Por Elise, do Grupo Espanca!, de Belo Horizonte, provocou um susto, uma alegria, no Festival de Teatro de Curitiba de 2005. Apresentado no Fringe, a mostra paralela da programação, a montagem foi a grande revelação daquele ano. Ainda em 2005, a encenação participou da programação do Festival Recife do Teatro Nacional.
Mais amadurecido e com substituições no elenco, o espetáculo Por Elise foi exibido no 23º Festival de Inverno de Garanhuns, com o Teatro Luiz Souto Dourado lotado.
A montagem ganhou experiência, mas não perdeu o frescor. As imagens poéticas surgem de situações cotidianas prosaicas. Com sua estrutura extremamente fragmentada, a partir do texto de Grace Passô, Por Elise prossegue a nos intrigar, entre cachorro que aposta que os humanos têm sentimentos e abacates que podem atingir qualquer passante. E que insiste em lembrar que viver é arriscar-se e os envolvimentos são inevitáveis.
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Abaixo dois textos sobre o espetáculo, escritos em 2005 e publicados originalmente no Diario de Pernambuco
Edição de Segunda-Feira, 28 de Março de 2005
Fringe oxigena Festival de Curitiba
Mostra paralela continua com a função de revelar os talentos
Ivana Moura
Participar da mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba, o Fringe, é uma aventura. O prêmio para quem consegue ultrapassar as barreiras pode ser o reconhecimento, digamos nacional. Em meio a 187 espetáculos, alguns se destacam pela qualidade. Desta vez, o grupo Espanca!, de Belo Horizonte, conseguiu emocionar plateias e crítica com uma história delicada, tocante e simples. Por Elise, com texto e direção de Grace Passô, vai desfiando e entrecruzado os conflitos e anseios de cinco personagens. A diretora é a contadora de história, uma negra de olhos grandes e muito carisma, que plantou um pé de abacates no quintal e vive sob ameaça de que um desses frutos caia na cabeça. Ela lembra ao espectador que “é preciso ter cuidado com o que se planta”. Do humor inicial, o tom vai ganhando verticalidade, nos pequenos dramas das personagens. Uma moça está triste, pois terá que sacrificar seu cachorro que está doente. Ela se apaixona pelo lixeiro, que chega à vizinhança à procura do pai, que um dia saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. O homem, que tem por função levar o cão, sonha com o Japão.
As histórias das dores repentinas que invadem o cotidiano daqueles vizinhos emocionam. As personagens se encontram, mas não se salvam. A vida tem que seguir seu rumo, nem sempre com sonhos realizados. O percurso de cada um deixa marcas profundas. Como na cena em que o domador/caçador de cachorros participa de uma dança de sedução com o cão que sabe que vai morrer.
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Edição de Segunda-Feira, 21 de Novembro de 2005
Espetáculo mineiro explora fragilidade humana
FESTIVAL – Na montagem Por Elise, companhia Espanca! ensina a transpor muros da relação com o mundo para sobreviver
Ivana Moura
Da equipe do DIARIO
Uma cena nonsense e um recado existencial. Uma mulher com medo que abacates caiam sobre sua cabeça e o aviso imediato “Cuidado com o que você planta”, num misto de advertência e constatação que pode ser entendido como “cuidado com os desejos, porque eles podem vingar”. O espetáculo Por Elise, da companhia mineira Espanca! – cartaz de sábado e domingo da 8ª versão do Festival Recife do Teatro Nacional-, traz esse misto de ingenuidade e profundidade no seu discurso. O palco nu dialoga com os lugares (tanto objetivos quanto subjetivos) que temos possibilidade de ocupar na vida contemporânea. No diário virtual da montagem, o grupo cita Tarkovski: “O teatro joga com os possíveis deslocamentos das posições dos desejos”, atestando que a beleza delicada da encenação é resultado de uma trabalho árduo de equipe.
Construída com delicadeza e pitadas generosas de humor, a montagem, com texto e direção de Grace Passô submete os nossos individualismos cotidianos, quando cruza a vida de várias pessoas, vizinho e prestadores de serviço, de uma cidade de médio porte, a uma necessidade de relacionamento, de amizades, de sentimentos. Na economia de recursos cênicos, de aparatos visuais ou tecnológicos, Por Elise investe na palavra poética para dizer muitas coisas ao público.
A dona-de-casa que plantou os abacates conhece os dramas dos outros vizinhos da rua, marcados pela solidão, pela perda, pelo abandono e pela esperança. Ela é a contadora de histórias baixinha e de olhos grandes, interpretada pela própria Grace. A moça de vermelho (Samira Ávila) está triste e desorientada, porque seu cão está condenado e, em breve, chegará o rapaz da carrocinha para sacrificar o animal. Ela é pura emoção, cuja síntese é mimetizada pelo ato de cair. A garota se apaixona pelo lixeiro (Gustavo Bonés), que está à procura do pai, que saiu de casa para comprar cigarros e nunca mais voltou. Os dois correm pelo palco, encontram-se, perdem-se, deixam frases soltas pelo meio do caminho.
O funcionário (Paulo Azevedo) que chega para sacrificar o cão da moça desorientada é um inadequado para a profissão. Ele sonha deixar aquela vida e ir para o Japão. É um personagem difícil, contraditório (e por isso mesmo, cheio de humanidade), defendido com muita elegância pelo ator, que equilibra seu porte com o medo e a insociabilidade do tal funcionário. A figura do cão é interpretada por Marcelo Castro, que aos poucos vai conquistando a plateia com sua composição poética e contagiante, ao fugir de uma possível caricatura dos que preferem o caminho fácil quando fazem papel de animal.
Por Elise é uma fábula de efeito moral, numa narrativa elipsada, marcada por vazios, saltos e silêncios profundos. O título da peça remete à peça de Beethoven, Pour Elise, que em algumas cidades é utilizada em anúncio de caminhão de gás. Por Elise foi eleito informalmente por críticos, jornalistas e público como um dos melhores espetáculos do Fringe (programação paralela do Festival de Teatro de Curitiba) deste ano, em meio a mais de 150 montagens.
“Cuidado com o que toca; com a capacidade que gente tem de se envolver com as coisas”, adverte a verborrágica dona-de-casa da peça, incentivando a plateia a se arriscar nos envolvimentos, mesmo que isso gere “uma pancada doce”, aquela dor repentina, mas que faz com que cada um acredite que vale a pena transpor os muros para o encontro, a conversa de amigos, que no fundo é sempre muito bom.
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Confira entrevista com Grace Passô, concedida após a apresentação do espetáculo Por Elise, no Teatro Luiz Souto Dourado, de Garanhuns, durante o 23º Festival de Inverno. Ela fala sobre o Grupo Espanca!, o seu amadurecimento profissional e os novos projetos, agora que deixou o grupo (mas continua envolvida com as montagens do repertório).