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Ser Tão Teatro combina Tchekhov com bolo na cara
Crítica a partir da peça Alegria de Náufragos

Os atores de Alegria de Náufragos: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima. Foto: Rafael Passos/ Divulgação

Digamos que você, espectador, chegue ao cais para embarcar no espetáculo Alegria de Náufragos, sem ter muita informação sobre a peça. No primeiro momento, você pode ficar um pouco perdido. Afinal, há uma profusão de citações e referências. Eu também fiquei atordoada no começo.

Alegria de Náufragos é uma montagem intrigante. De cara, vemos os atores vestidos de pijamas, às voltas com as aflições e delírios do professor Nicolai Stiepánovitch, que ostentou por décadas os símbolos de prestígio, de sucesso, enfim de felicidade, agora vivendo um pesadelo contínuo. O protagonista contracena com outras figuras e com os seus fantasmas. 

Adaptado livremente do conto Uma história enfadonha – das memórias de um homem idoso, de Anton Tchekhov (1860-1904), a encenação, produzida pelo grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, é resultado de um processo colaborativo do grupo com outros artistas nordestinos. Com dramaturgia assinada por César Ferrario, Giordano Castro e o coletivo, e direção compartilhada entre Ferrario e Castro, a peça busca estabelecer conexões entre a obra de Tchekhov e situações contemporâneas.

A montagem combina um tratamento poético de Ferrario, conhecido por seu trabalho com os Clowns de Shakespeare, e a perspectiva de Castro, do grupo Magiluth, que enfatiza a presença cênica do ator, sua potência de performance. Essa junção de estilos resulta em um espetáculo crítico e cômico, marcado por uma atuação física intensa.

A direção explora a desconstrução das personagens e evidencia a interação entre atores e público, quebrando a quarta parede e criando um ambiente de cumplicidade. O humor ácido satiriza instituições sociais e convenções culturais, expondo sua superficialidade e hipocrisia, ao mesmo tempo em que provoca risos e reflexões, subvertendo o peso de determinados valores.

Com uma estrutura não linear e fragmentada, a peça opta por uma encenação mais experimental. A história do professor Nicolai Stiepánovitch é contada através de uma série de cenas que se entrelaçam, que vão do deboche à reflexão filosófica.

Os atores Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima interpretam várias personagens. Para as mudanças, o elenco faz pequenas alterações nos figurinos, concebidos por Vilmara Georgina, como a adição de um acessório ou a troca de um elemento de vestuário. Essa dinâmica ágil e a constante alternância de papéis, esse embaralhamento de figuras e a vertigem verborrágica podem confundir. Mas não se preocupe. Siga firme.

Ter algum conhecimento prévio sobre a obra de Anton Tchekhov talvez ajude a compreender algumas das referências ou temas abordados. Mas, se não tiver, tudo bem. Estar aberto a formas não convencionais de narrativa e performance é fundamental para se divertir com as nuances da peça, que desafia as expectativas tradicionais do teatro, exigindo disposição e uma mente aberta e curiosa. Faça as associações que lhe pareçam significativas.

Na idade madura, o protagonista questiona o sentido de prestígio, fama, poder.

Nicolai Stiepánovitch é um professor emérito, reconhecido por seu currículo impecável e suas contribuições significativas no campo da Medicina. Aos olhos da sociedade, alcançou o ápice do sucesso profissional e pessoal, enfim, a felicidade. Ele é respeitado, condecorado e visto como um exemplo de vida bem-sucedida. No entanto, aos 62 anos, Nicolai enfrenta uma dolorosa crise existencial. Ele começa a questionar as escolhas que fez ao longo de sua vida, percebendo a superficialidade e a pateticidade das instituições que antes valorizava. Gradualmente, suas conquistas e honrarias perdem o sentido para ele, que se vê como um náufrago em sua própria existência.

Para enriquecer a discussão sobre Nicolai Stiepánovitch, podemos trazer as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e a vida líquida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as instituições são instáveis e em constante mudança. Essa fluidez gera incertezas e inseguranças, afetando a identidade e a busca por significado dos indivíduos.

Stiepánovitch é um exemplo de um indivíduo que, apesar de suas conquistas, se sente perdido em um mundo líquido. Sua crise existencial reflete a dificuldade de encontrar estabilidade e propósito em uma sociedade onde tudo é efêmero e mutável. As reflexões de Nicolai sobre a futilidade das instituições e o vazio interior ecoam as ideias de Bauman sobre a fragilidade das relações humanas e a busca incessante por validação.

A representação do envelhecimento em Alegria de Náufragos merece uma reflexão crítica sob a ótica contemporânea. Retratar Nicolai, aos 62 anos, como um homem no ocaso de sua carreira e de sua vida, restrito por limitações físicas e mentais, pode reforçar estereótipos e preconceitos relacionados à idade. Essa abordagem não condiz com a realidade de muitas pessoas na faixa dos 60 anos no século 21, que, graças aos avanços da medicina, da qualidade de vida e da consciência sobre a saúde, mantêm uma vitalidade e uma energia notáveis.

Exemplos de artistas como Madonna e Sting, que aos 64 e 71 anos, respectivamente, seguem criando, se apresentando e cativando o público com sua arte e presença cênica vibrante, acentuam que a idade não é um fator determinante para a vitalidade e a paixão pela vida.

No que diz respeito à personagem Cátia, que ocupa um lugar especial na vida do protagonista, ela de fato representa um contraponto significativo ao desalento e ao vazio interior de Nicolai. Sendo uma jovem artista plena de sonhos e paixão pela vida e pela arte, Cátia personifica a esperança e a busca incessante por sentido. Sua luta para viver da arte, mesmo quando enfrenta fracassos e decepções, ressoa com a própria experiência dos atores do Ser Tão Teatro e os desafios de muitos grupos espalhados pelo Brasil.

Montagem paraibana participa do circuito do Palco Giratório nacional. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Os elementos cênicos, retirados de uma caixa central no palco, ganham estatura na encenação. Objetos simples como flâmulas, troféus, cabos de vassoura e medalhas são utilizados para construir a imagem do professor Nicolai e sua trajetória.

É um mérito do grupo trabalhar com temas profundos como a ruína interior, os valores mundanos das instituições e a crise existencial na chave da comicidade e do deboche, agregando o interesse de plateias mais jovens. Afinal, a peça também fala disso: não se leve tão a sério, não leve a vida tão a sério.

Quem é do teatro ama a porção metateatral, com a incorporação de elementos autobiográficos dos atores e reflexões sobre a própria prática e seus perrengues, adicionando uma camada extra de complexidade.

Os atores utilizam gestos exagerados, expressões faciais e movimentos corporais para criar momentos cômicos. A peça expõe as dificuldades enfrentadas pelo povo do teatro, como a corrida por editais, a burocracia envolvida na obtenção de financiamento para projetos e a necessidade de complementar a renda com papéis de figurantes, animações de festas infantis, oferecendo uma visão da precariedade e incerteza da vida de artista.

O uso de ações cômicas como tapa na cara, bolo na cara, talco, água e açúcar na cara se mostrou uma estratégia eficaz para criar momentos de humor físico. Esses recursos intensificam a comicidade e criam um ambiente de caos controlado.

O Ser Tão Teatro, fundado em 2007 por alunos e profissionais das artes cênicas da UFPB, é um grupo de pesquisa teatral de João Pessoa, Paraíba, que tem se destacado no cenário nacional e regional. Com Alegria de Náufragos – que estreou em março de 2016, em João Pessoa, e foi financiado pelo Fundo Municipal de Cultura (FMC) – a trupe está em circulação pelo Brasil, através do projeto Palco Giratório do SESC Nacional. Estão previstas apresentações em Natal (RN) no dia 07/08; São Paulo (SP) nos dias 13/08, com a realização do Pensamento Giratório, e 14/08; Rio de Janeiro (RJ) no dia 15/08, com uma apresentação no Polo Educacional; Florianópolis (SC) no dia 22/08; São Luís (MA) no dia 18/09; e Porto Velho (RO) no dia 26/09.

A peça estreou na época do # fora Temer. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Ficha técnica:
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Dramaturgia: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Cely Farias Rafa Guedes Thardelly Lima Polly Barros (stand in) Paulo Philipe (stand in)
Direção musical e música original: Marco França
Desenho de luz:: Ser Tão Teatro
Produção: Rafa Guedes, José Hilton
Iluminador: Fabiano Diniz
Operador de som: Polly Barros
Figurino: Vilmara Georgina
Cenografia e adereços: Maria Botelho
Direção de palco e contrarregragem: José Hilton e Daniel Torres

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Uma joia que dilata nossos corações para celebrar a vida
Crítica de Circo de los pies

Foto: Ivana Moura

O que podem pés deficientes? Eles podem mostrar que enquanto a vida pulsa, tudo é possível. Eles podem fazer cambalhotas no ar.  E quando eles encontraram a palhaçaria, eles esbanjam humor, compõem poesia. Foi isso que aconteceu ontem, dia 18 de maio, no Teatro Marco Camarotti, no Recife, dentro da programação do Palco Giratório, com o espetáculo Circo de los pies.

Fruto do projeto O que meus pés me contam?, da La Luna Cia de Teatro, o espetáculo busca investigar o universo circense a partir das potencialidades e limitações de corpos plurais, visando tornar esse universo mais inclusivo para pessoas com deficiência. O projeto teve o incentivo do programa Entre Arte e Acesso do Itaú Cultural (2022) e do Prêmio Elisabete Anderle de estímulo à Cultura (2022).

A La Luna Cia. de Teatro, fundada em 2016 e sediada na cidade de Canelinha (SC), é uma companhia que enfrenta com determinação os desafios concretos da produção artística,  enquanto permite que sua criatividade e imaginação voem livres, explorando novos horizontes e possibilidades. Eles se dedicam à difusão e fruição artística por meio de pesquisa, montagem e circulação de espetáculos, encontrando um delicado equilíbrio entre a realidade prática e a liberdade criativa.

O grupo é formado por quatro artistas: Emeli Barossi, Amália Leal, Pedro Torres e Thiago Leite, que pesquisam diferentes linguagens como música, cultura popular, palhaçaria e pedagogia teatral.

Foto: Ivana Moura

Emeli Barossi, a intérprete da palhaça Asmeline, nasceu com Hemimelia Fibular, uma má formação congênita na perna direita. Pequenininha em estatura, mas gigante em talento e carisma, ela cria uma cumplicidade imediata com a plateia, contando brevemente sua história pessoal e, em outras camadas, falando sobre a arte da palhaçaria. Suas pernas, que sempre chamaram a atenção das pessoas, são as protagonistas de uma dramaturgia criada a partir da assimetria e da criatividade do seu corpo.

Em Circo de los pies, Emeli transforma sua patologia em arte, dialogando com a deformidade que existe em todo ser humano, independentemente de ser uma pessoa com deficiência ou não.

O espetáculo se propõe a ser acessível, colocando o corpo com deficiência como protagonista e autor do seu próprio discurso. A interpretação em Libras, realizada por Suzi Daiane, e a audiodescrição, feita por Pedro Torres, são intrínsecas à cena e ao jogo da palhaça, fazendo-se presentes como fios dramatúrgicos. Com uma acessibilidade poética, estética e inclusiva, que vai além de uma tradução e descrição técnica da cena, a obra gera sensações e constrói um jogo cativante com o público, seja ele vidente, não vidente, surdo ou ouvinte.

Emeli se entrega de forma intensa, fazendo uma interpretação de tirar o fôlego. Seus pés, Pezinho e Pezão, são os protagonistas desse show sensacional. É inevitável usar adjetivos para descrever a experiência: um banho de alegria e lirismo, uma enxurrada de ludismo, mas com os pés firmes na realidade. Circo de los pies é um conforto para o coração, mas também traz espetadas nos nervos, lembrando-nos que sempre podemos mais, sem cair nos clichês da superação. A técnica apurada e a entrega total da atriz capturam e amplificam nossa imaginação, levando-nos a uma jornada inesquecível.

É um convite para dilatarmos nossos corações ao infinito, como propôs a poeta Hilda Hilst e nos entregarmos à magia transformadora da arte.

“Circo de los pies” é uma pequena joia que nos contamina de alegria, mas com um fio-terra existencial de que a vida é uma luta constante, abordada com uma leveza perturbadora. Emeli Barossi e a La Luna Cia de Teatro nos presenteiam com uma obra necessária, que ultrapassa limites e nos faz acreditar na essência transformadora da arte.

Ficha Técnica

Atuação e concepção: Emeli Barossi
Trilha Sonora e Sonoplastia: Pedro Torres
Iluminação: Thiago de Castro Leite
Roteiro de Audiodescrição: Fernanda Rosa, Matheus Costa e Emeli Barossi
Figurino: Adriana Barreto
Produção: La Luna Cia de Teatro
LIBRAS: Suzi Daiane
Audiodescrição: Pedro Torres

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Uma jornada encantadora inspirada em Lorca
Crítica de Quatro Luas

Quatro Luas, entre o humor, a magia e leves reflexões existenciais. Foto: Ivana Moura

O espetáculo Quatro Luas, apresentado pelo coletivo O Bando de Olinda (PE) no Teatro Marco Camarotti, em Recife, como parte da programação do Palco Giratório 2024, é uma experiência teatral envolvente que celebra a poesia, a imaginação e a infância em peça inspirada na obra de Federico Garcia Lorca, um dos mais importantes escritores espanhóis do século XX. Conhecido principalmente por suas obras voltadas para o público adulto, como Romancero Gitano e Bodas de Sangue, Lorca também dedicou parte de sua produção literária às crianças, com destaque para Os Encontros de um Caracol Aventureiro, uma coleção de poemas que explora o mundo através dos olhos de um pequeno caracol, e Os Títeres de Porrete, uma peça de teatro que aborda temas como a liberdade e a opressão de forma lúdica e acessível aos pequenos.

Desde o primeiro momento, o público é cativado pela atmosfera mágica criada pela trupe de atores que, representando ciganos, canta, toca e dança nos corredores e hall do teatro. Essa introdução serve como um convite para adentrar o universo onírico proposto pelo espetáculo, preparando os espectadores para a jornada que está por vir.

Ao entrar na sala de espetáculos, somos recebidos por uma cenografia e uma iluminação que transportam a plateia para um mundo de sonhos e descobertas. A história acompanha o protagonista Federico, um pequeno boneco manipulado pelo elenco com destreza e sincronia, em sua busca pela Lua Cheia. A jornada de Federico é repleta de encontros fantásticos com animais falantes, exércitos de formigas e as quatro fases da Lua personificadas.

Vários bichos falantes ocupam a cena, como a Gata Azul. Foto: Ivana Moura

O texto de Claudio Lira, responsável também pela direção, é rico em referências à obra de Lorca, a linguagem poética e as metáforas utilizadas oferecem diferentes camadas de leitura, cativando tanto as crianças quanto os adultos. Os diálogos são bem construídos, com momentos de humor leve e inteligente, como no encontro com as duas Rãs, uma que não enxergava muito bem e outra que não escutava muito bem, criando situações divertidas e reflexões filosóficas sobre a finitude.

O elenco, formado por Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos, demonstra versatilidade ao transitar entre a manipulação de bonecos, as falas, as canções e a interação com a plateia. A cumplicidade entre os atores e o público é evidente, criando uma atmosfera de encantamento compartilhado. Momentos como o conselho da Mariposa para o Menino ir dançar e viver a vida, ou a frescura da Gata Azul, arrancam risadas e reflexões.

A trilha sonora original de Douglas Duan tem canções executadas ao vivo por Arnaldo do Monte (percussão) e Zé Freire (violão), e estão perfeitamente integradas à narrativa, amplificando a carga emotiva das cenas e marcando as nuances da peça. A música se torna um elemento fundamental para a imersão do público no universo poético criado em cena.

A direção de Claudio Lira é sensível e precisa, explorando de forma inteligente os recursos do teatro de bonecos e a linguagem do teatro animado. O ritmo da peça é bem conduzido, com momentos de introspecção e poesia alternados com outros de dinamismo e interação com a plateia. O espetáculo consegue dosar de forma equilibrada os momentos de apelo emocional, as frases de efeito existencial e os achados poéticos, mantendo o público envolvido do início ao fim.

Quatro Luas é um espetáculo que celebra a força da palavra, a magia do teatro de bonecos e o talento de seus criadores. Ao se inspirar no universo lorquiano e, mais especificamente, em suas obras voltadas para a infância, a peça oferece uma experiência teatral encantadora, que convida o público a se reconectar com a criança interior e a redescobrir o poder transformador da imaginação.

FICHA TECNICA:

Dramaturgia e Encenação: Claudio Lira
Elenco: Brunna Martins, Célia Regina, Douglas Duan e Matheus Carlos
Músicos: Zé Freire (Violão) e Arnaldo do Monte (Percussão)
Dramaturgia Sonora, Direção Musical e Preparação Vocal: Douglas Duan
Iluminação: Eron Villar
Direção de Arte: Claudio Lira e Célia Regina
Criação e confecção dos bonecos e adereços: Romualdo Freitas e Célia Regina
Criação e confecção das Luas: Romualdo Freitas, Célia Regina e Adriano Freitas
Confecção da Árvore: Douglas Duan
Registro de Fotos e Vídeos: Colibri Audio Visual/Morgana Narjara
Produção: Claudio Lira e o Grupo
Realização: O Bando Coletivo de teatro.

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A trajetória de uma guerreira do samba
Crítica de Leci Brandão – Na Palma da Mão

Leci Brandão – Na Palma da Mão. Foto: Valmyr Ferreira

O espetáculo Leci Brandão – Na Palma da Mão é um musical biográfico que presta homenagem à vida e à obra de Leci Brandão, uma das mais influentes cantoras e compositoras do samba brasileiro. Nascida no Rio de Janeiro, Leci rompeu barreiras ao se tornar a primeira mulher a integrar a prestigiosa ala de compositores da Mangueira, afirmando-se como uma artista engajada que sempre utilizou sua música como instrumento de denúncia e resistência, abordando temas como desigualdades sociais, racismo, violências de gênero e conservadorismo.

A montagem revisita a trajetória de Leci desde suas origens humildes na periferia carioca até sua consagração como uma das vozes mais potentes e respeitadas da música popular brasileira, destacando a relação profunda e transformadora com sua mãe, Dona Lecy, figura fundamental em sua formação como mulher, artista e cidadã.

A importância cultural e política de Leci Brandão – Na Palma da Mão se manifesta em diversas camadas. Inicialmente, o musical se insere em um movimento crescente de produções que valorizam a presença de narrativas e profissionais negros nos palcos brasileiros, contribuindo para a diversificação e a democratização do teatro musical no país. Além disso, ao abordar a história de Leci, o espetáculo ilumina o pioneirismo de uma mulher negra que rompeu barreiras e ocupou espaços de poder em uma sociedade marcada pelo racismo e pelo machismo, tornando-se um símbolo de resistência e empoderamento.

A peça cita en passant a coragem de Leci em afirmar publicamente sua identidade lésbica ainda nos anos 1970, período de intensa repressão e conservadorismo. Embora o recorte dramatúrgico e de direção se concentre na relação de Leci com sua mãe, Dona Lecy, explorando os laços afetivos, os aprendizados e as trocas entre essas duas mulheres e suas lutas no mundo, seria fundamental abrir espaço para abordar esse aspecto essencial da trajetória de Leci Brandão.

Em um momento de avanços por visibilidade e direitos LGBTQIA+, mas também de recuos com a marcha do fascismo, seria crucial que a peça incorporasse mesmo que de forma sutil, a decisão corajosa de Leci de se afirmar como lésbica em pleno regime militar. Essa escolha não apenas presta um tributo mais completo à artista, como também posiciona a obra diante dos desafios atuais. Além disso, o comportamento destemido de Leci Brandão ecoou ao longo das décadas, inspirando gerações de artistas e ativistas LGBTQIA+ a lutar por seus direitos e a expressar suas identidades sem medo, deixando um legado de coragem e determinação que poderia ser celebrado e transmitido na montagem. Até porque o espetáculo ressalta o compromisso inabalável da artista em utilizar sua arte como instrumento de transformação social.

O texto do espetáculo, assinado por Leonardo Bruno, revela uma estrutura dramatúrgica que transita entre passagens narradas e diálogos vívidos entre os personagens. A narrativa segue uma temporalidade predominantemente cronológica. Essa estrutura é enriquecida pelas canções, que pontuam momentos-chave da trama. Essa construção dramatúrgica entrelaça os elementos escolhidos para compor a trajetória de Leci Brandão no palco: a música como expressão de resistência e celebração da vida; a religiosidade como fonte de sabedoria e conexão com o sagrado; e o engajamento político como compromisso ético com a transformação da realidade.

As intervenções bem-humoradas dos instrumentistas funcionam como respiros e comentários, buscando uma cumplicidade com a plateia. 

Sob a direção de Luiz Antonio Pilar, premiado com o Shell de melhor diretor, a encenação valoriza, com delicadeza e humanidade, a relação entre Leci e sua mãe, Dona Lecy, revelando a cumplicidade, o afeto e a força dos laços que unem essas duas mulheres. Pilar privilegia a música como elemento central da narrativa, entendendo o samba como instrumento de resistência, afirmação identitária e comunicação com o público. As composições de Leci são trazidas à cena como convites irresistíveis para que a plateia se integre ao espetáculo, criando uma atmosfera de alegria, celebração e partilha que evoca a energia contagiante das rodas de samba. 

Há uma sequência exaustiva de músicas,  composições que se tornaram clássicos da música popular brasileira. Sucessos como A Filha da Dona Lecy, canção autobiográfica que homenageia a mãe da artista, e Papai Vadiou, samba que retrata com sensibilidade e humor as dificuldades enfrentadas por uma família chefiada por uma mulher negra. Além de Gente Negra, um hino de afirmação da identidade e da resistência afro-brasileira, e Preferência, samba-canção que exalta a liberdade de amar sem rótulos ou preconceitos. E a antológica Zé do Caroço, uma das canções mais emblemáticas de sua carreira, que denuncia a violência policial contra as populações periféricas.

Além das composições de Leci, o espetáculo também rende homenagens a outros gigantes da música brasileira que cruzaram o caminho da artista. É o caso de Cartola, representado por Corra e Olhe o Céu, e da própria Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que acolheu Leci como a primeira mulher em sua ala de compositores e que é lembrada pelo samba-enredo História pra Ninar Gente Grande. Mas a trilha não é suficiente para criar nuances na dramaturgia. 

Embora o espetáculo apresente inúmeras qualidades, é importante reconhecer alguns aspectos para ser pensados. Durante a apresentação realizada no Teatro do Parque, no Recife, como parte da abertura do Festival Palco Giratório, o público demonstrou entusiasmo e apreço pela montagem, aplaudindo calorosamente ao final. No entanto, a estrutura narrativa predominantemente cronológica revelou, em boa parte, uma certa monotonia, carecendo de reviravoltas ou de uma maior inventividade formal.

A opção por uma linearidade quase didática, se por um lado facilita a compreensão da trajetória de Leci Brandão, por outro acaba limitando as possibilidades de experimentação estética. Apenas citar ou não entrar nos conflitos de passagens importantes enfraquece o potencial explosivo dessa trajetória. Como exemplo, a entrada e a permanência da artista no time de compositores da Mangueira e os bastidores mais conflituosos são evitados ou apenas citados, quando poderiam ser os giros de acionamentos de potência dentro do espetáculo.

Outro ponto que merece atenção é a questão da inteligibilidade das falas em determinados momentos do espetáculo. Apesar dos atores demonstrarem grande talento vocal e interpretarem as canções com maestria, em diversas passagens dialogadas suas palavras se tornavam incompreensíveis, seja por problemas acústicos do teatro, falhas nos equipamentos de som ou mesmo pela projeção vocal insuficiente dos intérpretes.

Essa perda parcial das falas compromete a fruição plena da narrativa e dificulta o envolvimento emocional do público com a história. 

Verônica Bonfim, Sérgio Kauffmann e Tay O’Hanna. Foto: Valmyr Ferreira

O elenco, composto por Tay O’Hanna, Verônica Bonfim e Sérgio Kauffmann dão conta de todos os personagens. Tay interpreta Leci com muita personalidade, captura a força, a garra e a paixão dessa artista em cada gesto, olhar e inflexão vocal. Sua performance revela as lutas, as alegrias e as dores que moldaram esse percurso. Verônica Bonfim, por sua vez, confere à figura de Dona Lecy uma combinação tocante de doçura e determinação. Sua atuação está carregada da sabedoria e o amor dessa mãe que foi o alicerce e a inspiração constante na vida de Leci.

Sérgio Kauffmann demonstra versatilidade ao encarnar diversos personagens masculinos que cruzaram o caminho de Leci, desde o líder comunitário Zé do Caroço, compositor Cartola, o pai da cantora ou na pele de Exu.

O foco central do espetáculo é celebrar a vida e o legado de Leci Brandão, convidando os espectadores a mergulhar em seu universo pessoal e artístico de forma sensível e empática. Ao adotar essa abordagem, o musical se alinha ao conceito de “ética do cuidado”, proposto pela pesquisadora e ativista Patricia Hill Collins. Essa perspectiva valoriza a empatia, a responsabilidade e a conexão como princípios norteadores na produção e partilha de saberes e narrativas, especialmente quando se trata de histórias de mulheres negras.

Ao contar a trajetória de Leci Brandão, o espetáculo busca estabelecer uma relação de proximidade e afeto com o público, convidando-o a se reconhecer e se emocionar com as lutas, as alegrias e as conquistas dessa artista. Essa abordagem empática permite que a plateia se conecte com a humanidade de Leci, entendendo suas escolhas, seus desafios e seus triunfos a partir de uma perspectiva de cuidado e solidariedade.

Já a representação da religiosidade de matriz africana no espetáculo é um ponto que demanda reflexão. Incluir elementos da religiosidade afro-brasileira no musical é uma escolha corajosa e necessária, contribuindo para a valorização e visibilidade das tradições.

No entanto, mesmo que os envolvidos na montagem tenham um conhecimento profundo das questões religiosas, nem sempre esse entendimento é traduzido de forma plena no palco. 

Apesar das ressalvas apontadas, Leci Brandão – Na Palma da Mão permanece como um espetáculo de grande relevância e necessidade, celebrando a trajetória de uma artista fundamental para a cultura brasileira. Ao colocar no centro dos holofotes a história de uma mulher negra que enfrentou e desafiou os preconceitos e as opressões de seu tempo, o musical contribui significativamente para a construção de uma narrativa mais plural.

 

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Protagonismo da reflexão no Palco Giratório

Dinho Lima Flor em Ledores do Breu. Foto: Alécio Cézar/ Divulgação

Dinho Lima Flor em Ledores do Breu. Foto: Alécio Cézar/ Divulgação

O educador Paulo Freire (1921-1997) conecta as dramaturgias de PA(IDEIA) – pedagogia da libertação, do coletivo Grão Comum/ Gota Serena do Recife, e Ledores no Breu, da Cia do Tijolo, de São Paulo. Ambos os espetáculos integram a programação do projeto nacional Palco Giratório, que ocorre desta segunda-feira (24) até sexta (28) no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, no Recife. Além das peças, também estão agendados o Pensamento Giratório (troca de ideias sobre as duas montagens com os grupos), e um Seminário com pautas que versam sobre questões de gênero, sexualidade, dramaturgias, construção de narrativas, arte e ancestralidade.

O Palco Giratório Pernambuco, festival que acontecia geralmente no mês de maio, acabou em 2015 e não se fala mais nisso. Boca de siri. Um grande prejuízo para a recepção e produção artística do estado. Desde então, no Recife, esta é a maior ação do Palco nacional. A iniciativa do Sesc nacional é apontada como o maior projeto de circulação das artes cênicas no país e celebra 20 anos de atividades. E é realmente um fôlego chegar à cidade uma programação nesse formato, que amplifica a articulação do pensamento e a reflexão.

Daniel Barros e Júnior Aguiar atuam em Paideia

Daniel Barros e Júnior Aguiar atuam em Pa(ideia). Foto: Divulgação

Paulo Freire foi aquele filósofo e pedagogo que colocava em prática ideias como “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre” ou “Não há saber mais ou saber menos: Há saberes diferentes”. Que falta faz esse homem neste mundo de tanto obscurantismo.

PA(IDEIA) – pedagogia da libertação, a segunda da Trilogia Vermelha, investe cenicamente na prisão de Paulo Freire em 1964, além de falar do Brasil de hoje. A peça ganha ainda mais força com o desmonte de um sistema de educação que ocorre no país. Os atores Daniel Barros e Júnior Aguiar ressaltam essas contradições para provocar um diálogo reflexivo com a plateia.

Com atuação de Dinho Lima Flor e direção de Rodrigo Mercadante, Ledores no Breu costura histórias de leitores que se debatem na lama da compreensão e analfabetos ainda no século XXI. O pensamento e a prática do educador Paulo Freire e as obras do poeta Zé da Luz e do ficcionista Guimarães Rosa são matéria-prima do espetáculo. Ledores no Breu narra episódios como a do homem que matou o seu amor porque não sabia ler uma carta ou de outro que reelabora seu afeto a partir das letras do seu nome.

Em 20 anos do Palco Giratório é a primeira vez que um seminário desse porte entra no projeto. Arte e Ancestralidade – Povos Indígenas é a mesa de abertura. Outras discussões estão focadas em Negros e Quilombolas; Questões de Gênero e Sexualidade -Trans-Posições Artísticas: Diversidade Sexual e Representatividade Política com a mediação de Robéyonce, primeira advogada Trans de Pernambuco; Dramaturgias e a Construção de Narrativas; Gestão Cultural e Curadoria na Experiência do Sesc: Desafios e Oportunidades; Mapeando experiências e articulando sentidos: o trabalho de críticos e curadores dos festivais cênicos; e Acessibilidade, Mediação Cultural e Formação de Público.

Serviço:
Seminário 20 anos do Palco Giratório
Quando:De 24 a 28 de julho
Onde: Teatro Marco Camarotti

Ledores do Breu reflete sobre as repercussões do analfabetismo

Ledores do Breu reflete sobre as repercussões do analfabetismo. Foto: Divulgação

PROGRAMAÇÃO

Espetáculos:
Dia 25 – Espetáculo Pa(IDEIA) – pedagogia da libertação | 20h | R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)
Dia 26 – Ledores do Breu | 20h | R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)
Dia 27 – Pensamento Giratório | 20h – Acesso gratuito

Seminário:
Inscrição gratuita:www.sescpe.org.br
24/07
14h | mesa –Arte e Ancestralidade – Povos Indígenas
Zeca Ligiéro, Vânia Fialho, Guila Xucuru e Fred Nascimento (mediação)
19h | mesa –Arte e Ancestralidade – Negros e quilombolas
Fernanda Júlia, Samuel Santos, Lara Rodrigues, Maria Bianca (mediação)

25/07
14h |Questões de Gênero e Sexualidade –Trans-Posições Artísticas: Diversidade Sexual e Representatividade Política
Dodi Leal, Marcondes Lima, Robeyoncé (mediação)

26/07
14h |Dramaturgias e a construção de Narrativas:(Des)territorializando espaços e (Re)inventando dramaturgias
Rodrigo Dourado, Mônica Lira, Eliana Monteiro, Anamaria Sobral (mediação)

27/07
14h| mesa 01 – Gestão Cultural e Curadoria na Experiência do Sesc: Desafios e Oportunidades
Maria Carolina Fescina, André Santana, Rita Marize e Raphael Vianna
16h| mesa– Mapeando experiências e articulando sentidos: o trabalho de críticos e curadores dos festivais cênicos
Michelle Rolim, Fábio Pascoal, Nara Menezes e mediação de Pedro Vilela

28/07
14h |Acessibilidade / Mediação Cultural / Formação de Público
Felipe Arruda, Bernardo Klimsa, Emanuella de Jesus e Andreza Nóbrega (mediação).

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