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A experiência do invisível

O presente, com Kellia Phayza e Paula Carolina. Foto: Rodrigo Moreira

Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração.
(Mateus 6:19-21)

Homens e mulheres invisíveis. Estão bem perto de nós, mas é muito difícil que consigamos enxergá-los. A vida é mesmo tão corrida. Não posso perder o ônibus, a aula, o horário do trabalho, a sessão do cinema. Será que a vida acontece tão depressa assim para todos? Os atores da companhia Fiandeiros dizem que, para os moradores de rua, é como se o tempo simplesmente não passasse. Uma eterna espera por algo que não se materializa. Não bastava que esses atores pesquisassem, discutissem. Precisavam ver de perto, sentir na pele – mesmo sabendo que voltariam para as suas casas depois – o que era ser um morador de rua. Essa vivência se transformou no espetáculo Noturnos, apresentado na V Mostra Capiba de Teatro.

A experiência da invisibilidade – como contam, pessoas conhecidas cruzaram com eles nas ruas, mas nem notaram – é comum aos três quadros dramatúrgicos independentes que compõem a montagem. No primeiro, O presente, a relação entre duas mulheres (Kellia Phayza e Paula Carolina); em A cura, a loucura de um homem (Jefferson Larbos); e, por fim, dois artistas frustrados (Manuel Carlos e Daniela Travassos) em Salobre.

Escrevi sobre esse espetáculo, que à época ainda era só a conclusão do projeto de pesquisa Paralelas do tempo – A teatralidade do “não ser”, em maio, quando ele foi apresentado no próprio espaço da Fiandeiros, na Boa Vista, durante o Palco Giratório. Já ali, me provocava. Por expor algo que normalmente não queremos ver. Por trazer ao palco o dedo na ferida. Mas não a partir de uma visão elitista. Claro que sempre será um olhar externo; mas pelo menos há a tentativa de se desatar da relação opressor – oprimido.

Jefferson Larbos em A cura

Um dia depois do espetáculo no Capiba, ouvi um questionamento: “será que a montagem, no caso de ser apresentada para moradores de rua, iria reverberar? Eles iriam se identificar com aquele discurso?”. Seria uma experiência bastante interessante. E eu me arrisco a dizer que não é preciso que os atores falem como os moradores de rua ou que o texto, em toda a sua poesia, seja captado por completo. Acho que algumas teias de aproximação se formariam sim.

O tema não é fácil. Pelo contrário, traz o desafio, que esses atores souberam superar. Manuel Carlos, também responsável pela cenografia, maquiagem (estava um pouco exagerada…todo mundo ficou igual, branco!) e figurino, dá todas as nuances de um palhaço que não tem mais graça, mas teima, como num ritual, em se despedir do ofício. Segurar um monólogo sobre a loucura também não é nada fácil, mas percebo que Jefferson Larbos cresceu desde a última vez que o vi, está caminhando com muito mais naturalidade pelo seu personagem. Ah…não podia também esquecer a luz, pesquisada por Suzana Vital, e a sonoplastia, que ficou sob responsabilidade de André Filho.

Estamos vivos ou mortos? Sentir fome é bom, é sinal de que ainda se está vivo. Embora castigo de morte seja não saber para quê se vive. Qual o endereço da rua onde existe amanhã? Todo mundo tem um pedaço invisível dentro de si. (colagem de trechos da peça)
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Fui ao teatro Capiba na última quinta-feira de carro, com uma amiga. Passávamos numa rua esquisita, não sei nem que bairro era aquele, quando vi algumas poucas pessoas na calçada e um homem tendo um ataque que parecia ser de epilepsia. Paramos o carro. O homem parecia voltar, aos pouquinhos. Recusou remédio. Disse que morava muito longe dali. Que tinha ido fazer uma visita. Alguém disse para termos cuidado naquela área. De repente um motoqueiro para: “isso é mentira. Já vi esse homem fazer isso três vezes só para ganhar algum dinheiro. Vão embora”. Saímos todos, rapidamente. O homem ficou na calçada, sentado. Não sei se era mentira, se era verdade. Senti um vazio, uma tristeza.

Daniela Travassos e Manuel Carlos

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Quando alguém deixa de existir

Daniela Travassos como a artista de uma música só. Fotos: Pollyanna Diniz

Falando em Palco Giratório, fiquei me perguntando quando teremos a oportunidade de ver novamente o trabalho Paralelas do tempo – A teatralidade “do não ser”, fruto de uma pesquisa do grupo Fiandeiros, aprovada pelo Funcultura, sobre moradores de rua. Na realidade, não era necessariamente para virar uma montagem, mas a companhia tem nas mãos três textos e um belo “experimento” cênico sob a direção de André Filho.

Atores passaram pela experiência de ir para as ruas

Não sei vocês, mas eu tenho (ops, tinha!) um pouco de preconceito quando ouvia que uma peça abordava o tema ‘moradores de rua’. Vai ver foi trauma de um espetáculo que vi na época do colégio e saí horrorizada: eram os moradores de rua na visão de uma classe média elitista, que nem sabia do que estava falando.

A Fiandeiros sabia que corria esse risco e, por isso mesmo, foi preciso sofrer na pele. Foram para as ruas eles mesmos como mendigos, sentiram medo, viram o problema de perto, conheceram histórias, foram ignorados até por “conhecidos”.

Essa experiência resultou em três textos e, consequentemente, quadros dramatúrgicos apresentados na sede do grupo, na Boa Vista, no dia 21 de maio. Depois da encenação, ainda teve um debate bem interessante, quando os atores tiveram a oportunidade de contar como foi o processo do trabalho.

No primeiro quadro, intitulado Salobre, Manuel Carlos e Daniela Travassos interpretaram um ex-palhaço e uma garota que só sabia tocar uma música na sanfona. Ele foi queimado na rua; ela o salvou. Ele perdeu os filhos; ela era a única companhia. Tudo o que tinham estava em malas e sacos. Na memória. Mas “qual o mapa de saída deste lugar?”, quando estamos falando de “gente que se perdeu no tempo de voltar”. Mas é impossível não aplaudir o palhaço e ele nos traz a esperança, mesmo que incerta, de um amanhã.

Manuel Carlos e seu ex-palhaço

No segundo, O presente, acompanhamos duas mulheres vítimas de uma enchente, que se encontraram há dez anos. Uma delas é cega (Kellia Phayza) e espera pela filha que nunca chega. A outra (Paula Carolina) se tornou a única companhia, a guia, o ombro, a cúmplice. Nos sacos carregados de um lado para o outro, “só o que o tempo botou e isso é muita coisa, porque é o mundo todo”. Elas não sabem para onde ir e sentem falta do tempo em que conseguiam sonhar. Mas é mesmo preciso ser moradora de rua para se sentir assim?

Kellia Phayza e Paula Carolina no segundo quadro do experimento

O último quadro, A cura, encenado por Jefferson Larbos, foi o que mais me causou estranhamento e certa “repulsa”. Tratou de uma realidade muito comuns às ruas: a loucura e as drogas. Talvez seja o mais distante porque é o que menos fazemos questão de ver, o mais visceral, aquele homem numa situação tão deplorável conversando com um manequim em momentos de violência ou solidão.

Jefferson Larbos em A cura

O grupo conseguiu atuações bastante tocantes e foi além do tema proposto. Não trouxe ao palco só histórias de moradores de rua, mas tratou de solidão, abandono, traumas sexuais, medo, violência, tempo. Um espetáculo que merecia ser visto nos teatros – ou mesmo no próprio espaço da Fiandeiros. Porque faz com que mude algo, com que pelo menos o assunto seja discutido e, quem sabe, possamos enxergar quem deixou de existir, mesmo estando ali, na nossa frente.

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