Branca Dias é uma personagem fascinante e já foi motivo de peças de teatro, romances, poemas e até de música (Branca Dias, de Edu Lobo, no disco Camaleão, é uma exemplo). Há muita mitificação em torno dela. O dramaturgo Dias Gomes usou uma versão que desloca a figura para a Paraíba – onde teria nascido em 1734 e morrido na fogueira em 1761 – como inspiração para escrever O Santo Inquérito, de 1966. Dias Gomes chegou a dizer que “a verdade histórica é secundária, pois seria mais relevante elucidar a verdade humana que a história comporta”.
Duas faces de um mito, de Bruno Feitler, e Uma Comunidade Judaica na América Portuguesa, de Leonardo Dantas Silva, são os dois estudos mais citados para tratar da questão histórica de Branca Dias. Ambos os autores se valeram de fontes como o registro documental da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil e do livro Gente da Nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco 1542-1654, de José Antônio Gonsalves de Mello.
De acordo com essas pesquisas, Branca Dias teria nascido em Portugal no ano de 1515, tendo sido esposa do mercador Diogo Fernandes, que veio do além-mar, no século XVI, para se fixar em Pernambuco.
O espetáculo Senhora de engenho – Entre a cruz e a Torá, texto de Miriam Halfim, com direção de Emanuel David D’Lucard e montagem da Companhia Popular de Teatro de Camaragibe, resgata a vida dessa portuguesa que teria chegado à capitania de Pernambuco em 1550. Ela foi perseguida pela inquisição na Europa por ser judia e protagonizou mudanças significativas no Nordeste do Brasil colônia.
A vida de Branca é cheia de nuances e repleta de elementos dramáticos. No texto assinado por Miriam Halfim, a protagonista é uma mulher boníssima, justa, de temperamento forte e determinado. Em Senhora de engenho – Entre a cruz o torá os termos devoção, traição, amor, perdão, esperança e fé não são apenas palavras de efeito, mas chaves para compreender essa figura.
Com o incentivo de montagem do Funcultura em 2011, a peça cumpriu duas temporadas no Engenho Camaragibe, o casarão onde a heroína morou. Em agosto, o grupo fez várias apresentações no Chile, dentro da programação do VIII Festival Internacional de Teatro Itinerante por Chiloé Profundo/FITICH Inverno.
Há poucos dias, a encenação integrou o Festival Aldeia Yapoatan, em Jaboatão dos Guararapes. A peça foi apresentada na Associação Comunitária de Muribeca, seguindo proposta do Sesc Piedade de descentralizar as atividades artísticas.
É uma montagem popular do grupo de Camaragibe, com poucos recursos de produção, com um jeito intimista de contar essa história quase épica. O cenário é formado por uma grande mesa, cadeiras, baús, cadeira de balanço, candelabro com velas, lona no chão. A opção do diretor permite que a trajetória de Branca Dias possa ser contada em qualquer galpão, como ocorreu no Chile e em Muribeca.
As do Chile eu não vi, mas Emanuel David D’Lucard falou que o grupo inseriu palavras em espanhol no meio dos diálogos e que isso criou uma cumplicidade com a plateia. No bairro da Muribeca, a apresentação foi numa noite nublada, em que choveu um pouco. O salão central da Associação foi ocupado pelo cenário no centro e cadeiras para o público. Essa proximidade física estabeleceu um clima das histórias contadas ao redor da fogueira.
A atriz Patricia Assunção faz Branca Dias imponente, determinada, altiva, otimista. Ela comanda a cena para mostrar que sua personagem foi uma mulher à frente do seu tempo, a desafiar costumes e não se dobrar diante das dificuldades. É apontada como a primeira mulher portuguesa a manter uma “esnoga” (sinagoga) em suas terras, e a primeira professora de meninas. Além disso, ela ajudou o marido a reerguer a propriedade depois do ataque dos índios e tocou o negócio quando o marido morreu.
O marido Diogo Fernandes veio primeiro para ocupar as terras doadas por Duarte Coelho. Quando Branca Dias chegou encontrou amante e a filha bastarda, Briolanja. O elenco dá conta do recado e o que pode faltar em técnica é compensado pela garra de seus integrantes.
Francis de Souza interpreta Madalena Gonçalves, a amante de Diogo antes da chegada de Branca. A atriz cria uma personagem instigante, meio desafiadora, meio conciliadora, meio invejosa, meio conformada. Mas ainda com um misto de erotismo e cumplicidade.
Branca Dias cedeu para a amante do marido e sua filha a casa em Olinda e manda buscá-las depois do incêndio do engenho. Essa generosidade de Branca potencializa a inveja de Briolanja Fernandes, interpretada por Dul Santos. A atriz faz uma bastarda dura, mas sem muitas nuances, que está sempre no extremo do grito ou do ato, que chega a incomodar.
Geraldo Cosmo compôs Diogo Fernandes elegante no porte, sedutor e muito influenciado pela mulher. Uma das cenas marcantes é no momento da morte, quando tentam fazê-lo aceitar Jesus.
Pedro Dias encarna Bento Teixeira, autor do primeiro poema brasileiro, que frequentou o engenho e era um grande admirador de Branca. Com um ar sempre derrotado, ele é enganado pela sua mulher que, ao contrário de Branca (que alavanca o Marido Diogo), seca-lhe as forças.
Yah Vasconcelos faz uma das filhas de Branca, Brites Fernandes, que tem deficiência cognitiva. É uma figura vivaz, que desperta a solidariedade. Ainda estão no elenco Euclides Farias, Izabelly Natally, Guto Kelevra, Gessica Nascimento como judeus de Sambenito, índios, judeus e convidados do casamento.
A iluminação e o figurino, com suas peças rudes, nos remetem a um lugar meio isolado, sem conforto, numa terra que precisava ser dominada, como deve ter sido o ambiente que Branca Dias enfrentou na sua vida no Brasil. É a encenação de uma biografia romanceada que dá muita dignidade à protagonista.
*Este texto é resultado de uma parceria com o Sesc Piedade, realizador do Aldeia Yapoatan