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Vingança como coroa dos perdedores

Hécuba terá três sessões no Teatro de Santa Isabel. Fotos: João Caldas/Divulgação

Uma personagem que ultrapassa os limites da dor humana. “Estamos falando de uma rainha que é destronada, que perde o lugar em que estava. E não é só a concretude, o reino de Tróia, mas o seu lugar, com o seu corpo e o seu psiquismo”, explica Walderez de Barros, protagonista de Hécuba, texto de Eurípedes, com adaptação e direção de Gabriel Villela, que será encenado a partir de hoje no Teatro de Santa Isabel. “Ela passa a ser uma pessoa sem identidade social. Perde qualquer referência. E ainda vê os filhos serem assassinados. Ela não tem mais nada. Quando chega a esse ponto, vai se vingar”, complementa.

As racionalizações com relação ao texto continuam: a peça traz uma discussão importante sobre os limites entre a justiça e a vingança pessoal, em tantas situações tênues. “Quantas vezes a gente não quer esganar alguém? Mas como seres sociais, não podemos. Hécuba vai por outro caminho e se transforma em animal. Se você não tem relações sociais, a comunicação interpessoal, se o outro não é importante, você passa a ser um animal, não precisa matar alguém”.

Além de Walderez, que estava distante dos palcos desde a peça Fausto zero (na televisão o seu último papel foi na novela Morde e assopra, como mãe de Marcos Pasquim e fazendo par romântico com Paulo José), o elenco tem ainda Eduardo Sotelli, Fernando Neves, Leonardo Diniz, Luísa Renaux, Luiz Araújo, Marcello Boffar, Nábia Vilela e Rogério Romera.

Depois de dirigir Ricardo III, com o grupo Clowns de Shakespeare, a Hécuba de Gabriel Villela não é, de modo algum, em preto e branco. Os figurinos são dele mesmo. Outro detalhe da montagem é que o coro canta ao vivo. Os arranjos vocais foram compostos pelo mineiro Ernani Maletta, baseados em trilha do sérvio Goran Bregovic.

O diretor Gabriel Villela e a atriz Walderez de Barros

Aos 71 anos, Walderez já tinha feito outras duas tragédias: era Clitemnestra, em Electra, na montagem dirigida por Jorge Takla em 1987; dez anos depois, foi Medeia, numa peça do mesmo diretor. Com Villela, Walderez já fez outras duas montagens: A ponte e a água da piscina e Fausto zero. “Queria muito fazer Hécuba e o Gabriel nunca tinha feito uma tragédia grega”.

A montagem fez temporadas em São Paulo, já passou por Belo Horizonte e vai ainda para São José dos Campos, Santos, Curitiba (dentro do festival de Curitiba), Santo André, São José do Rio Preto, Ribeirão Preto e Porto Alegre.

Hécuba
Quando: Hoje e amanhã, às 21h; e domingo, às 20h
Quanto: Plateia e frisas – R$ 60 e R$ 30 (meia) / Camarotes – R$ 50 e R$ 25 (meia). Informações: (81) 3355-3323

ENTREVISTA // Walderez de Barros

Walderez de Barros trabalha pela terceira vez com Gabriel Villela

Quando você foi tema de livro na Coleção Aplauso, disse que pensava em fazer Hécuba. O que essa montagem tem de especial?

O Gabriel (Villela) foi muito feliz. Ele tem uma marca peculiar que mostra mais uma vez em Hécuba: as referências à cultura popular. As máscaras foram feitas pela mesma pessoa que fez os adereços de Ricardo III: Shicó do Mamulengo. Acho que as pessoas se esquecem que o teatro, os festivais, eram festas populares. Não tem no Youtube para a gente saber como era. Não tinha celular. Então virou moda fazer tragédia em preto e branco. Tragédia tem que ser cinza. Mas porquê? Se é uma festa popular, em qualquer lugar do mundo, as festas são coloridas. O coro é muito colorido. Eu visto preto, mas as troianas estão muito coloridas e com máscaras. Queria, aliás, falar bem do coro. Eles fazem um trabalho inacreditável. Em algum momento, todos fazem personagens que contracenam com Hécuba. Mas eles cantam músicas belíssimas, à capela, com máscara e se movimentando em cena! Aplaudo sempre.

Você diz que gosta mais da tragédia e da comédia. Porque
Tanto a comédia quanto a tragédia são mais difíceis. O drama é mais próximo – todos nós somos de uma classe média burguesa. Mas a primeira coisa de qualquer peça é o texto. A direção é indicada pelo texto. Se você pega um texto clássico, com uma boa tradução, tem a indicação de tudo. Isso no bom texto, claro. O tom está ali. Outro ponto é a direção – aquilo que o diretor pretende fazer; e ainda os outros atores com quem você contracena. Teatro é uma arte coletiva. É impossível querer fazer sozinho. E teatro só se realiza com a plateia.

Depois de passar alguns anos encenando A loba de Ray-Ban, Raul Cortez disse que não aguentava mais sofrer. Como você fica com Hécuba?
Sofro realmente com Hécuba. E, você vai entender, às vezes me dá uma preguiça: vou ter que passar por tudo aquilo de novo! Mas quando termina, fico renovada. Aquele percurso todo de emoção. Mas tudo isso fica no teatro mesmo. É muito sofrimento, emoção, forte, violenta. E quando acaba, estou revigorada. Nos ensaios, é outro processo. Não divido muito bem. Gosto de dizer que ensaio 24 horas por dia, porque você está sempre pensando e buscando. E aí a personagem se aproxima mais da gente. Mas não fico tomada.

Mesmo sendo uma atriz que tem raízes no teatro, você diz que não se frustra na televisão. Como é isso?
Gosto muito de fazer televisão. Acho bom, gosto de representar papéis. Se a personagem é boa, estou feliz porque estou criando de alguma maneira. Teatro é minha terra natal. Tanto que, quando não estou fazendo teatro, não me sinto afastada. É porque não dá mais para fazer um monte de coisa ao mesmo tempo, fico cansada! Mas a terra natal carregamos sempre com a gente. Mas é sim mais horizontal. Eu já sei disso: que tem que fazer na hora, criar na hora. Não me frustro, porque conhece. Se fizesse no teatro como faço na televisão, aí sim seria frustrante. No teatro, a criação é mais intensa.

Uma pergunta que parece simples, mas não é. Qual o poder do teatro hoje?
É aquela velha história: se você tem alguém na plateia que se transformou, que se sentiu incomodado, já valeu. A percentagem é pequena, não estamos atingindo milhões. É produto artesanal, não é indústria.

É mais difícil fazer teatro hoje?
A realidade é hoje. Se eu ficar pensando naquilo que era, é frustrante. A realidade é hoje. As pessoas que fazem teatro têm outra visão. Como observadora do teatro, não sei o rumo que a moçada está seguindo. É uma geração que pensa muito menos no coletivo. Vejo muito o individual e me assusto. Mas, enfim, aperfeiçoar o ser humano é o melhor caminho. Sobre se é difícil? Com algumas exceções de grandes sucessos, de algumas pessoas, é sim. E não estou criticando, não há sentido em criticar. O ideal era que todos conseguissem ganhar dinheiro, sobreviver da sua arte. Mas sempre foi difícil e continua sendo. Quem não tem visão de mercado, acaba penando. É muito difícil você conseguir patrocínio e sem patrocínio, você não consegue montar. Temos que contar com os abnegados, que acreditam.

Mas você é pessimista com relação aos avanços na arte?
Há avanços sim. Não especificamente no teatro, mas avanços. Estamos vendo uma maior valorização das culturas locais. A cultura não pode ser padronizada e a televisão é um pouco culpada disso.

Com Fausto Zero você conseguiu vir para o Recife?
Não! Fomos para a Rússia, um festival em Moscou, para o Festival de Curitiba. Faz tempo que não vou a Pernambuco.

Quais as recordações que têm daqui?
Cada vez que penso, só lembro das frutas e do sorvete! E da praia!

A sua primeira peça profissional foi dirigida por Hermilo Borba Filho: Onde canta o sabiá. Quais lembranças têm dele?
Ele era uma pessoa encantadora. Durante essa temporada, me casei com o Plínio (Marcos). Para mim, tudo era novidade. No início eu tinha medo da direção, mas depois de um tempo ficamos amigos. Hermilo foi uma referência de como um diretor pode ser competente e amigável. Levei isso comigo. Ele era muito especial.

Como já falamos, no livro da série Aplauso, você dizia que queria fazer Hécuba. E agora? Quais são os personagens que ainda quer?
Gosto demais do Lorca e nunca fiz. Estava conversando com o Gabriel (Villela). Quem sabe a gente não faz? Seria uma coisa boa, mas não é plano.

Quantos anos você tem?
71 anos. A melhor idade. Não porque eles dizem. Porque eu acho mesmo. Deveria ter nascido aos 71 anos.

É? Como assim?
É tudo tão melhor depois dos 70. Vemos a vida de maneira diferente, mais relaxada.

Mas você disse que não consegue mais fazer muita coisa ao mesmo tempo…não é ruim?
Mas para quê essa loucura? Quando a gente é jovem é que acha que isso é preciso.

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A primeira Helena

Lilian Lemmertz na década de 1960 atuando em A bilha quebrada

No último domingo, fez 25 anos que o teatro, a televisão e o cinema perderam Lilian Lemmertz. Quem nos lembrou da data foi Cleodon Coelho, que escreveu a biografia da atriz: Lilian Lemmertz – Sem rede de proteção, publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Hoje vi algumas imagens da atriz numa reportagem do Vídeo show e senti muito não ter visto Lilian nos palcos. Fui então resgatar a matéria que escrevi quando Cleodon esteve aqui no Recife para lançar o livro, em outubro do ano passado. É a nossa forma de homenagear a atriz.

“Na década de 1950, modelo era manequim. Essa foi a primeira atividade profissional da gaúcha alta, de beleza clássica, que usava tênis americano pelas ruas de Porto Alegre. Nessa época, Lilian Lemmertz era uma das musas de Rui Spohr, costureiro famoso no Rio Grande do Sul, que começou a vida profissional desenhando chapéus. Lilian tinha características fundamentais para uma manequim de chapéus: era magra, feminina, suave e dona de um nariz perfeito, lembra o próprio Spohr. Ao mesmo tempo, fazia inglês com Antônio Abujamra. Foi ele quem a convidou para participar da peça À margem da vida, que seria realizada pelo Teatro Universitário da União Estadual dos Estudantes. Não aceitou. Ela fazia balé, mas nunca tinha pensado em ser atriz. Em casa, comentou a mãe, que achou uma ótima ideia.

Assim, meio por acaso e muito por insistência da mãe, mas entregando-se com fervor a tudo que se propunha fazer, Lilian Lemmertz, tornou-se atriz. A trajetória da gaúcha, encerrada prematuramente aos 48 anos por conta de um enfarte, foi contada no livro Lilian Lemmertz – Sem rede de proteção (R$ 30) escrito pelo pernambucano Cleodon Coelho. O lançamento será hoje, às 18h, na Livraria Cultura, no Bairro do Recife.

“Recebi o convite por e-mail e aceitei imediatamente. Não vi a Lilian no palco, mas lembro da novela Baila comigo, na época em que os folhetins tinham 80% de audiência, e também no cinema”, conta o autor, que é jornalista e roteirista do Faustão. O livro integra a coleção Aplauso, publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Um dos diferenciais, no entanto, é que a narrativa aqui não é escrita em primeira pessoa, como normalmente é feito. “Foi um desafio contar a história de uma pessoa que já não está aqui”, revela Coelho. Para isso, ele contou com a ajuda filha de Lilian, a também atriz Júlia Lemmertz, e dos inúmeros artistas que conviveram com a gaúcha. No lançamento do livro no Rio de Janeiro na última quarta-feira, estiveram na Livraria da Travessa, no Leblon, nomes como Paulo Betti, Tony Ramos, Renata Sorrah, Laura Cardoso, Marieta Severo, Marcos Paulo e o escritor Manoel Carlos.

Em Quem tem medo de Virginia Woolf, Lilian contracenava com Cacilda Becker e Walmor Chagas

Foi de Maneco, aliás, a primeira novela de grande repercussão protagonizada pela atriz. Lilian Lemmertz foi a primeira Helena de Manoel Carlos. Em Baila comigo, no início dos anos 1980, Lilian fez par romântico com Fernando Torres e era mãe de Tony Ramos, que fazia gêmeos. “O drama da novela é porque ela tinha criado os gêmeos separados. Um deles ela tinha dado ao pai, interpretado por Raul Cortez”, explica o autor do livro. Lilian, no entanto, tinha começado a carreira na televisão anos antes, em 1968, na extinta TV Excelsior. E depois de Baila Comigo, o sucesso nacional, foram quatro anos intensos até o seu falecimento. Fez, por exemplo, Final feliz, Partido alto, teve uma participação especial em Roque Santeiro.

Atriz de teatro – Hermilo Borba Filho dirigiu a atriz e o seu marido, o também ator Linneu Dias, na montagem de estreia da gaúcha em São Paulo: Onde canta o sabiá. Lilian e o marido vieram para a capital paulista, com a filhinha ainda bebê, a convite de Cacilda Becker. “Foi uma loucura. Na medida em que a leitura da peça avançava, eu ia descobrindo que, simplesmente, estava com o papel principal, Nair. O pior é que Hermilo parava a leitura de vez em quando e dizia aqui você canta o Jura, aqui você canta o Taí. Mais adiante interrompia de novo: aqui você dança o charleston, aqui é o tango. Mal consegui terminar a leitura. Estava estatelada”, diz o depoimento da atriz registrado no livro.

Além do teatro, Lilian também fez cinema. “Logo no início, Walter Hugo Khouri a chamou para fazer Noite vazia, mas como era para o papel principal, ela não aceitou. Depois disso, aceitou um papel secundário no filme O corpo ardente e fez mais oito filmes do Khouri.

Antes de morrer, Lilian estava ensaiando a peça Ação entre amigos, de Paulo Betti. A filha Júlia tinha tentado falar com a mãe durante o dia todo e não havia conseguido. Encontrou-a na banheira de casa, já morta. Era 5 de junho de 1986 e oBrasil vivia a euforia da Copa do México. “Tanto que a notícia da morte dela não teve a comoção que seria normal”, avalia Coelho. Quando Lilian morreu, a filha já era atriz. Estava encenando O que o mordomo viu, mesmo papel vivido pela mãe em 1971, sob o título de Quanto mais louco melhor. Hoje, a neta de Lilian, Luiza, já é atriz. Veio ao Recife com a trupe de Zé Celso Martinez Côrrea. O talento descoberto ao acaso tornou-se hereditário.”

Lilian e Eva Wilma em Esperando Godot, de 1977

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