Arquivo da tag: Nicolas Bouchaud

A tramoia de Iago
Crítica do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza,
visto no Théâtre Odéon, em Paris

Iago (Nicolas Bouchaud) conspira contra Othello (Adama Diop) e Desdêmona (Emilie Lehuraux). Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Montagem de Jean-François Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez

Desde o início do espetáculo Othello, o Mouro de Veneza – tragédia escrita pelo dramaturgo William Shakespeare provavelmente em 1603 – ficamos sabendo que o soldado Iago alimenta um ódio mortal por Othello, pois inveja seus feitos heroicos e porque seu comandante promoveu Cássio para o posto de tenente; nas palavras de Iago, “um teórico”, que nunca liderou um batalhão numa guerra.

Iago faz de tudo para destruir seu dirigente. Junto com Roderigo envenena o senador Brabantio, pai de Desdêmona, ao informar que ela fugiu com Othello. Conspira contra Othello e Cássio e utiliza muitos truques, artimanhas, conversas cruzadas, insinuações e um lenço perdido para persuadir Othello de que Desdêmona e Cassio são amantes.

É uma teia intrigante. Como Iago consegue empurrar Othello – o grande estrategista – para o abismo do ciúme. Sutis manipulações indicam caminhos, pois Iago é especialmente hábil em detectar e explorar as fraquezas humanas.

A versão do encenador Jean-François Sivadier para Othello – que passou pelo Théâtre Odéon, em Paris, antes de prosseguir em turnê europeia – explora as questões nevrálgicas da peça, mas com algumas lentes do século 21 e muitas das contradições acumuladas. Entre elas o feminicídio que já foi chamado de “crime passional”, e o racismo que exala dessa (daquela, da nossa) sociedade. Veneza enaltece os feitos do protagonista, mas o despreza – escancaradamente ou veladamente – como pleno cidadão.

É a primeira peça que assisto desse realizador. Então, para situar, Sivadier é um ator, dramaturgo e diretor de teatro e ópera, de 58 anos, que tem no currículo releituras de alguns clássicos. Em 2007 encenou Rei Lear no Festival de Avignon. Em 2022, recebeu o Grande Prêmio do Teatro da Académie Française pelo conjunto da sua obra.

A tradução francesa de Jean-Michel Déprats acentua as ambiguidades e os contrastes muito valorizados na encenação, que imprime um ritmo alucinante, que oscila da tragédia ao pop, com improvisações cômicas, escolhas sonoras setentista, que inclui Dalida, Freddie Mercury, John Lennon.

Cassio (Stephan Butel ), Othello e Iago. Foto: Jean Louis Fernandez

Sivadier escala um ator negro para o papel de Othello, como deve ser. Mas nem sempre foi assim. No passado não tão remoto, em muitas montagens, Othello era interpretado por um ator branco, algumas vezes com o rosto pintado de preto, na tradição racista do blackface. No artigo Othello joué par un Blanc : le théâtre français est-il raciste ? , de 16 octobre de 2015, a articulista Françoise Alexander questiona no jornal Le Monde a escolha do Philippe Torreton, um ator branco, para o papel principal de Othello na encenação de Luc Bondy.

A discussão rendeu outros artigos, como o da  atriz, cantora e dramaturga Yasmine Modestine, Pourquoi la distribution d’Othello par Luc Bondy est entièrement blanche?  . Mas a encenação não estreou, pois o renomado diretor, que já estava doente à época, morreu em novembro daquele ano.

Desdêmona (Emilie Lehuraux) e Othello (Adama Diop) . Foto: Jean Louis Fernandez

Quando entramos no teatro, Othello, interpretado pelo franco-senegalês Adama Diop, troca algumas palavras em Wolof com Desdêmona (Émilie Lehuraux). Ficamos sabendo, por exemplo que amor se diz mbëggeel. Nesse pequeno jogo amoroso do prólogo, Othello pede a mão de Desdêmona na língua falada no Senegal.

Na primeira parte da peça, Adama Diop, com dreadlocks, compõe um Othello solar, orgulhoso, leal, apaixonado, confiante, que aposta nos valores elevados, consciente do seu gênio militar. Mas esse homem que se fez a si mesmo não esquece das suas origens, de que foi arrancado de sua terra para ser escravizado. Seu talento guerreiro o libertou e engrandeceu. Mas enquanto estrangeiro da Veneza, ele reconhece o racismo dessa gente.

Em seu Ensaio sobre o trágico, Peter Szondi reflete sobre a condição de Othello: “Como veneziano, ele deve chefiar a frota; como mouro, não tem permissão para pedir em casamento nenhuma veneziana”.

Se o texto de Shakespeare vibra em alto grau na denúncia contra o racismo. Jean-François Sivadier reforça essa perspectiva e dedicou o papel do Doge de Veneza (principal magistrado, que preside o senado) a uma atriz negra.

Othello ambicionava vencer o preconceito, mas encontrou Iago no meio do caminho para tirá-lo do eixo. Em Shakespeare: a invenção do humano, Harold Bloom analisa que, “entre todos os vilões da literatura, ele tem a honra nefasta de ocupar uma posição inatingível […] Nem mesmo o diabo – em Milton, Marlowe, Goethe, Dostoievsky, Melville – pode competir com Iago”.

Iago é defendido com brilhantismo por Nicolas Bouchaud, ator que já trabalhou em várias montagens de Sivadier. O artista explora as nuances desse personagem manipulador invejoso e dá o seu show na cena, canta clássicos do rock , cospe vinho tinto e espaguete, invoca as caretas do Coringa dos filmes de Hollywood e explode qualquer barreira de gênero interpretativo.

Quem não te conhece, que te compre!!!! O espectador conhece a verdadeira face de Iago e seus passos e maquinações, compartilhados nos solilóquios. Mas todas as outras figuras compram a face angelical, leal e humana que sua máscara diabólica esconde. Sempre atuando, disfarçado de amigo fiel, ele ouve de suas vítimas – Othello, Desdêmona, Cássio – “Honesto Iago”.

Atriz Émilie Lehuraux no papel de Desdêmona. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Jisca Kalvanda como Emilie, a esposa desprezada de Iago. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

Algumas escolhas artísticas e de tom dão mais estatura às personagens femininas. Pequenas adições de pulsações contemporâneas ecoam na peça as lutas feministas e antirracistas destes tempos. A encenação adota uma postura mais aguerrida e menos de vitimização das figuras da mulher.

Émilie Lehuraux, junta frescor juvenil, magnanimidade e determinação para legitimar sua Desdêmona, seja em cena mais amorosas ou no enfrentamento a seu pai e à sociedade racista, no comitê dos senadores.

Ela canta Undress me conhecida na voz de Juliette Gréco, no centro do palco, descalça sobre um grande lençol, mortalha que outros atores vão desdobrar. E manifesta sua vivacidade para se defender do marido ensandecido de ciúme, que a acusa violentamente. A mesma atriz também assume com desenvoltura o papel de Bianca.

Emilie (Jisca Kalvanda), a esposa desprezada de Iago, funcionária de Desdêmona, fica com a incumbência de delatar os culpados e desmascarar suas mentiras. Na cena final, ela diz que a verdade quer prevalecer e ela não deve se calar. E faz um discurso contundente, que parece atravessar os tempos.

Sim, a essência da encenação está nos atores, o diretor investe no jogo dos intérpretes. Stephan Butel faz um Cássio que expõe as fragilidades de um militar. Na cena da bebedeira arquitetada por Iago, ao som de We Will Rock You, do grupo Queen, Butel exibe o lado mais ingênuo do seu tenente.

De silhueta longa e vocação camaleônica, Cyril Bothorel assume vários papéis, incluindo o de pai intratável de Desdêmona, que anda furiosamente pelo palco de pijamas despejando logorreia racista. Gulliver Hecq, como Roderigo também apaixonado por Desdêmona e manipulado por Iago, expõe a estupidez da personagem.

Os flertes de Jean-François Sivadier com a cultura pop ressaltam as pontes da época de Shakespeare com o mundo contemporâneo.

Cena da bebedeira de Cássio. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

São interessantes os recursos materiais que o Odéon–Théâtre de l’Europe dispõe para fazer a arte funcionar. Tenho certeza de que o diretor pernambucano Quiercles Santana ficaria bem-motivado em criar nesse espaço. Para se ter uma ideia. A cenografia do espetáculo é composta por molduras rotativas de madeira com grandes lonas de plástico transparente. Pois bem, na cena em que Othello está transtornado as molduras giram e com os efeitos de luz e som, por alguns instantes somos sugados para mente desestabilizada de Othello. Nesse momento, o mundo treme, a vida se comprime numa grande vertigem.  

Iago quer rebaixar Othello à vulgaridade e provar que os valores como a honestidade, o amor e a honra valem muito pouco no final das contas. Nesse sentido, a encenação põe em movimento duas visões de mundo antagônicas. Se uma é calcada na dignidade, a outra distorce os sentidos pela corrupção.

O confiante Othello muda de discurso e de comportamento no decorrer do espetáculo. No início da peça, o protagonista rebate com brio as acusações de Brabâncio e fala de maneira equilibrada para provar o seu amor frente ao grupo de senadores. Mas, no final, ao baixar ao nível de seu algoz, Iago, utiliza metáforas desprezíveis nas palavras que destina a Desdêmona.

Quando Othello cai ao nível de seu falso amigo, ele se assemelha a Iago. Otelo abdica de ser Otelo. E essa operação em cena é linguagem explosiva.

O diretor Jean-François Sivadier arisca borrar os personagens. Após o intervalo nesta montagem com os cinco atos, por breves minutos, os dois atores – Nicolas Bouchaud e Adama Diop, de frente para o público, um ao lado do outro, repetem as mesmas falas e trocam de papeis. Essa jogada põe em andamento séculos de leituras interpretativas dos dois personagens e reforça que isso é teatro, frenético teatro, num jogo magistral de atores.

Máscara branca de Othello na montagem de Sivadier. Foto: Jean Louis Fernandez / Divulgação

E para as cenas finais, do assassinato, do suicídio, da queda no abismo,  Othello aparece com uma máscara branca. Adama Diop imita gestos e caretas caricaturando a postura do selvagem. A cena tensiona as questões contemporâneas e complexifica a máscara branca. A mão do crime é preta, mas o braço da manipulação é branco.

E não nos enganemos. Ao desnudar o processo de humilhação e controle social Shakespeare nos lembra que nos assemelhamos aos seus personagens em abjeção.

Sim. É difícil imaginar um mundo sem Shakespeare (It is hard to imagine a world without Shakespeare), como registra o diretor do The Folger Shakespeare Library Michael Witmore, em Othello, o Mouro de Veneza, na edição que leva em conta o conhecimento que se tem da obra do dramaturgo no século 21. (Aqui o link da peça em inglês para baixar gratuitamente).  O bardo inglês prossegue expandindo nossas consciências.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , ,

Mademoiselle Julie em Avignon

Senhorita Júlia em Avignon

A atriz Juliette Binoche conquista o público e não a crítica em Avignon, diz o portal da RFI (Rádio Francesa de Informação Internacional). Seu espetáculo Senhorita Júlia, de August Strindberg, entusiasmou a plateia, mas não convenceu, no entanto, os críticos.

A famosa intérprete, Oscar de melhor coadjuvante em 1997 por seu papel no filme O Paciente Inglês, não pisava num palco de teatro francês desde 1988. E esse retorno foi cercado de muita expectativa. Juliette Binoche, aos 47 anos, chegou a comentar que estava com muito receio antes da estreia.

A adaptação contemporânea da peça do sueco Strindberg, escrita em 1888, feita pelo diretor francês Frédéric Fisbach, não conseguiu, segundo alguns críticos teatrais, “transmitir a densidade do texto, que trata não somente da paixão de uma aristocrata por seu empregado, mas principalmente da luta de classes e da relação de forças entre um homem e uma mulher”.

Fisbach colocou o conflito num apartamento moderno, “onde os convidados dançam freneticamente e os amantes discutem numa cozinha branca”, no lugar da família aristocrática da Escandinávia.

Juliette Binoche e o Nicolas Bouchaud. Foto: Divulgação

Para uns, Binoche conseguiu encarnar uma Júlia moderna, personagem trágica e complexa, contracenando com o ator francês Nicolas Bouchaud. Para outros, a caixa branca de vidro de Fisbach afastou o espectador da problemática principal da peça, a instabilidade das relações amorosas.

A crítica do Le Monde foi dura com relação à peça, apesar de destacar o trabalho de Binoche. O jornal diz que a atriz caiu numa armadilha nesse seu retorno ao teatro francês, depois da apresentação de A Gaivota, de d’Anton Tchekhov, exibida em 1988.

“O espetáculo é uma catástrofe”, prossegue o Le Monde. E a primeira razão apontada é própria escolha do texto. “Mademoiselle Julie é, na verdade, uma armadilha. Escrita em 1888 pelo sueco August Strindberg (1849-1912), ela fez escândalo na sua criação, em 1906, porque quebrou um tabu”.

Quando Strindberg escreveu o texto, diz a crítico do Le Monde, Miss Julie representava a última palavra da modernidade.

Mas “Mademoiselle Julie atravessou o século 20 com um gosto de enxofre que fascinou os diretores e ainda mais atrizes, sonhando com o papel de uma mulher em uma busca desesperada por liberdade. É porque o papel mais promete que faz… Hoje, a peça aparece em toda a sua nudez: instável, lotada de um pântano psicológico que relega Strindberg muito atrás de seu grande contemporâneo norueguês Henrik Ibsen”.

“… Assim vai o tempo em teatro, que pede, se quer enfrentar Miss Julie em 2011, para concentrar-se sobre ela um olhar firme ou iconoclasta. Não é o caso de Frédéric Fisbach”.

“… Juliette Binoche atua bem. Mas ela não pode lutar contra a encenação de Frédéric Fisbach. Nem contra essa impossível Julie, cuja a armadilha se fecha sobre ela. Apesar dela”.

Senhorita Júlia fica em cartaz no Festival de Avignon até 26 de julho. Depois, a peça deverá ser apresentada no Teatro Odéon em Paris e deverá fazer uma turnê em Londres e no Japão em 2012.

Postado com as tags: , , , , ,