Foto: Ivana Moura
Luiz Carlos Vasconcelos, depois da estreia da peça Retábulo, na sede do Teatro Piollin, disse que o espetáculo não está pronto. Que muitos assombros e surpresas vão surgir do corpo dos atores nos próximos meses da temporada que iniciou nesta quinta-feira em João Pessoa, Paraíba, e segue até março. Se essa montagem já expõe sinais de arrebatamento, imagine quando for inflada de beleza no laboratório de Vasconcelos?! São apostas de que consiga se igualar ou superar em pulsação e vivacidade a encenação emblemática do grupo, Vau da Sarapalha (do texto de Guimarães Rosa), que desde que foi lançada, em 1992, seduziu plateias brasileiras e de outros países.
O texto é uma prosa experimental de Osman Lins, autor também do romance Avalovara e de Lisbela e o Prisioneiro (popularizado por Guel Arraes no cinema e na TV), entre outras preciosidades. Retábulo de Santa Joana Carolina, uma das narrativas do livro Nove, Novena, foi publicado em 1966, sob os aplausos dos críticos, pasmados com a inovação poética do escritor pernambucano. Foi a guinada na carreira de Osman Lins. Na ficção, Osman homenageia sua avó paterna, sacralizando sua trajetória de dignidade, generosidade e bondade.
No palco, o encenador retirou o aspecto de santificação e investiu na dureza do trajeto humano, de uma mulher do povo, assaltada por perdas, invejas e traições. O grupo paraibano, que tem uma atuação voltada para a formulação de novas linguagens cênicas, arrisca mais uma vez. Forma e conteúdo trilham num caminho radical. Para isso, Luiz Carlos Vasconcelos lançou mão de outro procedimento osmaniano, o do romance Avalovara. Em Avalovara, o escritor concebe a narrativa a partir de um palíndromo latino (Sator ArepoTenet Opera Rotas), que quer dizer: “O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos”. Ou ainda: “O Lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”.
Esse artifício geométrico está no palco nas 25 casas (quadrados) desenhados no chão que compõem o tabuleiro e são milimetricamente ocupadas pelos atores no desenvolvimento dos 12 mistérios. Nessa intenção de uma cena aperspectiva, o foco narrativo é multiplicado no seu descentramento, a história é contada de forma descontínua e fragmentada. Nisso reside sua força, numa forma que inquieta e exige uma postura ativa do espectador, que poderá se incomodar e perder uma ou outra coisa dessa fábula, devido a agilidade narrativa, ou cruzamento de episódios. Ou na passagem de personagens, interpretados por mais de um ator. “Osman dialoga com a cena contemporânea, do pós-dramático e tudo isso e nos coloca esse desafio”, comemora um entusiasmado Luiz Carlos Vasconcelos.
Foto: Ivana Moura
Retábulo vai crescer muito na cena. “Posso levar cada mistério a um delírio que ainda não está posto”, promete o diretor. Ele, mais do qualquer espectador que assistiu ao espetáculo sabe do processo inacabado que vai sendo construído. O corpo e voz do elenco que miram a precisão; o coro que busca uma ligadura para se transformar num só corpo mais harmônico. As imagens, que já guardam uma beleza rara na composição coreográfica, na rápida movimentação, anseiam pela perfeição ou sua proximidade. O cuidado estético; e o ator como cocriador de uma poética anuncia que vai cutucar esse público sedente por experiências mais radicais.
A música executada ao vivo apregoa que vai vestir esse corpo do ator e abismar ainda mais essa plateia em sua sensibilidade. O cenário, com tronco de bambu guarda segredos que serão reveladas aos poucos, a cada nova sessão.
O elenco, formado por Buda Lira, Everaldo Pontes, Ingrid Trigueiro, Luana Lima, Nanego Lira, Servilio de Holanda, Soia Lira e Suzy Lopes, mostra a grandeza do talento do Piollim, e muito mais uma entrega que vai explodir em pequenos movimentos e numa fala para dar um nó na cabeça de quem acha que teatro pode ser muito mais. Vasconcelos parodia Osman Lins e avisa “teatro não é bombom que se suga displicentemente”. Teatro é uma experiência inigualável e inesquecível para mergulhar no presente. Retábulo mostra isso muito bem. Parabéns Piollim, Luiz Carlos Vasconcelos, seu elenco e seu grupo por acreditar na arte.
Voltaremos a falar de Retábulo. Ainda há muito que dizer.