Não é possível entender o jornalista, cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues sem o Recife. Do mesmo modo que não dá para considerar o teatro brasileiro sem o dramaturgo ou o bailado dos dribles no futebol sem o cronista apaixonante. Ele dizia que a mais reles pelada de ponta de esquina tinha a complexidade de uma tragédia shakespeareana. Esse gênio, praticamente uma unanimidade atualmente, termo que ele combatia dizendo que toda unanimidade é burra, já foi chamado de pornográfico e coisas do gênero.
Esse Nelson nasceu no Recife, em 1912. Chegaria aos 100 anos hoje, dia 23. As sensações inaugurais que experimentou na capital pernambucana e em Olinda ficaram gravadas em suas memórias. Gostos e cheiros, de pitangas e cajus. “O mar significava Olinda, a minha infância profunda. Portanto o mar significava a minha pátria, a minha paisagem”.
O pai, Mário Leite Rodrigues, foi um jornalista combativo formado pela Escola de Direito do Recife que havia trabalhado em 13 veículos na capital pernambucana. Ficou na miséria depois que seu jornal foi empastelado por questões políticas e foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Viajou sozinho. Mas a mulher e os filhos chegaram pouco depois. Nelson tinha quatro anos de idade e o sentimento do mundo impregnado nor corpo e na sua alma.
Sua filha, a jornalista e pedagoga Maria Lúcia Rodrigues tem uma tese. Para ela, ter nascido em Pernambuco e ser da família Rodrigues forjou o gênio Nelson. “A minha hipótese é que ele tem duas bases: o Recife e a família Rodrigues. De 1700 até agora, os Rodrigues sempre foram urbanos, médicos, jornalistas, profissionais da classe média. Não tinham cabedais, mas era mais livre para exercer a crítica. Essa família pernambucana o cercou durante a vida inteira. Só sobreviveram a tantas tragédias porque eram muito unidos”, avalia.
E as tragédias não foram poucas. Ele passou fome, viu seu irmão ser assassinado na redação, sofreu com tuberculose. As idiossincrasias do escritor o levaram a ser chamado de reacionário. Seu filho Nelsinho entrou para a guerrilha contra a ditadura militar e isso agravou mais suas contradições internas.
“Um intelectual pernambucano disse que Nelson pegou os dramas do Recife e colocou uma roupagem carioca. Esse ímpeto de dar murro em ponta de faca, de dizer com todas as letras que o rei está nu, é muito mais pernambucano do que carioca”, argumenta ela. Essa ideia estruturou a exposição Ocupação Nelson Rodrigues, que esteve em cartaz no Instituto Itaú de São Paulo e chega ao Recife para se instalar na Torre Malakoff hoje.
“A firmeza com que meu pai defendia o seu ponto de vista, sem ataques pessoais, me fez ter muito orgulho dele, considerando que vivemos num país em que é comum o insulto, a difamação contra os que não comungam do mesmo ponto de vista”, atesta outra filha, Sonia Rodrigues, no livro Nelson por ele mesmo (Editora Nova Fronteira, 2012).
Já Maria Lucia lembra que o Recife foi o centro de grandes e pequenas insurreições. Teve a primeira escola destinada a escravos quando isso era proibido. O que seria o Brasil começou a ser discutido em Recife e em Olinda: “Pernambuco é o Leão do Norte, tem um orgulho de ter sido um centro cosmopolita muito aguerrido. Não podemos nos esquecer que, apesar de ter se mudado muito pequeno para o Rio de Janeiro, a família do meu pai era muito pernambucana. Com certeza, ele captou todos os valores e inclusive o sotaque. Nelson era completamente pernambucano”.