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Amor trágico no Sertão
Crítica de Uma mulher vestida de Sol

Miguel Marinho  e Bruna Alves em Uma Mulher Vestida de Sol. Foto: Eric Gomes

No Sertão imaginário projetado no palco, o Grupo Grial reescreve sua própria história. Com Uma Mulher Vestida de Sol, a trupe pernambucana inaugura uma nova fase em sua trajetória de 26 anos. Essa produção reafirma seu compromisso estético, mas abre canais para novas possibilidades, após cinco anos afastada da cena.

Desde sua fundação por Maria Paula Costa Rêgo e Ariano Suassuna em 1997, o Grial tem sido um farol da dança armorial, mesclando as chamadas raízes profundas da cultura nordestina com a linguagem contemporânea. Esta montagem se conecta às pulsações destes tempos, articulando reflexões sobre temas urgentes, como o feminicídio, através da junção de dança, poesia sertaneja, canto ao vivo e teatro.

Em espetáculos anteriores, o Grial chegou a contar com 18 artistas em cena, criando um apelo imediato e uma exuberância próxima às manifestações populares que conquistavam o público instantaneamente. Agora, com apenas quatro intérpretes, há um notável deslocamento na concepção coreográfica. Esta nova configuração traz uma sutileza e uma forma diferente de ocupar o palco.

Emerson Dias e Aldene Nascimento, veteranos do grupo, carregam em seus corpos a memória viva do frevo, do maracatu, do cavalo-marinho e de outras danças tradicionais nordestinas. Ao mesmo tempo, a interação com os novos integrantes propicia uma dinâmica mais íntima, abrindo espaço para experimentações. Esta sinergia conduz a produção a um quase minimalismo cênico, valorizando o processo como uma arte em permanente construção. 

A participação de Miguel Marinho incorpora camadas significativas à performance. Como poeta e músico, ele traz a poesia sertaneja improvisada, conhecida como glosa, que adiciona imprevisibilidade e frescor ao espetáculo. Suas palavras dançam no ar, criando um contraponto com os movimentos dos bailarinos. Além de sua contribuição poética, Marinho assume a direção musical da montagem, trazendo uma sonoridade única com seu pandeiro. 

Mas é Bruna Alves, cantora com deficiência visual, que traz uma dimensão única à encenação. Sua presença é simultaneamente um ato de inclusão e um convite para pensar sobre nossa percepção da dança e da vida. Com Bruna em cena, somos desafiados a experienciar o movimento de uma maneira incomum, questionando nossas noções convencionais sobre espaço e expressão corporal. Sua voz, elemento central de sua arte, enriquece a paisagem sonora da obra.

O espetáculo, em sua totalidade, investe em temas complexos e relevantes. A ideia da luta por terra, um assunto de grande importância social e política no Brasil, é explorada de maneira poética. 

Paralelamente, a força nefasta do patriarcado é outro elemento crucial da narrativa. O espetáculo examina criticamente as estruturas de poder baseadas no gênero, expondo como essas dinâmicas afetam profundamente a sociedade. A presença de Bruna, como uma mulher artista com deficiência visual, adiciona uma camada extra de significado a esta discussão, desafiando estereótipos e expectativas de gênero.

Emerson Dias e Alden Nascimento. Foto: Eric Gomes / Divulgação

A coreografia, fruto de um processo colaborativo inédito no Grial, é um testemunho da abertura artística do grupo. Ao compartilhar o processo criativo, Maria Paula Costa Rêgo incentiva que diversas vozes artísticas se entrelacem, resultando em um mosaico de movimentos rico e polifônico. Os gestos fluem entre a precisão técnica das danças tradicionais e a liberdade da dança contemporânea, criando um vocabulário corporal bem instigante. Esta composição coreográfica em camadas amplia os horizontes do Grial, subvertendo convenções e assumindo novos riscos criativos. 

Musicalmente, o espetáculo apresenta uma composição sonora diversificada. A criação de Miguel Marinho e do grupo Em Canto e Poesia se torna um elemento narrativo próprio, construindo uma estrutura acústica que abrange o canto do aboio, os ritmos do maracatu e momentos de silêncio significativo. A inclusão de sons típicos do Sertão – como o sino da cabra e o vento – cria uma atmosfera que evoca vividamente o ambiente sertanejo.

Para materializar essa atmosfera, o grupo optou por povoar a cena com couros de bode, elementos característicos das terras e estradas do sertão.

Tematicamente, esta nova versão de Uma Mulher Vestida de Sol apresenta uma perspectiva artística distinta em relação à montagem de 2002. Naquele ano, Maria Paula Costa Rêgo criou a peça Uma Mulher Vestida de Sol – Romeu e Julieta, engajando elementos shakespearianos tanto na encenação quanto na direção de arte. A produção anterior, embora enraizada no texto de Suassuna, estabelecia um diálogo com a tradição teatral clássica de maneira que sutilmente evocava as obras do bardo inglês.

Em contraste, esta nova interpretação opta por uma imersão mais profunda no universo “arianesco”. A versão atual ressalta elementos característicos da obra de Suassuna, como a conexão intrínseca com a terra e as complexidades da cultura sertaneja. A disputa pela terra, tema central na obra original, ganha novas dimensões nesta montagem. O espetáculo estabelece paralelos sutis com debates contemporâneos sobre o conflito entre agronegócio e agricultura familiar, atualizando a narrativa para o contexto atual brasileiro.

Além disso, questões como o machismo e o feminicídio, temas presentes na dramaturgia original, são aqui exploradas sob um prisma atual. O Grial opta por examinar essas problemáticas de forma mais direta, sem abrir mão da poesia e da força lírica da narrativa de Suassuna.

Esta nova montagem, quando comparada à versão de 2002, revela uma notável transformação na leitura artística do Grupo Grial sobre o material original. Tal mudança reflete escolhas estéticas distintas e demonstra uma resposta às dinâmicas sociais e culturais das últimas duas décadas.

A ideia da luta por terra e a força nefasta do patriarcado estão presentes no espetáculo. Foto: Eric Gomes

A recusa do Grupo Grial em oferecer respostas fáceis exige do público uma participação ativa, uma disponibilidade para cocriar significados. Cada elemento do espetáculo – seja um gesto, uma nota musical ou uma palavra falada – funciona como um estímulo à sensibilização, instigando o espectador a questionar suas concepções sobre arte, tradição e identidade nordestina.

É importante reconhecer que a proposta artística do Grial nesta produção pode apresentar desafios de recepção para parte do público. A complexidade e a natureza interpretativa da obra podem não ser imediatamente acessíveis a todos os espectadores, especialmente aqueles menos familiarizados com as nuances da dança contemporânea. No entanto, é crucial lembrar que a dança, como forma de expressão artística, frequentemente opera no campo do abstrato e do simbólico. A compreensão total ou imediata nem sempre é o objetivo principal, e sim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Um dos desafios para o Grial reside em encontrar um equilíbrio entre a expressão de sua proposta artística e a criação de pontos de conexão com um público diversificado. Isso não implica necessariamente em simplificar a obra, mas em criar dimensões de sentido que possam ressoar de maneiras variadas com espectadores distintos, enriquecendo assim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Ficha Técnica

Direção coreográfica: Maria Paula Costa Rêgo
Intérpretes criadores: Aldene Nascimento e Emerson Dias
Direção musical/Intérprete/Poeta: Miguel Marinho
Intérprete cantora: Bruna Alves
Iluminação: Luciana Raposo
Sonoplastia: Jordy
Figurino: Biam Diphá
Cenografia: Grupo Grial

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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A máquina de fazer festas e… tiranos
Crítica do espetáculo Édipo REC

Jocasta (Nash Laila) coroa o DJ Édipo (Giordano Castro).Foto Camila Macedo / Divulgação

DESEJO DE SABER: Dançar até os pés ficarem inchados

Pompeia, SP, 28 de setembro de 2024. Dia seguinte à estreia do espetáculo Édipo REC, do Grupo Magiluth, do Recife

O desejo de poder é uma das forças motrizes das ações de Édipo, my love. Tem também o amor… um belo exercício de poder.

E a vida é decepcionante???

Mas será que somos gregas? A democracia foi forjada lá? E o teatro nasceu na Grécia? Gaguinho, personagem da atriz Odília Nunes em A Guará Vermelha, da Cia. do Tijolo, também contestou essa tese. O Corifeu de Édipo REC, na ressaca anos após a festa,  pondera que “já se fazia muito teatro em muitos lugares, nas mais variadas línguas, espalhados num território gigante e plural hoje singularizado na palavra África”.

Mas antes tem “a” festa e ela dura horas, muitas; anos, séculos. E como nos alimentamos desses estímulos de som, do banal ao mais potente, energia pura e outras pujanças de uma luz mágica de Jathyles Miranda que maneja as emoções, dessas que estão à flor da pele, mas busca o tutano.

Fazemos pose, se dói em algum ponto do corpo ninguém vai ver, até a queda final.

A música e o DJ, que será rei, as pequenas invejas e as grandes traições ocupam os espaços, se deslocam, traçam coreografias.

Na festa tão contagiante com suas drags provocadoras, adivinhadoras, somos levadas por tantas sensações e ambientes do poder macro ao micropoder. Do país Brasil, ao universo das nossas bolhas de tantas performances e multiplicações de imagens.

Mas afinal, do que você está falando?

De mim, bebê, pois cada uma fala de si e tenta valer sua narrativa, mesmo quando disfarça com os escudos da teoria.

Mário Sergio, no papel de Creonte, que ambiciosa ser o poderoso chefão. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Do fim da peça Édipo REC passando pelo  drink no templo da Pina Bo, das negociações da galera no Pompeu às tarefas prosaicas de limpar casa, preparar comida, e tentar elaborar algum pensamento sobre o 15º campeonato do Magiluth foram muitos tempos intercalados…. em apenas um dia.

Nem sabemos exatamente como chegamos naquele baile tão cheio de nuances, que o dono da sina só chega muitas poses depois.

Seguimos o Coro drag Erivaldo Oliveira e suas inflexões debochadas, seu modelito brilhante e botas de plataformas enormes.

Ainda na convivência, o clima se instala. Munido com sua máquina de captar imagens, Bruno Parmera de barba e boné (quase um disfarce) se projeta em Corifeu multiplicado por muitos clicks.

Creonte se apresenta ambíguo, quem é ele ?

Caímos na festa – o palco do Sesc Pompeia – com suas arquibancadas vazias e seu dancing lotado de espectadores/colaboradores que seguem o fluxo de Parmera, de Mário, de Erivaldo.

E são muitos climas de festa… a chegada de Pedro-Tirésias, num figurino deslumbrante, a dizer alguma verdade e celebrar outros teatros zecelsianos e muitos níveis de influências. A presença do Pedro Wagner traz uma liga, uma segurança, uma propriedade na cena; que o audiovisual permita que ele esteja muitas vezes no teatro. 

A atriz Nash Laila (Jocasta) na estreia, ao lado da diretora Cibele Forjaz. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Nash Laila como Jocasta. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Eu danço, tu danças, ela dança, nós dançamos, el_s dançam. E chega o “dono” da festa, o DJ Édipo (Giordano Castro), que conquistou sua Jocasta (Nash Laila) e apaziguou um país. Pelo menos por um tempo…

E que coisa mais linda a presença da atriz Nash Laila. Que coisa boa o Magiluth acolher uma intérprete depois de tantos anos sem a presença feminina no palco. Pareceu-me que o jogo ficou mais… delicioso. O que pode a atuação de uma mulher num elenco masculino? Muchas cosas, cariño. Inventa outras humanidades.

Enquanto dançamos, a máquina de fabricar “estados de felicidade” (que remete à peça Dinamarca) faz seu papel de explorar e questionar as imagens na sociedade contemporânea. A festança esconde, mas não anula com sua tecnologia, esse “clube” em crise existencial, aprisionado em ciclos de consumo, excessos que levam à sensação de vazio.

O jogo cênico com imagens gravadas e em tempo real promovem uma realidade nuançada e desafios interpretativos para quem observa ou se posiciona no palco. Muitas chaves são lançadas para quem busca significados. As ferramentas estão no ar.

 E como já pode ser considerado pré-histórico o costume de fotografar e partilhar vivências íntimas em álbuns de família discretamente… A narrativa visual da era digital é uma guerra extenuante e incessante de exposições públicas, cada qual “palestrando” sua saga no vasto anfiteatro digital da contemporaneidade.

O primeiro jorro / A primeira golfada, poucas horas depois da festa-peste saiu assim… Mas sem conectividade e com as memórias cheias dos meus equipamentos, o texto ficou grudado nas barreiras de saída…

Pedro Wagner- Tirésias em primeiro plano. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Desejo de saber: Pestes, enigmas, sinas.

SP, alguns dias após a estreia de Édipo REC

Traduzida como Édipo Rei em algumas versões (Mário da Gama Kury, Lilian Amadei Sais, Trajano Vieira e outros), e intitulada Édipo Tirano na edição publicada pela Todavia em 2017 (com tradução e comentários de Leonardo Antunes), a peça entrelaça incesto e patricídio. Esta, que é uma das mais renomadas tragédias gregas, foi escrita por Sófocles por volta de 429 a.C. e tem sido revisitada e recriada por artistas de diferentes épocas.

A obra explora a jornada de Édipo, rei de Tebas, em sua busca pela verdadeira identidade e pela solução do assassinato do antigo rei, Laio. A trama desvela gradualmente o terrível destino do protagonista, que, sem saber, matou seu pai e se casou com a própria mãe, cumprindo uma antiga profecia.

No artigo Édipo: a encruzilhada fatal, a psicanalista Maria Homem aponta que o texto dramatúrgico de Sófocles pode ser considerado o primeiro grande thriller ocidental, com várias reviravoltas, girando em torno de um crime central. “Quem matou Laio? Fio condutor do suspense. A essa camada se superpõe uma história de investigação de si mesmo, um processo – trágico – de desvelamento de si. O detalhe é que desde o início somos advertidos pelo cego que mais vê, Tirésias, de que o saber pode ser perigoso… [1]”

Édipo e Jocasta em sua festa. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Édipo REC, a 15ª montagem do grupo Magiluth reinterpreta a tragédia de Sófocles da perspectiva contemporânea e podemos pensar nos conceitos desenvolvidos por Jean Baudrillard, de que vivemos em um mundo de simulacros – cópias sem originais – onde a distinção entre realidade e representação se tornou borrada. Neste contexto, a “hiper-realidade” substitui a realidade “autêntica”, e os signos e símbolos se tornam mais reais do que aquilo que supostamente representam. Os indícios que nos guiam por esse caminho revelam-se na encenação, que enfatiza os processos de produção na tecnologia, mídia e cultura da imagem.

O espetáculo está dividido em dois atos: o primeiro é uma celebração exuberante que ecoa o excesso de estímulos visuais da nossa era; o segundo apresenta o desenrolar da tragédia inevitável.

O primeiro, com direito a esquenta-festa na temporada paulistana na área de convivência do Sesc Pompeia, começa enquanto o público aguarda para adentrar no teatro. Alguns personagens – Corifeu (Parmera), Coro (Erivaldo), Creonte (Mário Sérgio) e Mensageiro (Lucas) circulam. Os outros personagens só “aparecem” dentro do teatro.

O Coro-drag, equilibrado em suas plataformas e do alto da escada convoca: “Sejamos carnaval. Sejamos essa alegria devastadora embriagada…” para depois cravar “Vamos fazer dessa noite, a noite mais linda do mundo”, um refrão também da música A Noite Mais Linda Do Mundo (A Felicidade), cantada por Odair José, que já faz um diálogo com outra canção popular inserida em Dinamarca, Quando Chegar o Amanhã, gravada por Leonardo Sullivan.

Neste trabalho comemorativo dos 20 anos de trajetória do Grupo Magiluth, a companhia realiza uma retrospectiva artística, tecendo habilmente elementos e temas de seus espetáculos anteriores na trama de Édipo REC. Esse processo de autorreflexão cênica está carregado de  referências sutis e explícitas a produções passadas. A dramaturgia expande as citações, abrangendo desde a mitologia grega até a cultura brasileira.

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Ainda no prólogo, o Coro-drag-Erivaldo, entre batidas de leque e toques de sarcasmo, afirma que ninguém poderá ser considerado feliz antes de ter vivido todos os dias até sua morte. Essa ideia constitui um dos pilares de qualquer versão de Édipo, sintetizando uma de suas reflexões mais profundas.

O Coro pergunta, responde, aconselha: “A vida é decepcionante? É decepcionante! Mas é isso que temos! Então finjam ter outra vida…”

O título Édipo REC reporta-se simultaneamente à cidade do Recife e ao ato de gravação (REC). Esta escolha expõe a combinação do mito clássico de Édipo com elementos contemporâneos da era digital, trazendo para a cena as pesquisas do diretor Luiz Fernando Marques – Lubi sobre as intersecções entre teatro e cinema. A obra esquadrinha o impacto da constante documentação e compartilhamento de nossas vidas nas redes sociais e outros meios digitais sobre nossa percepção da realidade e identidade.

Marques, em conjunto com o dramaturgo Giordano Castro e o elenco, desenvolve procedimentos cênicos que desafiam as convenções temporais e espaciais, criando um jogo complexo entre o passado mítico e o presente urbano. A não-linearidade cronológica da montagem aciona um dispositivo questionador da própria natureza do tempo no teatro e na vida.

A festa com o público no palco. Camila Macedo / Divulgação

O cenário transforma o palco em um ambiente frenético de celebração: luzes, fumaça, telões com projeção e música alta, envolvendo a plateia em uma experiência sensorial imersiva. Durante esse momento de “descontração”, muitas pequenas situações são expostas como o chamado para  dançar até os pés ficarem inchados, numa evocação ao nome Édipo ou quando o Coro faz menção a Édipo como elucidador de mistérios, homenageando a figura de Chico Science ao apontar que ele é aquele que fincou uma antena em meio às esculturas de lama e decifrou os enigmas.

A encenação de Édipo REC abraça e explora a noção de simulacro de maneira envolvente. A transformação do palco em uma boate com DJ e interação direta com o público cria uma hiper-realidade que engole tanto atores quanto espectadores. Esta reinterpretação encampa o poder avassalador da mídia e da cultura pop na formação das identidades. 

O uso de tecnologia audiovisual, com câmeras filmando e projetando cenas ao vivo, adiciona uma camada extra. Acompanhamos simultaneamente ao “real” e sua representação mediada. Esta dinâmica se estende à representação de Tebas como um “Recife-Pompéia fantasmagórico”, evocando uma ilusão de comunidade efêmera.

Em meio a esse fluxo, Édipo é coroado. Como diz um personagem: “Ele que é o próprio LSD – Luz, Som e Desejo!”

O jogo é intenso entre o elenco formado por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner, com a participação da atriz Nash Laila. Os personagens Corifeu, Coro, Édipo, Mensageiro, Tirésias, Creonte e Jocasta coexistem com figuras e dilemas contemporâneos.

O Corifeu convida o público a sair do teatro, sob o pretexto de que precisa filmar tudo novamente. Nesse segundo ato, enfrentamos a tragédia em sua essência. Tirésias, o sábio cego, reitera uma das frases mais lúcidas, belas e devastadoras da dramaturgia de todos os tempos: Nunca digas que uma pessoa foi feliz sem que tenha vivido o último dia de sua vida.

Vinte anos se passaram desde aquela grande festa, das juras de amor e da coroação de Édipo. O clima predominante é diametralmente oposto ao do primeiro ato. A peste se alastrou pela cidade, imperando o medo e a desconfiança. Tudo está à beira do abismo.

Essa tragédia festivo-pestilenta convoca para o teatro temas políticos e morais da nossa era. Questões éticas e suas consequências são abordadas, como o célebre episódio do fotógrafo que registrou a imagem de uma criança esquelética espreitada por um abutre. [2]

Parmera, o Corifeu, que capta as imagens. Foto: Camila Macedo / Divulgação

O Corifeu propondo a dancinha juntos na festa. Foto: Camila Macedo / Divulgação

As interrupções constantes do Corifeu (“Corta!”) e as mudanças abruptas de cena enfatizam a artificialidade da narrativa, tensionando qualquer noção de realidade coerente e unificada. 

A intensa interatividade e o uso extensivo de tecnologia podem, por vezes, obscurecer a fluidez e as questões filosóficas fundamentais da tragédia original. Há momentos em que o espetáculo corre o risco de priorizar o secundário. Já a apropriação da violência e do trauma levanta questões éticas sobre a estetização da barbárie no teatro. Um aspecto com muita possibilidade de discussão.

Embora por vezes corra o risco de se perder em seus  próprios labirintos, Édipo REC é um espetáculo tão provocador quanto potente em suas interpretações plurais e singulares. É a montagem que celebra os 20 anos do Grupo Magiluth, prosseguindo um trabalho de pesquisa importante de uma companhia que tem a coragem criativa para não deixar os clássicos intocáveis e mete a mão nessas obras para buscar a pulsação dos tempos atuais.

Lembrei de um espetáculo que assisti no Festival de Avignon, França, em 2023, que, embora não dialogue diretamente em temática com o trabalho do Magiluth, apresenta aproximações interessantes em dois aspectos: a celebração festiva e o uso inovador de recursos de projeção de imagem.

Extinction, dirigido por Julien Gosselin, apresenta-se como uma produção ambiciosa de cinco horas que desafia as convenções teatrais tradicionais. A peça inicia com um concerto de techno de uma hora, durante o qual cerveja flui gratuitamente e o público recebe convites para dançar.

Há uma radicalidade no uso de tecnologia visual em Extinction. Uma tela gigante exibe imagens em preto e branco, pontuando momentos de intensidade dramática. A transição para a representação principal é marcada por uma mudança na técnica de apresentação: os atores são vistos em parte na presença teatral e em imagens filmadas ao vivo e projetadas em preto e branco, com cinegrafistas invisíveis ao público. Baseado em textos de Thomas Bernhard, Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal, o espetáculo explora temas complexos da sociedade vienense e suas reverberações. 

A alegria do primeiro ato. Foto: Camila Macedo/Divulgação.

A sisudez do segundo ato, quando Tirésias passa a real para Édipo. Foto: Camila Macedo / Divulgação

A dramaturgia de Giordano Castro e a cena de Lubi são ricas em intertextualidade, incorporando referências de filmes como Édipo Rex de Pasolini, Funeral das Rosas, de Matsumoto; Hiroshima, mon amour, de Alain  Resnais com roteiro da poeta Marguerite Duras. Além de filmagens num Recife soturno e desolado. Essas imagens, juntamente com outras, oferecem insights para significações e camadas que podem amplificar a recepção.

Há muito o que desenvolver sobre o diálogo entre o teatro e o cinema elaborado na montagem, especialmente a partir da questão lógica espectral e fantasmática dos que retornam da memória de outros tempos, bem como da sensação de solidão em meio a essa comunidade efêmera. No entanto, no momento, sinto-me exaurida. Registro apenas o desejo de retornar a esses assuntos e revisitar Édipo REC por outra perspectiva. Talvez depois de assistir ao espetáculo uma segunda vez, quem sabe.

O Édipo de Castro é arrogante, tirânico, que ostenta sua a húbris [3]; charmoso como alguns déspotas e meio infantil; reconhece por um lado seus traumas, mas ainda quer fazer valer o seu poder através de palavras e gestos, parecendo não entender que as “massas” abandonam os derrotados.

Por enquanto, encerro por aqui constatando que em Édipo REC o corpo assume a cidade numa pulsação alucinante. Levar a peça para a festa consagra o poder de ruptura com o tempo cotidiano, enquanto manifestação minúscula do encontro trágico na Antiguidade. E mesmo que não haja aqui o “incêndio das consciências”, na expressão de Roland Barthes, Édipo prossegue sendo o próprio enigma.

O Mensageiro (Lucas Torres), o amigo de Laio que testemunhou o assassinato. Foto: Camila Macedo / Divulgação

NOTAS

[1] HOMEM, Maria. Édipo: a encruzilhada fatal. In: SÓFOCLES. Édipo Tirano. São Paulo: Editora Todavia, 2017. E-book
[2] A fotografia “O abutre e a menina”, tirada por Kevin Carter em 1993 no Sudão, durante uma grave crise humanitária causada pela guerra civil, tornou-se um ícone do fotojornalismo e desencadeou um intenso debate ético. Carter acompanhava uma missão da ONU quando capturou a imagem de uma criança desnutrida com um abutre ao fundo. A foto, publicada no New York Times, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1994, mas também gerou controvérsia sobre a ação do fotógrafo em não ajudar a criança. Carter enfrentou depressão devido às críticas e ao trauma de suas experiências, culminando em seu suicídio em 1994. Anos depois, descobriu-se que a criança era um menino chamado Kong Nyong, que sobreviveu à fome, mas faleceu adulto em 2006 devido a uma febre.
[3 A húbris ou hybris (em grego ὕβρις, “hýbris”) é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunçãoarrogância ou insolência (originalmente contra os deuses)… https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%BAbris
 Na tragédia grega clássica, húbris era frequentemente uma deficiência fatal que causava a queda do herói trágico. Normalmente, o excesso de confiança levava o herói a tentar ultrapassar os limites das limitações humanas e assumir um status divino, e os deuses inevitavelmente humilhavam o ofensor com um lembrete agudo de sua mortalidade. https://www.merriam-webster.com/dictionary/hubris

Serviço:
Édipo REC
Quando: Até 26/10. Quinta a sábado, 20h. Domingos, 17h. Dia 12/10, sábado, 17h. Dia 23/10, quartas, 20h
Quanto: R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada), R$ 18 (credencial plena)
Onde: Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP
Duração: 105 minutos
Classificação etária: 18 anos

Ficha técnica:
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Uma jornada irônica pelo feminismo contemporâneo
Crítica: “¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista”

Liliana Albornoz Muñoz, em sua peça ¿Dónde están las feministas? Foto: Rocío Farfán / Divulgação

O título ¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista , peça escrita, dirigida e atuada pela peruana Liliana Albornoz Muñoz já diz muito sobre a obra. A artista, com sua forte presença cênica, estremece a perspectiva confortável sobre o assunto E apresenta um encenação provocativa e pessoal que desafia as expectativas sobre o feminismo e a identidade feminina no contexto peruano e latino-americano. Na peça, o humor funciona como um mecanismo de defesa (e de ataque) contra a realidade opressiva.

A montagem é dividida em sete cenas e um epílogo, cada uma explorando diferentes facetas dessa experiência feminina e feminista. Albornoz habilmente utiliza suas vivências pessoais para questionar a estrutura patriarcal que continua exigindo posturas irrepreensíveis das mulheres, mesmo em meio a um cenário de profundas desigualdades estruturais. 

A artista inicia declarando suas inúmeras atividades – atriz, produtora, divulgadora, etc – , para destacar o contexto econômico precário que força as mulheres a assumirem muitas tarefas não por vaidade, mas por pobreza. Na sequência dos pequenos atos, ela protagoniza a líder de uma assembleia feminista fictícia, que, em tom satírico, critica exigências extremas dentro do movimento. Se coloca no lugar da  “Outra”, ao explorar o papel de amante, confrontando julgamentos sobre sua identidade feminista. Revela sua relação com a família, especialmente com o pai, explorando as complexidades das dinâmicas familiares patriarcais. Expõe vulnerabilidades pessoais, humanizando a figura da “feminista perfeita”. Aponta as deficiências estruturais do Peru. Critica a romantização do sobretrabalho feminino. E no epílogo, responde à pergunta do título.

Ela emprega a ironia para expor contradições dentro do movimento feminista e da sociedade em geral. ¿Dónde están las feministas? se insere no cenário do feminismo de abordagem interseccional, com ênfase no empoderamento e inclusão, mas com chave no humor inteligente e até debochado.

Tem muitas variedades de batatas no Peru. E elas significam muitas coisas. Foto: Rocío Farfán / Divulgação

O espetáculo reflete os desafios enfrentados pelas mulheres peruanas, incluindo a  sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado; o aumento da violência de gênero; a precariedade econômica, com muitas mulheres trabalhando no setor informal; a luta contra setores políticos ultraconservadores que se opõem às demandas feministas.

Liliana Albornoz pergunta “onde estão as feministas?” como um pretexto para entender e questionar as relações sexuais, afetivas e familiares. Ela, que é fundadora do coletivo ativista feminista Collera Red y Marea Roja, se expõe publicamente sobre as inconsistências pessoais que poderiam deslegitimá-la como feminista, salientando como todes nós, em uma sociedade cheia de erros, carregamos incoerências. Para falar sobre feminismo, a artista escolheu falar sobre si mesma, tocando em pontos como rebelião, inconformismo, fraudes amorosas e o clã de mulheres, com dose de humor ambíguo para enfrentar a seriedade dos temas.

O espetáculo utiliza projeções de imagens, vozes gravadas e a participação de duas colaboradoras brasileiras, Kelly Santos e Alma Luz Adélia. Concebido durante a Sala de Parto 2022/23, um programa de Nova Dramaturgia Peruana promovido pelo Teatro La Plaza, o projeto foi dirigido por Alejandro Clavier e Claudia Tangoa, com orientação do dramaturgo chileno Bosco Cayo desde a fase de escrita. 

A atriz troca de figurino a cada quadro, começando com um modelito preto composto por short brilhante, blusa decotada e bota de cano alto, e depois usa vestido longo, traje escuro e traje claro. Os cenários e adereços também mudam conforme a cena, incluindo cadeira, mesa, microfone e balões. Pelos materiais apresentados, parece uma produção de baixo custo, mas feita com muita paixão e honestidade. 

Ao final, nos agradecimentos, Liliana Albornoz falou da difícil situação que o Peru enfrenta atualmente e dos desafios dos artistas na luta por sobrevivência. Nós, brasileiros, que passamos há tão pouco tempo por um governo negacionista e perseguidor da cultura, sentimos uma preocupação maior com esses artistas que vivem em condições similares na América Latina.

FICHA TÉCNICA
Direção, dramaturgia e performance: Liliana Albornoz Muñoz
Assistência de direção: Lorena Lo Peña
Em cena: Kelly Santos e Alma Luz Adélia
Assessoria de dramaturgia: Bosco Cayó
Desenho sonoro e coordenação técnica: Gabriela Paredes Rodríguez
Desenho audiovisual: Daniel Lauz Huihua
Operação de luz: Juliana Jesus
Desenho de arte: Karen Bernedo
Figurino: Alonso Núñez, Gloria Andrés e Gabriela Soto
Assessoria de figurino: Sandra Serrano
Produção: Lorena Lo Peña e Liliana Albornoz Muñoz
Produção no Brasil: Movimentar Produções

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

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Bote a mão na consciência desde criança
Crítica de “O Estado do Mundo…”
7ª edição MIRADA

O ator Edi Gaspar manipula pequenos objetos com projeção na tela. Foto: Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), uma produção do grupo português Formiga Atômica, flerta com  a tradição do teatro engajado, utilizando a arte como meio de conscientização social. Focada principalmente no público infantojuvenil, a encenação aborda a urgente crise climática, mostrando-se ousada, oportuna e necessária no contexto atual. A obra dialoga em algum grau com o movimento projetado por Greta Thunberg, reconhecendo o poder dos jovens na luta contra as mudanças climáticas.

O espetáculo propõe uma análise sobre a situação do mundo em seus diversos aspectos: natural, político, geográfico, social, histórico, econômico e humano. O ator Edi Gaspar desenvolve um monólogo progressivamente envolvente, situado em uma esfera gigante que representa um meteorito ou um planeta, concebida pelo cenógrafo Eric da Costa. Ao lado, uma tela de projeção circular permite ao público visualizar em detalhes – através de uma câmera operada por Edi – todas as miniaturas que ilustram grandes catástrofes ambientais: o desmatamento da Amazônia, o mar de plástico na Malásia, a poluição atmosférica na China, entre outras. 

O texto de Inês Barahona e Miguel Fragata mescla o cotidiano com o fantástico. A jornada de Edi, o protagonista de 8 anos, serve como dispositivo narrativo para abordar conceitos complexos de forma acessível.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) explora a responsabilidade ambiental e o impacto global dede ações cotidianas. O espetáculo joga com a relação entre pequena e grande escala, entre o individual e o coletivo, lembrando do papel de objetos comuns em potenciais catástrofes naturais. A encenação investiga questões cruciais, como a extensão da influência de itens do dia a dia em desastres ambientais de larga escala e como nossas ações locais repercutem em regiões distantes do planeta. 

O T-Rex surge como símbolo de resistência, convocando as crianças para uma guerrilha simbólica. O meteorito, com aberturas articuladas, revela diferentes geografias protagonizadas por outras crianças ao redor do mundo.

A peça colocar em cena relações de causa-efeito entre gestos aparentemente insignificantes e suas amplas consequências. Foto: Divulgação

Embora a peça apresente uma abordagem criativa e eficaz para simplificar questões socioambientais complexas, é importante reconhecer que esta simplificação pode resultar em uma visão excessivamente otimista da realidade. A ideia de responsabilidade compartilhada entre indivíduos, empresas e Estados merece um escrutínio mais aprofundado, considerando as intricâncias do sistema capitalista global e os interesses econômicos enraizados. Essa perspectiva subestima o poder de grupos de interesse, lobbies corporativos e dinâmicas geopolíticas que frequentemente se sobrepõem aos desejos da população em geral.

Mesmo que Brasil e Portugal compartilhem a mesma língua oficial, as variações linguísticas entre o português brasileiro e o português europeu podem ser substanciais. Essas diferenças não se limitam ao vocabulário, mas incluem pronúncia, entonação, ritmo e até construções gramaticais. Isso pode resultar em barreiras de compreensão, especialmente em contextos onde a clareza e a imediaticidade da comunicação são cruciais, como no teatro.

Isso aconteceu apresentação do espetáculo do Grupo Formiga Atômica. A quantidade de texto, a velocidade da fala do ator e seus acentos lusitanos criaram dificuldades de entendimento para as plateias brasileiras. Qual seria a solução para uma situação dessas? Utilizar legendas projetadas em português brasileiro durante a apresentação? Não tenho respostas, mas perguntas. O que aconteceu foi uma dispersão do público infantil nos momentos mais textuais.

Montagem do grupo português Formiga Atômica. Foto: Divulgação

As ações e, principalmente, as execuções dos jogos com as miniaturas filmadas mostrando as catástrofes magnetizaram a plateia. A incorporação de projeções de vídeo e filmagem ao vivo, procedimento utilizado em algumas encenações contemporâneas, enriquece visualmente a montagem e ressalta a velocidade digital em que vivemos. Esse recurso reflete um mundo onde eventos globais são transmitidos em tempo real, funcionando de maneira eficaz no contexto desta montagem.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) demonstra como o teatro infantil pode abordar temas complexos de forma acessível e envolvente. Apesar dos desafios linguísticos e de alguma simplificação, a peça consegue plantar sementes importantes para a conscientização ambiental, estimulando o pensamento crítico e o engajamento do público infantojuvenil.

 

FICHA TÉCNICA
Encenação: Miguel Fragata
Texto: Inês Barahona e Miguel Fragata
Interpretação: Edi Gaspar
Cenografia: Eric da Costa
Figurinos: José António Tenente
Música original: Fernando Mota
Desenho de luz: José Álvaro Correia
Vídeo: João Gambino
Adereços: Eric da Costa, José Pedro Sousa, Mariana Fonseca e Rita Vieira (design gráfico)
Maker: Guilherme Martins
Construção de cenografia: Gate7
Direção técnica: Renato Marinho
Consultoria: Henrique Frazão
Produção executiva: Luna Rebelo e Ana Lobato
Produção: Formiga Atómica
Produção no Brasil: Sendero Cultural | Adryela Rodrigues
Assistente de produção no Brasil: Robson Emílio
Assessoria jurídica no Brasil: Carnide, Rodrigues e Souza Sociedade de Advogados
Coprodução: LU.CA – Teatro Luís de Camões, Comédias do Minho, Materiais Diversos e Théâtre de la Ville  

A Formiga Atómica é uma estrutura apoiada pelo Ministério da Cultura | Direção-Geral das Artes  

www.formiga-atomica.com | @formiga.atomica.ac

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Ilusões perdidas
Crítica do espetáculo “Esperanza”
7ª edição MIRADA

A visualidade da cena é sombria, soturna. Foto: Paola Vera / Divulgação

Esperanza, uma colaboração entre a diretora Marisol Palacios e o dramaturgo Aldo Miyashiro, propõe-se a ser um retrato crítico da sociedade peruana dos anos 1980, focalizando uma família de classe média em Lima. Fico a pensar de qual ou de quais esperanças eles estão se referindo desde o título. Da a ideia da “esperança concreta”, uma força motriz para a mudança social e política inspirada em Ernst Bloch? Uma chama que ilumina a escuridão, uma energia que sustenta a luta pela justiça e pela liberdade, poetizada por Pablo Neruda? Ou a crítica de Nietzsche, que considera a esperança uma ilusão que prolonga o sofrimento? Ou mesmo numa interpretação livre do termo, uma expectativa matemática, que pode ser referida como “valor esperado” ou “esperança matemática”, da Teoria das Probabilidades, de William Feller? Ou nos voltamos para as articulações de Paulo Freire, que faz uma distinção entre “esperança” (passiva) e “esperançar” (ativa)? Para Freire, a esperança passiva é uma espera por algo que pode ou não acontecer, enquanto “esperançar” é uma ação ativa, uma prática que envolve luta e transformação social.

O núcleo da trama gira em torno da visita iminente de um candidato a prefeito, evento que o patriarca vê como sua chance de salvação. Essa personagem encarna a busca por uma saída individualizada diante de uma situação que atinge a população de seu país – de violência e miséria econômica. . Sua obsessão em oferecer um banquete, quando a família mal tem o que comer no dia a dia, exemplifica como a busca por “salvar a pele” pode cegar alguém para as necessidades reais e imediatas.

O espetáculo teatral se desenrola no interior dessa casa de classe média em Lima, Peru, ao longo de um único dia. No cenário vemos mesa e cadeiras, ao fundo a cozinha, uma televisão de tubo, sofá, telefone, uma escada que leva ao primeiro andar, uma porta. A motiv-ação, a força que faz o dia caminhar e esse almoço organizado pelo pai da família para um político aguardado em vão. O pai, empolgado com a perspectiva ilusória de ascensão social, não percebe o caos que consome e deteriora as relações familiares.

O clima tenso dentro de casa reflete um período histórico específico marcado por expectativas de dias melhores, às voltas com a carestia e uma crescente violência no país. Os gestos largos do pai são confrontados com os gestos pequenos da mãe e dos filhos. Enquanto o pai se perde em seus delírios de grandeza, forçando sua esposa a situações humilhantes para conseguir ingredientes fiado nos armazéns da vizinhança, um drama silencioso permeia o lar: o filho caçula está desaparecido. 

A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão. Foto: Divulgação

Esperanza, uma peça que prometia mergulhar nos complexos tecidos sociais e familiares do Peru dos anos 80, mas não chega como uma análise penetrante das suas dinâmicas. Apesar de momentos de insight e ambições louváveis, a peça frequentemente se mostra esticada, como se tivesse vocação para um conto e foi apresentada como romance.

Mesmo com um elenco talentoso e afiado, formado por Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet, o jogo teatral não aparece pleno. Enquanto as atuações são competentes, os personagens muitas vezes se sentem unidimensionais, limitados por um roteiro que não lhes permite desenvolver plenamente.

O patriarca é retratado de maneira quase caricatural, servindo como uma demonstração exagerada de masculinidade tóxica. Esta escolha, embora possa visar a crítica social, acaba por reforçar as normas de gênero prejudiciais, sem oferecer uma reflexão crítica ou alternativas.

A luta da esposa pela sobrevivência da família seria um ponto de partida promissor para discutir a resistência feminina. No entanto, a peça relega essa personagem a um papel secundário, negligenciando a profundidade de sua experiência e a complexidade de sua resistência. A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão, mas sua história não é explorada em profundidade.

As personagens da peça parecem presas numa espera passiva por mudanças, mesmo que haja tentativas frustradas de ação, como os esforços da família para lidar com o desaparecimento do caçula, ou nas investidas anuladas do filho ou da filha de ir embora. O desaparecimento do filho mais novo, um evento potencialmente catalisador para uma crítica social profunda, é minimizado pela obsessão do pai com a visita do político. 

Embora Esperanza capture efetivamente a estética dos anos 80, essa escolha parece inclinar-se para uma nostalgia restaurativa, que busca reconstruir o passado perdido sem questionar na cena suas convulsões sociais e políticas. A direção de Marisol Palacios enfrenta o desafio de tecer juntos os diversos fios temáticos e narrativos de Esperanza. Em alguns momentos, a peça brilha, oferecendo vislumbres do poder que poderia ter se esses elementos fossem mais habilmente entrelaçados.

No entanto, a coesão geral sofre devido a uma abordagem que, em alguns pontos, parece hesitante ou inconsistente. Esperanza é uma obra que, apesar de suas boas intenções e momentos de clareza temática, luta para realizar plenamente seu potencial. A peça se encontra em uma encruzilhada entre a ambição de abordar questões de grande peso social e político e a capacidade de fazê-lo de maneira que ressoe verdadeiramente e com pontes com o presente também sombrio.

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Marisol Palacios e Aldo Miyashiro
Direção: Marisol Palacios
Elenco: Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet
Direção de arte: Micaela Cajahuaringa
Música e design de som: Manolo Barrios e Wicho García
Coordenação de comunicação: Gabriela Zenteno
Coordenação técnica: Juan Escudero
Coordenadora de teatro: Melissa Ramos
Produção geral: Centro Cultural PUCP
Produção executiva: Mariana Baumann
Fotografia cênica: Paola Vera
Operação de luz e som: Christopher Choton e Ari Gume Escobar
Técnica: Richard Sermeño e Baldemiro Negreros
Design gráfico: Shessira Villalobos
Coordenação técnica no Brasil: Melissa Guimarães
Equipe técnica no Brasil: Elaine Batista Silva, Maria Rosa Cangelle Lopes e Sibila Gomes dos Santos
Cenotecnia: Divadlo Produções | Julio Dojcsar
Produção Executiva no Brasil: Jennifer Souza e Jéssica Turbiani   
Direção de Produção no Brasil: SIM! Cultura | Daniele Sampaio 

 

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