISTA || COLETIVO DE DANÇA-TEATRO AGRIDOCE

Por que a escolha pelo teatro?

Flávio Moraes: Acho que a escolha foi natural, não sei nem se podemos chamar de escolha. Nosso coletivo se intitula Coletivo de Dança-Teatro Agridoce. A dança está presente e foi, de certa forma, o ponto de início. Nunca foi só teatro, mas ele acabava vindo na frente ou tomando o lugar de foco. Somos amantes e adeptos de várias linguagens. Nós nos permitimos escrever, interpretar, levar o silêncio ao palco e, muitas vezes, a palavra não dita, o movimento.

Nosso próximo espetáculo tem a dança como alimento e tem sido muito louco entender esse corpo dançante em mim, entender que meu corpo, mesmo que eu não perceba, está carregado de marcas invisíveis, de imposições de posturas. Carregamos conosco um acumulado de “nãos”. Em mim, alguns deles estão na cintura que não quebra, nos ombros travados, na mão que apanhava quando “desmunhecava”, na voz que tinha que ser grave, no “não pode chorar”, “não poder ser frágil”, “não poder ser leve”. Minha vivência como ser humano, como homem, branco, gay, privilegiado e, principalmente, o reconhecimento desses privilégios, associado à minha vivência junto a meus colegues do Agridoce, têm quebrado muitos nãos em mim.

Igor Cavalcanti: Acho que nunca houve mesmo esse momento de escolha ou de ruptura com outras linguagens. O Agridoce se apresenta como coletivo de teatro e dança, mas não seria exagero colocar o audiovisual, porque todos os nossos projetos de teatro possuem um derivado audiovisual. Estamos sempre fluindo entre as linguagens.

Como vocês se reuniram?

Flávio Moraes: Sophia já conhecia Aurora e eu morava com Nilo, em 2017. Nilo, Sophia e Aurora se encontraram no processo de um espetáculo e eu entrei para executar a luz. Criamos intimidade e afinidade, o que resultou num grupo de Whatsapp. Certo dia, em uma conversa mais calorosa, uma troca de shades (indiretas) entre Sophia e Nilo, Sophia mandou um risinho e Nilo respondeu com “adoro o teu humor Agridoce”. Virou o nome do grupo do Whatsapp e, dias depois, Aurora fez uma identidade visual com o nome e nossos rostos e colocou no perfil. Então a gente já tinha nome e identidade visual, antes mesmo de se reconhecer de fato como grupo de teatro. Um tempo depois, após voltar de uma vivência com o Coletivo Lugar Comum, como ato de protesto à censura sofrida por Renata Carvalho no Festival de Inverno de Garanhuns, Sophia marcou uma reunião. Ela propôs que nos juntássemos para produzir nossos próprios trabalhos como grupo. Aí veio um edital de ocupação do Teatro Hermilo Borba Filho. Inscrevemos Trans(Passar), uma performance de Sophia, um solo fruto do TCC dela. Para essa versão, foi feita a adaptação da performance com inserção de Aurora e alguns outros textos dela, o que levou a um formato e entendimento mais definido de espetáculo. A gente nem tinha ainda uma dinâmica de grupo, uma estrutura, inclusive financeira, para dar suporte, mas fizemos acontecer. Nesse processo, pedimos uma ajuda a Igor, que era nosso amigo já de outros processos, na bilheteria. Foi um mês de temporada e daí Igor já não saiu mais e nem tinha como, já era um Agridoce.

Quais fatos são mais marcantes na trajetória enquanto companhia?

Flávio Moraes: Acho cada passo uma grande conquista. Conseguir levar Trans(Passar) para um espaço “tradicional” de teatro, com dois corpos trans em cena, suas histórias individuais e trazendo a de tantas outras meninas para o palco. Corpos marginalizados, agredidos de tantas e de todas as formas possíveis, de pé, em foco, em pauta durante um mês, foi um grande feito. Eu via o encerramento de Trans(Passar) da cabine de luz junto com Nilo e a cada semana tinha mais gente, e eu tinha um orgulho delas, um orgulho da gente. Eu sou bem suspeito para falar, sou o chorão do grupo, choro para falar, choro vendo a gente em cena, choro vendo o apoio e o acolhimento que a gente vem recebendo durante nossa jornada, choro de raiva, às vezes, porque faz parte também, né? Choro por tudo.

O Janeiro Sem Censura é outro feito que considero bem importante, pelo movimento, pelos temas, pela mensagem de resistência e pela forma como acontece e vem acontecendo com tanta gente querida e talentosa somando junto.

Nosso segundo espetáculo, Mar Fechado, também foi nos levando a outros lugares, conseguimos um edital no Teatro Hermilo Borba Filho; conseguimos também no Teatro Barreto Júnior, em março do ano passado, mas foi cancelado devido à pandemia.

Na pandemia, nesses tempos de distância, silêncios, ausências, saber se entender e permanecer, juntos e produzindo, também foi um grande feito. E mais recentemente nossa participação no Projeto Encruzilhada Nordeste, do Itaú Cultural, que foi uma surpresa muito feliz e nos deu um ânimo que estávamos precisando.

Uma cidade, um estado que censura uma atriz (Renata Carvalho) sucessivas vezes. (…) a gente se sentiu na obrigação de fazer algo no momento em que isso aconteceu, foi quando o Agridoce se uniu a outros grupos e teve a primeira edição do Janeiro sem Censura.

De que forma os lugares físicos, a cidade, o estado, de onde vocês criam influenciam na trajetória/pesquisa do grupo?

Nilo Pedrosa: Fiquei refletindo sobre essa pergunta e pensando sobre a nossa trajetória. Em Trans(Passar), a motivação é muito interior, a princípio de Sofia e posteriormente de Aurora, que se soma na construção desse roteiro e na produção. E uma coisa interessante é que só estão as duas em cena, mas elas trazem várias outras mulheres recifenses para contar essa história, que se materializam através das vozes dentro do espetáculo. Isso é trazer o espaço físico, através dessas pessoas que transitam e vivem nessa cidade. Depois vem Mar Fechado. Grande parte da criação foi na praia, ensaiávamos em Boa Viagem, na areia. E talvez se a gente não morasse aqui, se a gente existisse como grupo noutro lugar, o nome da peça nem fosse Mar Fechado e nem falasse sobre o mar.

Em 2019, fizemos uma ação num protesto do Ocupe Estelita, umas torres que estão sendo construídas no Cais José Estelita, e o movimento Ocupe Estelita é contra essa construção. Fizemos uma intervenção artística, colamos uns lambe-lambes e performamos. O nome da performance era Tubarão, uma semente do que viria a ser Rhizophora hoje, esse trabalho mais recente, que surge da minha inquietação, dentro do meu mestrado, sou formado em engenharia civil, em sustentabilidade dentro das construções. Da minha inquietação de ver como o espaço físico desta cidade, do Recife, é uma luta eterna de classes e de interesses. As cidades são idealizadas por pessoas de formas diferentes e como essas cidades se colocam de forma física e também de uma forma virtual, não-física, a cidade que existe na cabeça de cada pessoa. Rhizophora fala sobre isso, é o trabalho em que esse espaço físico da cidade do Recife está mais presente, a gente fala sobre o mangue, lembra que essa cidade foi construída em cima do manguezal e que nós somos esse mangue. E tudo vira matéria de trabalho porque a gente vive a cidade e esse trabalho é sobre viver a cidade.

E tem o Janeiro sem censura, que surgiu depois da censura sofrida por Renata Carvalho no festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Uma cidade, um estado que censura uma atriz sucessivas vezes. Ela foi censurada também em Garanhuns e a gente se sentiu na obrigação de fazer algo no momento em que isso aconteceu, foi quando o Agridoce se uniu a outros grupos e teve a primeira edição do Janeiro sem Censura.

Mar Fechado, segundo trabalho do Coletivo Agridoce, teve temporada cancelada no Barreto Júnior por conta da pandemia. Foto: Anny Stone

Como vocês viveram a pandemia enquanto grupo?

Flávio Moraes: Acho que tivemos dois momentos bem nítidos. Um distanciamento, um silêncio, um estranhamento carregado de incertezas a cada mês que a pandemia permanecia e as possibilidades pareciam cada vez mais distantes. Num segundo momento, voltamos a produzir, a entender possibilidades dentro do novo cenário das artes e desse mundo online. Até por questões práticas mesmo, como monetizar o grupo e repor os prejuízos da temporada cancelada no Barreto Júnior devido a pandemia, por exemplo. Desse levante, veio o edital do Sesc, Cultura em Rede, que passamos com o Conversando Pitangas, um circuíto de 10 lives, em que tivemos oportunidade de conversar com grupos, artistas independentes e performers. Logo depois lançamos um projeto de audioperformance, o Racontos, com 3 episódios inspirados na época de ouro das radionovelas. Começamos a viabilizar nossos processos de criação e ensaios remotamente. Chegamos a ensaiar coreografias de forma remota. Sophia, nossa coreógrafa, teve essa missão de conduzir esses corpos dentro da realidade possível, de um quarto, uma sala, uma varanda. Conseguimos, junto a todes que nos apoiam e estão firmes acreditando no nosso trabalho, fazer por mais um ano, sem incentivo algum, o Janeiro Sem Censura, todo online. Recebemos convites para festivais online, como o Luz Negra, do O Poste Soluções Luminosas, e mais recentemente o projeto do Itaú, Encruzilhada Nordeste.

Qual é o espaço social, cultural e político de atuação de um grupo de teatro?

Nilo Pedrosa: Para nós do Agridoce, no âmbito social, tem muito a ver com representatividade, com estar presente, ser visto e servir de exemplo para outras pessoas como nós. É sobre criar nossas próprias oportunidades. Além disso, a questão da educação. Os nossos trabalhos de uma certa forma educam nosso público, trazendo realidades que talvez eles não conheçam. No âmbito cultural, acho que é muito sobre nossas verdades, representar o que a gente vive, vê, pensa e trazer tudo isso para o nosso fazer artístico. No espaço político, nossa atuação está presente na militância LGBT, sempre será uma bandeira, porque somos LGBTs, todos os integrantes. E tem as questões de censura, que combatemos com veemência, não só com discurso, mas com ações. Essa tentativa de combater a censura a todo custo e de não deixar que nos silenciem e não deixar que as pessoas à nossa volta sejam silenciadas. Tudo isso resume o que é o Agridoce.

Vivemos momentos de ódio e intolerância. Como reverter esses sentimentos tão egoístas e covardes? Ódio se combate com ódio?

Sophia William: As pessoas estão deixando suas máscaras caírem com mais frequência, não estão fazendo questão de esconder seus ódios e intolerâncias, talvez por termos um presidente que não faz questão de esconder e acha que seu ódio e intolerância são opiniões, o que não é. Ódio e intolerância são completamente diferentes de opinião. Enquanto fazedores de arte, nós do Agridoce tentamos transformar nossas dores, angústias e anseios em arte. Entendendo que, às vezes, estar com uma flor na frente de um campo de batalha é muito mais forte do que apontar uma arma para quem está apontando uma arma para você. Porque você não vai estar ensinando nada, só se desgastando para tentar fazer aquela pessoa te entender. Você vai estar gritando, a pessoa vai estar gritando e ninguém vai se entender.

No contexto de violências que os corpos trans sofrem, como foi a criação de Trans(Passar)?

Sophia William: Eu, Sophia, enquanto corpo preto e trans, sofro violência diariamente. Essa violência me fez criar Trans(Passar), por ter sofrido violência dentro da própria arte, por não ser um corpo aceito, por ter tido professores de dança, diretores de dança e de teatro abusivos com o meu corpo, que não me aceitavam, que queriam que eu modificasse o meu corpo. Transmutei essa dor em estudo. Sou licenciada em Dança e não queria que os meus alunos sofressem o que sofri. Passei a estudar questões como a história do corpo, o que o corpo carrega, e a entender que cada pessoa tem a sua peculiaridade, sua vivência, seu poder, sua força e seu corpo. O meu corpo dizia uma coisa e os meus professores e diretores queriam que o meu corpo dissesse outra coisa. Isso não ajudou em nada a me construir, só fez com que eu me retraísse e me afastasse, até que entendi o poder que o meu corpo poderia ter na arte.

Comecei a me autoproduzir porque sabia que nenhum grupo de dança ou nenhum grupo da cidade iria abraçar os meus trabalhos. Eu ainda fazia parte do DIG, D’Improvizzo Gang, que foi um grupo que me acolheu na minha transição. Além do DIG, eu fazia parte do Balé Popular do Recife, e entendendo que eu iria começar a minha transição, entendendo a história do meu corpo, entendendo quem eu era, comecei a sair dos grupos. Porque eu sabia que eu não seria aceita em determinados grupos. Quando eu disse para o DIG que sairia porque começaria uma transição, que eu era uma mulher trans e que eu não me sentia mais confortável representando papéis masculinos, o grupo me abraçou: “não, você não vai sair, você vai continuar fazendo a sua arte e a gente vai entender isso juntos, a gente vai fazer a transição com você”. E foi isso que aconteceu, o DIG acabou transicionando comigo e foi isso que me fez continuar na arte.

Se eu não tivesse sido abraçada pelo DIG no início da minha transição, não teria tido o timing de convidar o pessoal do Agridoce para formar o grupo tempos depois, após a minha transição. E Trans(Passar) surge no momento em que eu queria colocar isso para fora, essas dores, essa violência, só que de outra forma. Queria provocar a sociedade a pensar e não simplesmente gritar, queria fazer com que a sociedade sentisse a minha dor através da minha arte. E é isso que acontece, todas as vezes em que apresento Trans(Passar), a gente sai sempre muito emocionado, todo mundo do grupo.

No início de Trans(Passar), quando entro em cena, vou diretamente ao público, perguntando às pessoas se elas querem um pedaço de mim, porque é isso que a sociedade espera e quer de uma pessoa trans ou travesti. Sempre quer um pedaço nosso. Querem nossos corpos nas esquinas, na prostituição, na marginalidade, mas não querem ver os nossos corpos na arte. As reações são diversas. Muitas se assustam, muitas dizem não, outras dizem sim. Quando elas dizem sim, tiro do meu corpo partes de um poema escrito por Aurora. Como artistas, sempre tentamos transmutar esse ódio que nos arrebata diariamente. E fazer com que a arte seja também um mote educador. Eu como licenciada, como professora, vejo que a arte também é um lugar para ensinar, um lugar completamente político. Não tem como dissociar. A arte sempre foi política.

Querem nossos corpos nas esquinas, na prostituição,
na marginalidade, mas não querem ver
os nossos corpos nas artes.

Vocês dizem que a arte é um espaço para ensinar as pessoas. Como lidar com isso?

Sophia William: Não precisamos gritar. A subjetividade às vezes é muito mais forte do que a objetividade. Precisamos fazer as pessoas pensarem sobre as informações. Se entregamos as coisas de mão beijada, as pessoas se tornam burras, ignorantes, porque elas não vão mais atrás. Vão estar sempre perguntando o que é aquilo e nós, como corpos dissidentes, não temos a obrigação de explicar o tempo todo quem somos. Precisamos cutucar a ferida, mostrando o que acontece com os corpos, a violência que a gente sofre, mas de outra forma, fazendo as pessoas pensarem, sentirem o que a gente sente e verem o que a sociedade faz e não simplesmente entregar de mão beijada um assunto, sublinhando cada texto, cada fala, cada movimento, porque isso torna a sociedade burra. Nós entendemos esse lugar de formação de público não só como querer atrair público, levar cada vez mais as pessoas aos espetáculos, mas fazer com que elas saiam do nosso espetáculo formadas, entendendo. Semear nelas uma coisa que elas vão pesquisar depois, que vão sair do espetáculo com aquele negócio na cabeça e vão querer ou não pesquisar, mas a semente foi deixada.

Como não cair na cilada do maniqueísmo, na arte, no teatro, na vida?

Sophia William: Acho que é uma resposta muito simples: é compreender que nada é absoluto, nem na arte, nem no teatro, nem na vida. O que a gente sempre fala dos nossos espetáculos é que eles nunca estão finalizados. Trans(Passar) já teve quatro versões, por exemplo, exatamente porque nada é só uma coisa. Nada é só bem ou só mal, só isso ou aquilo. A gente vive e essa vivência nos traz mudança e essa mudança nós levamos para o nosso fazer artístico. Tudo é mutável. A arte, o teatro e a vida são mutáveis. Nenhuma opinião é absoluta, porque nós estamos mudando a todo instante e todos aqueles que acreditam que as suas opiniões são absolutas caem em suas próprias armadilhas, em armadilhas criadas pelo seu absolutismo. A gente não precisa viver nessa dualidade de bem e de mal. Tudo isso foi criado por uma sociedade cristã, hierárquica, branca, elitista e que colocou a vida toda os brancos como seres divinos, os negros como seres demoníacos e ainda continua a fazer isso.

Trans(Passar), espetáculo de estreia, foi resposta poética à violência contra corpos trans. Foto: Anny Stone

Na cena que vocês apresentaram no Itaú, vocês trouxeram o Recife que está erguido sob o mangue. Como foi esse processo?

Sophia William: Visitamos a história do Recife, nossa ancestralidade, a ancestralidade da nossa cidade e em cima do que o Recife foi construído. Precisamos voltar ao passado, revisitar coisas. Não construímos o presente baseado apenas em questões do agora. Estudamos as famílias que vinham do Sertão em busca de emprego e acabavam não encontrando e vivendo em periferias. Como somos uma cidade cercada de água, uma cidade formada por várias ilhas, a maioria dessas comunidades são alagadiças, vivem do que tiram do mangue, caranguejo, sururu, marisco. O quintal dessas pessoas é o mangue, onde as crianças brincam, as famílias se reúnem. E ali é a casa deles, a morada deles. A gente precisou entender questões de leis, como a lei das Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), que é uma lei criada para proteger essas zonas, e que hoje as grandes construtoras querem burlar, retirando as pessoas de suas comunidades para construir avenidas, construir prédios. Vão tirar essas pessoas e colocar elas onde? João, que é o personagem principal de Rhizophora, vive essa dualidade, ele compreende os dois lados, mas acaba escolhendo um lado. Porque é o lado em que a lei está, o da comunidade, que é algo para ser respeitado, que é a lei das Zeis, que fala sobre a conservação desses espaços que são ocupados pela comunidade.

Uma mulher não tem força? A gente carrega a sociedade há muito tempo, sempre carregamos os homens nas nossas costas. Por que ser questionada sobre
essa força feminina? Por que a mulher tem que ser leve,
a que é carregada, a que é levantada?

Como você se vê como coreógrafa?

Sophia William: Não sou uma coreógrafa que está dentro do pensamento da estrutura estética do belo. Gosto de provocar. Não sou uma coreógrafa virtuosa. O virtuosismo é algo que eu questiono automaticamente pelo meu corpo trans em cena. Na apresentação do trabalho no Itaú, carrego um dos meninos do elenco e fomos questionados por isso. Porque não? Uma mulher não tem força? A gente carrega a sociedade há muito tempo, sempre carregamos os homens nas nossas costas. Então por que ser questionada sobre essa força feminina? Por que a mulher tem que ser leve, a que é carregada, a que é levantada? Essa é uma das coisas que eu questiono muito o grupo com as minhas coreografias.

Já fui questionada ao sair de um espetáculo, na época do DIG, Cafe Müller, por minha estrutura óssea. Fui questionada muitas vezes por fazer papéis de mulheres cis. Por que eu, enquanto mulher trans, sou questionada por fazer o papel de uma mulher cis, mas um homem quando faz o papel de uma mulher, como Paulo Gustavo, que passou a vida fazendo o papel de uma mulher, como o Magiluth, que é um grupo formado por homens, e fazem papéis femininos, não são questionados? E eu sou questionada porque tenho a força para carregar um homem em cena, porque a minha estrutura óssea é de determinada forma? Os nossos corpos estão aí para quebrar esse maniqueísmo, esse virtuosismo, essa dualidade, de quem tem força, de quem não tem.

Rhizophora - Estudo nº1

Rhizophora – Estudo nº1, foi apresentado no Cena Agora. Foto: reprodução de vídeo

A autorrepresentação e visibilidade de pessoas trans e travestis, nos vários setores e especificamente no mundo das artes, como vocês enxergam?

Sophia William: Nós ainda sentimos uma grande escassez de pessoas trans e travestis no cenário artístico recifense. Infelizmente somos um dos poucos grupos com pessoas trans e travestis no elenco. E isso faz com que a gente perceba a falta de representatividade e visibilidade, porque artistas existem no Recife e nós temos como provar. Como o trabalho, por exemplo, de Catarina Almanova, que lançou recentemente o curta Tornar-se monstra ou humana?, que foi um trabalho que eu fiz a produção e tive a oportunidade de participar. Não tem como negar que existem artistas trans e travestis na cidade do Recife. O que falta é oportunidade. Na minha carreira, entendi que eu precisava abrir as portas para mim mesma. Porque além de eu ser uma pessoa trans, sou uma pessoa negra. Sou atriz, bailarina, coreógrafa do Agridoce, mas também sou produtora. E tenho oportunidade de ver outros trabalhos e ver a escassez de pessoas trans trabalhando, seja na frente ou atrás dos palcos, protagonizando ou na produção de um filme, e isso para nós é algo muito triste. Porque a gente perde cada vez mais a vontade de fazer arte.

Eu sempre digo que eu e Aurora entendemos a importância de estarmos em cena. Porque ao nos verem em cena, outras meninas e meninos trans conseguem se enxergar. Essa é a grande importância da autorrepresentatividade e da visibilidade. Quando a gente chega e questiona o transfake, não estamos impedindo os artistas de exercerem a sua liberdade artística e poética. Estamos pedindo apenas uma chance para que possamos pelo menos fazer e representar papéis que falam sobre nós. É claro que a gente não quer fazer papéis só de pessoas trans ou travestis, mas estamos pedindo o mínimo. E esse mínimo é negado. Porque a arte continua reforçando os estereótipos que a sociedade já tem da gente, de que nós somos homens travestidos de mulheres, ou mulheres travestidas de homens, e não é isso. É a nossa identidade, o que nós somos.

O que a gente vê por aí são vários trabalhos sendo feitos, falando de pessoas trans e travestis, escritos por homens, brancos, heteronormativos, cis e que têm privilégios de passar em todos os editais, de ter contatos. E nós, enquanto pessoas trans e travestis, não temos esses privilégios. Não temos essas oportunidades. Então a autorrepresentatividade e a visibilidade para nós pessoas trans e travestis, para nós pessoas sexo dissidentes, para nós raça-dissidentes é muito importante. É entender que nós podemos estar ali, que queremos e devemos. E que não somos uma piada.

O que é ser um corpo político numa sociedade heteronormativa, elitista e racista?

Sophia William: É ser um corpo resistente, cansado de lutar, porque a gente cansa, mas precisamos estar ali, resistir, não podemos fraquejar, precisamos fazer com que outras pessoas trans e travestis, outras pessoas negras, entendam que elas podem estar ali. Que elas podem ocupar lugares, espaços que são socialmente nossos.

Esses dias conversando com uma amiga, estávamos conversando sobre a questão da raça e entendendo que a sociedade não foi feita para acolher pessoas sexo-dissidentes, pessoas trans ou travestis, pessoas LGBTQIA+ ou pessoas negras, porque enquanto a sociedade estava sendo construída, estávamos vivendo em cativeiros, senzalas, hospícios, porque as pessoas acreditavam que pessoas LGBTQIA+ eram loucas. Então a sociedade não estava sendo construída para nós, para nos acolher, pelo contrário, estava sendo construída para nos rejeitar, nos deixar em guetos, nos colocar no lugar marginal. Entender esse corpo político hoje é entender um corpo resistente, entender um corpo que pode e deve estar ali, ocupando o seu espaço, que é seu por direito. É o espaço que nós contribuímos para a construção. É ser um corpo que não precisa gritar para ser ouvido.

Sempre falo que o fato de muitas vezes eu ir ao shopping e estar na praça de alimentação comendo com Aurora já é um ato político porque as pessoas não esperam ver um corpo trans e travesti transitando durante o dia. O que as pessoas querem é ver os nossos corpos nas esquinas. O que as pessoas esperam é ver os nossos corpos na prostituição e não sentadas na praça de alimentação comendo e conversando. É um lugar nosso por direito, um espaço social, que devemos ocupar.

Então ser um corpo político é ser um corpo resistente é ser um corpo que ocupa, é ser um corpo que fala por si só, que não precisa estar gritando aos sete cantos do mundo e dizendo quem é porque eu sou. Pelo contrário, eu apenas quero e preciso estar ao lado daqueles que vão lutar comigo, daquelas que vieram antes de mim, construíram uma sociedade, que lutaram na ditadura, para que hoje eu pudesse fazer arte, para que hoje eu pudesse ocupar espaços que antes elas não poderiam ocupar, pessoas trans e travestis, pessoas negras.

Coletivo Agridoce. Foto: Anny Stone

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