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Amor trágico no Sertão
Crítica de Uma mulher vestida de Sol

Miguel Marinho  e Bruna Alves em Uma Mulher Vestida de Sol. Foto: Eric Gomes

No Sertão imaginário projetado no palco, o Grupo Grial reescreve sua própria história. Com Uma Mulher Vestida de Sol, a trupe pernambucana inaugura uma nova fase em sua trajetória de 26 anos. Essa produção reafirma seu compromisso estético, mas abre canais para novas possibilidades, após cinco anos afastada da cena.

Desde sua fundação por Maria Paula Costa Rêgo e Ariano Suassuna em 1997, o Grial tem sido um farol da dança armorial, mesclando as chamadas raízes profundas da cultura nordestina com a linguagem contemporânea. Esta montagem se conecta às pulsações destes tempos, articulando reflexões sobre temas urgentes, como o feminicídio, através da junção de dança, poesia sertaneja, canto ao vivo e teatro.

Em espetáculos anteriores, o Grial chegou a contar com 18 artistas em cena, criando um apelo imediato e uma exuberância próxima às manifestações populares que conquistavam o público instantaneamente. Agora, com apenas quatro intérpretes, há um notável deslocamento na concepção coreográfica. Esta nova configuração traz uma sutileza e uma forma diferente de ocupar o palco.

Emerson Dias e Aldene Nascimento, veteranos do grupo, carregam em seus corpos a memória viva do frevo, do maracatu, do cavalo-marinho e de outras danças tradicionais nordestinas. Ao mesmo tempo, a interação com os novos integrantes propicia uma dinâmica mais íntima, abrindo espaço para experimentações. Esta sinergia conduz a produção a um quase minimalismo cênico, valorizando o processo como uma arte em permanente construção. 

A participação de Miguel Marinho incorpora camadas significativas à performance. Como poeta e músico, ele traz a poesia sertaneja improvisada, conhecida como glosa, que adiciona imprevisibilidade e frescor ao espetáculo. Suas palavras dançam no ar, criando um contraponto com os movimentos dos bailarinos. Além de sua contribuição poética, Marinho assume a direção musical da montagem, trazendo uma sonoridade única com seu pandeiro. 

Mas é Bruna Alves, cantora com deficiência visual, que traz uma dimensão única à encenação. Sua presença é simultaneamente um ato de inclusão e um convite para pensar sobre nossa percepção da dança e da vida. Com Bruna em cena, somos desafiados a experienciar o movimento de uma maneira incomum, questionando nossas noções convencionais sobre espaço e expressão corporal. Sua voz, elemento central de sua arte, enriquece a paisagem sonora da obra.

O espetáculo, em sua totalidade, investe em temas complexos e relevantes. A ideia da luta por terra, um assunto de grande importância social e política no Brasil, é explorada de maneira poética. 

Paralelamente, a força nefasta do patriarcado é outro elemento crucial da narrativa. O espetáculo examina criticamente as estruturas de poder baseadas no gênero, expondo como essas dinâmicas afetam profundamente a sociedade. A presença de Bruna, como uma mulher artista com deficiência visual, adiciona uma camada extra de significado a esta discussão, desafiando estereótipos e expectativas de gênero.

Emerson Dias e Alden Nascimento. Foto: Eric Gomes / Divulgação

A coreografia, fruto de um processo colaborativo inédito no Grial, é um testemunho da abertura artística do grupo. Ao compartilhar o processo criativo, Maria Paula Costa Rêgo incentiva que diversas vozes artísticas se entrelacem, resultando em um mosaico de movimentos rico e polifônico. Os gestos fluem entre a precisão técnica das danças tradicionais e a liberdade da dança contemporânea, criando um vocabulário corporal bem instigante. Esta composição coreográfica em camadas amplia os horizontes do Grial, subvertendo convenções e assumindo novos riscos criativos. 

Musicalmente, o espetáculo apresenta uma composição sonora diversificada. A criação de Miguel Marinho e do grupo Em Canto e Poesia se torna um elemento narrativo próprio, construindo uma estrutura acústica que abrange o canto do aboio, os ritmos do maracatu e momentos de silêncio significativo. A inclusão de sons típicos do Sertão – como o sino da cabra e o vento – cria uma atmosfera que evoca vividamente o ambiente sertanejo.

Para materializar essa atmosfera, o grupo optou por povoar a cena com couros de bode, elementos característicos das terras e estradas do sertão.

Tematicamente, esta nova versão de Uma Mulher Vestida de Sol apresenta uma perspectiva artística distinta em relação à montagem de 2002. Naquele ano, Maria Paula Costa Rêgo criou a peça Uma Mulher Vestida de Sol – Romeu e Julieta, engajando elementos shakespearianos tanto na encenação quanto na direção de arte. A produção anterior, embora enraizada no texto de Suassuna, estabelecia um diálogo com a tradição teatral clássica de maneira que sutilmente evocava as obras do bardo inglês.

Em contraste, esta nova interpretação opta por uma imersão mais profunda no universo “arianesco”. A versão atual ressalta elementos característicos da obra de Suassuna, como a conexão intrínseca com a terra e as complexidades da cultura sertaneja. A disputa pela terra, tema central na obra original, ganha novas dimensões nesta montagem. O espetáculo estabelece paralelos sutis com debates contemporâneos sobre o conflito entre agronegócio e agricultura familiar, atualizando a narrativa para o contexto atual brasileiro.

Além disso, questões como o machismo e o feminicídio, temas presentes na dramaturgia original, são aqui exploradas sob um prisma atual. O Grial opta por examinar essas problemáticas de forma mais direta, sem abrir mão da poesia e da força lírica da narrativa de Suassuna.

Esta nova montagem, quando comparada à versão de 2002, revela uma notável transformação na leitura artística do Grupo Grial sobre o material original. Tal mudança reflete escolhas estéticas distintas e demonstra uma resposta às dinâmicas sociais e culturais das últimas duas décadas.

A ideia da luta por terra e a força nefasta do patriarcado estão presentes no espetáculo. Foto: Eric Gomes

A recusa do Grupo Grial em oferecer respostas fáceis exige do público uma participação ativa, uma disponibilidade para cocriar significados. Cada elemento do espetáculo – seja um gesto, uma nota musical ou uma palavra falada – funciona como um estímulo à sensibilização, instigando o espectador a questionar suas concepções sobre arte, tradição e identidade nordestina.

É importante reconhecer que a proposta artística do Grial nesta produção pode apresentar desafios de recepção para parte do público. A complexidade e a natureza interpretativa da obra podem não ser imediatamente acessíveis a todos os espectadores, especialmente aqueles menos familiarizados com as nuances da dança contemporânea. No entanto, é crucial lembrar que a dança, como forma de expressão artística, frequentemente opera no campo do abstrato e do simbólico. A compreensão total ou imediata nem sempre é o objetivo principal, e sim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Um dos desafios para o Grial reside em encontrar um equilíbrio entre a expressão de sua proposta artística e a criação de pontos de conexão com um público diversificado. Isso não implica necessariamente em simplificar a obra, mas em criar dimensões de sentido que possam ressoar de maneiras variadas com espectadores distintos, enriquecendo assim a experiência estética e emocional proporcionada pelo espetáculo.

Ficha Técnica

Direção coreográfica: Maria Paula Costa Rêgo
Intérpretes criadores: Aldene Nascimento e Emerson Dias
Direção musical/Intérprete/Poeta: Miguel Marinho
Intérprete cantora: Bruna Alves
Iluminação: Luciana Raposo
Sonoplastia: Jordy
Figurino: Biam Diphá
Cenografia: Grupo Grial

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Monga, um espetáculo em construção
Farofa do Processo
Segunda parte

Monga, trabalho em andamento de Jéssica Teixeira, na Farofa do Processo. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

O espetáculo em processo Monga, concebido e protagonizado por Jéssica Teixeira visita o lugar do estranho com ousadia, para falar de si e de uma dinâmica do mundo opressor/repressor. Para isso, a artista mergulha na jornada de Julia Pastrana, mexicana que adquiriu notoriedade sob a alcunha depreciativa de “mulher-macaco”, figurando como uma das principais inspirações dos espetáculos de curiosidades, conhecidos como Freak Shows, no Brasil e no mundo. O trabalho Monga foi apresentado na Farofa do Processo, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, e nós assistimos no dia 5 de março, na sessão das 11h.

Começamos nossa reflexão por Julia Pastrana (1834-1860), uma mulher indígena mexicana que se tornou conhecida mundialmente como “a mulher mais feia do mundo” devido a uma condição genética rara, designada como hipertricose terminal (caracterizada por um crescimento excessivo de pelos em partes do corpo), combinada com uma possível forma de acromegalia, que conferiam traços faciais e dentárias incomuns.

Pastrana foi vendida ou entregue a um administrador de espetáculos, Theodore Lent, que se tornou seu empresário e mais tarde seu marido. Lent explorou a aparência de Pastrana, exibindo-a em shows por toda a Europa e América do Norte, onde ela era anunciada como a “mulher-urso” ou “mulher macaco”.

Julia era uma artista talentosa, com habilidades que incluíam canto e dança. Ela possuía uma voz mezzo-soprano – dizem que encantadora – e apresentava peças musicais desde ópera a canções populares da época. Poliglota, ela falava várias línguas, incluindo espanhol (sua língua materna), inglês e francês, o que facilitava sua comunicação com o público de vários países, durante suas turnês.

Apesar de sua fama, a artista teve uma vida marcada por exploração e desumanização, o que evidencia o início do entretenimento comercial baseado na objetificação e na exploração de corpos não normativos.

Os conceitos teóricos e as referências nos permitem entender seu caso não apenas como um evento isolado, mas como parte de uma estrutura mais ampla de opressão e objetificação. Em Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color, Kimberlé Crenshaw desenvolve o conceito de interseccionalidade para explicar como diferentes sistemas de opressão (raça, gênero, classe) interagem na vida das mulheres negras. Aplicado à situação de Pastrana, esse conceito ajuda a entender como sua exploração foi moldada não somente por seu gênero, mas também por sua etnicidade e suas características físicas.

Prazer Visual e Cinema Narrativo, de Laura Mulvey, é um texto seminal que introduz a ideia do “male gaze” argumentando que as mulheres são objetificadas nas narrativas cinematográficas para o prazer do espectador masculino. Embora Mulvey se concentre no cinema, seu conceito pode ser utilizado ao contexto de Pastrana, onde ela foi objetificada e desumanizada para entretenimento público.

Judith Butler discute, em Problemas de Gênero: Feminismo e a Subversão da Identidade“, a performatividade do gênero e como as normas de gênero são socialmente construídas e mantidas através de atos performativos repetidos. A exploração de Pastrana destaca a rigidez e a crueldade das normas de gênero e beleza, bem como a violência da não conformidade.

Essas referências teóricas fornecem uma estrutura para compreender a vida e a exploração de Julia Pastrana não apenas como um caso de curiosidade do século 19, mas como um exemplo da contínua objetificação, marginalização e desumanização de corpos não normativos e da persistente construção do “outro” nas sociedades patriarcais e coloniais.

Ao explorar essas dimensões, podemos reconhecer a relevância contínua de sua história para as discussões feministas contemporâneas sobre corpo, identidade e resistência.

Após sua morte em 1860, o abuso persistiu com a exibição de seu corpo e do seu filho. Essa exploração, iniciada por seu marido Theodore Lent, reflete a objetificação de Julia em vida e a desumanização após sua morte, configurando a extensão da dominação patriarcal. No século 20, os corpos foram esquecidos e depois redescobertos, mostrando a fascinação contínua pela imagem de Julia. Somente no século 21, após esforços de ativistas e do governo mexicano, Julia foi repatriada e enterrada no México em 2013, um gesto simbólico para restaurar sua dignidade.

Cena do espetáculo em andamento Monga, com Jessica Teixeira. Foto: Ligia Jardim / Divulgação

Jéssica Teixeira sinaliza nas tramas de Monga os preceitos do “realismo traumático” de Hal Foster. A peça se ergue em um complexo de células narrativas, incluindo a jornada de Julia Pastrana, o poema-prosa Entre fechaduras e rinocerontes de Frei Betto, uma conversa com Deus, reflexões sobre a ausência, interações com a plateia, algumas músicas incluindo uma sobre o inferno, numa exploração crua da percepção social dos corpos e da incessante busca por sentido em um mundo fragmentado.

Teixeira, habilmente, não se limita à representação direta da realidade; em vez disso, ela convoca uma série de técnicas que sugerem um encontro falho com o real, alinhando-se com a teoria de Foster. A utilização de luzes estroboscópicas, microfones e uma variação de cenários do claro ao escuro forja uma atmosfera imersiva e projeta a repetição do irrepresentável, gerando um choque que supera o visual ou temático para perturbar a própria estrutura da obra.

A atuação despojada, com a atriz por vezes usando uma máscara de macaco, critica a busca incessante por um ideal inatingível de perfeição. Esse ato desafia os espectadores a confrontar suas próprias percepções e preconceitos.

A peça Monga se engaja com o conceito de “abjeto”, conforme explorado por Foster, ao abordar temas considerados repulsivos e marginalizados como meio de confrontar e refletir sobre as condições sociais contemporâneas. A conversa com Deus e a música que proclama que “o inferno está cheio” provocam diretamente o público, desafiando crenças religiosas e sociais arraigadas. Enquanto a interação direta com a plateia questiona a vida e nossa duração neste planeta e a suposta completude dos corpos ou corpos perfeitos.

Ao incorporar o texto de Frei Betto, Entre fechaduras e rinocerontes, Teixeira enriquece a narrativa. Embora a essência poética do texto original ofereça profundas reflexões sobre a vulnerabilidade humana, penso que uma adaptação mais radical – com cortes e justaposições – removendo as camadas de moralidade católica poderiam destilar suas qualidades sem perder a essência.

Monga oferece insights valiosos sobre as dinâmicas da arte contemporânea e sua capacidade de engajamento com a realidade traumática. É um meio de explorar e expressar as complexidades e contradições do mundo atual, destacando os desafios de representação, engajamento e resistência em um mundo pós-ideológico.

A interação com a plateia, um momento crucial de Monga pode requerer ajustes em sua dramaturgia. Em vez de questionar diretamente a presença de burgueses na audiência, por exemplo, Teixeira poderia optar por um caminho mais indireto, lançando uma série de perguntas provocativas que funcionem como espelho, refletindo os preconceitos e as suposições do público. Esse mecanismo pode desarmar e chegar ao miolo das crenças e atitudes do espectador.

A artista, ao se declarar habitante e dona de um “corpo extremo”, estabelece uma conexão com Pastrana, desafiando as normativas sociais que moldam a percepção dos corpos e questionando as fronteiras entre o normal e o anormal. Essa ligação honra a memória de Pastrana e amplifica a posição de Monga na defesa da dignidade inerente de cada ser humano, independentemente de sua aparência.

Monga se apresenta como uma obra que desafia as convenções, tanto em forma quanto em conteúdo. A atuação e direção de Teixeira sintetizam uma dança entre luz e sombra, entre o visível e o invisível, criando um espaço onde o realismo traumático de Hal Foster encontra um novo sopro.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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