“É impossível, compreendo, penetrar na solidão de outra pessoa. Se é verdade que sempre podemos vir a conhecer outro ser humano, ainda que em um grau pequeno, isso só acontece na medida em que o outro quiser se fazer conhecido (…). Onde tudo é intratável, onde tudo é hermético e evasivo, não se pode fazer nada senão observar. Mas se a pessoa consegue ou não extrair algum sentido do que observa é uma outra história” (Paul Auster)
Encontrei essa citação de Paul Auster lendo um artigo de Antonio Paulo Rezende, professor de história da UFPE. E relutei, diante de tanta força que salta ao texto da peça Na solidão dos campos de algodão, de Bernard Marie-Koltès (1948-1989), em usá-lo logo no início desta apreciação crítica. Mas as palavras vão se impondo…e é justamente delas que podem sair embates surpreendentes.
Na Mostra Capiba já era a terceira vez que eu via a montagem de Na solidão…, dirigida por Antonio Guedes. Mas não parecia. Claro que o jogo de cena já não era inédito para mim; mas como o texto pode se fazer novo! De novo! Até porque talvez seja imprescindível dizer que trata-se de um teatro em que a palavra se estabelece em primeiro plano – claro que há outros elementos fundamentais; mas a base é a palavra, que não necessariamente se mostra em sua plenitude logo no primeiro encontro. Por isso mesmo, mais uma vez foi tão bom “ouvir” esse espetáculo. São várias as leituras que podem se desprender desse texto, inclusive uma que diz respeito a uma tensão sexual entre os personagens.
São apenas dois atores – Edjalma Freitas e Tay Lopez – que travam um diálogo, um embate ferrenho. Um deles tem algo para vender; e o outro é o “cliente”. Não são personagens facilmente identificados pelos trejeitos, pelo jeito de vestir, pelo vocabulário. Distinguem-se basicamente pelo discurso, o que retira não só o espectador da sua zona de conforto, mas também o ator. Não há uma composição de personagem no sentido tradicional – mas como lidar com a palavra pura e fazer com que ela chegue ao público? Os olhos podem dizer muito neste momento; a expressão de surpresa ou de raiva. É um lugar de interpretação diferente.
Como se estivessem dentro de um ringue, os atores travam lutas incorpóreas. Há uma distância “regulamentar” muito bem definida pelo encenador, além de uma postura corporal. Sem aproximações, toques, tapas. É um obra muito plástica, quase uma instalação. A cenografia de Doris Rollemberg nos leva a este mundo isolado do encontro; mas também nos distancia. Diante de um texto que já não é de uma assimilação instantânea, da ausência do contato físico entre os atores, talvez o público pudesse se sentir mais próximo; como júri que não pode exprimir sua intenção, mas não quer perder uma expressão dos advogados de defesa ou acusação.
Para mim, a montagem de Na solidão dos campos de algodão foi uma das melhores produções pernambucanas do ano. Uma ótima surpresa, assim como foi anos atrás Encruzilhada Hamlet, também da Cia do Ator Nu, com Edjalma Freitas e Henrique Ponzi no palco; e texto e direção de João Denys.
São criadores que se permitem optar por um caminho que não é o mais fácil, que pode até afastar o espectador, ávido por emoções fortes e pasteurizadas, rir ou chorar. Em Na solidão, ao contrário, o palco é o lugar do risco; a interpretação é o lugar do risco. É preciso ter paciência para ouvir, para digerir, para encarar um texto que não corresponde, geralmente, aos nossos desejos frívolos. “Não que eu tenha adivinhado o que você deseja, e nem tenho pressa de saber…”