Muribeca é título de um conto de Marcelino Freire publicado no livro Angu de Sangue (2000). É um bairro popular em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. E tem também o Aterro Sanitário da Muribeca, mais conhecido como o Lixão da Muribeca, desativado por completo, em 17 de julho de 2009, depois de ter sido utilizado por mais de 20 anos como depósito para os resíduos sólidos das cidades do Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo e Moreno.
O conto de Freire faz referência ao Lixão; a protagonista assume o nome Muribeca e introjeta os elementos do descarte como valor positivo, a sobra como saída de sobrevivência. O texto faz uma crítica feroz ao capitalismo e seus mecanismos de subjetivação.
O Coletivo Angu de Teatro, do Recife, montou em 2004 o espetáculo Angu de Sangue e Muribeca era um dos quadros mais emblemáticos. Defendido pelo ator Fábio Caio, essa mulher que considera o lixo um paraíso tinha nuances de ironia, mas com traços de uma doçura revoltada do subalterno e a projeção do cinismo dos poderosos.
Confesso, Reinaldo Patrício, que as imagens da atuação de Caio ainda dominavam minhas lembranças ao começar a assistir Muribeca – Algo sobre viver. O trabalho é fruto da parceria na produção do Grupo Cênico Calabouço (PE) e do Coletivo (In)comum (RJ), produzido durante a pandemia da Covid-19.
Reinaldo Patrício atua de forma visceral, no limite do arrebatamento para defender sua Muribeca. Um tecido vermelho é usado como saia e também compõe o pano de fundo para dar moldura ao quadro. Um fundo infinito. Sim, podemos ler como uma sequência de quadros, encaixilhados na telinha de um único celular fincado num ponto da pequena sala do ator. Cabe a ele mudar os enquadramentos com o deslocamento do seu corpo, aproximando-se ou afastando-se da câmera.
Essa figura que defende aquele lugar como espaço de moradia e sustento, projeto de existência e futuro dos filhos discorre sobre as vantagens de sua vida e acusa o governo de forma violenta por querer desativar o Lixão. Ela é uma sobrevivente e sabe disso. No fundo, sabe também de todas as explorações e tratamentos desiguais. E dá seu grito de revolta.
O núcleo junta pernambucanos que moram em cidades distintas. O trabalho foi erguido através de plataformas da internet, com o diretor Breno Fittipaldi fazendo suas orientações do Recife, nas trocas com Reinaldo Patrício e o dramaturgista Wellington Júnior no Rio de Janeiro. Eles executam várias funções técnicas para realizar o trabalho, nessa produção que investiga a manifestação teatral tensionada pelas novas tecnologias de informação e comunicação.
Em sua interpretação antirrealista, o ator transborda e há cenas em que é possível ver e sentir o suor, a saliva e outras secreções dos olhos da boca, da pele derramarem-se pelas telas das máquinas. Somos atingidos pelas máquinas que fazem arte. Nessa partitura de movimentos, os quadros se alternam e há muita potência nessas ações.
De dentro de Muribeca, Reinaldo Patrício desliza para outro conto de Marcelino Freire, Amor cristão: “Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe. Amor que não larga. Na raça. Amor que pesa uma tonelada. Amor que deixa. Como todo grande amor. A sua marca”. Esse deslocamento me chegou como um obstáculo, para depois perceber a jogada da dramaturgia de clamar o amor violento que pulsa em todos os recantos do planeta. Ali está em carne viva. A carne encontrada no Lixão, que Muribeca come e oferece ao público.
A peça aumenta a acústica com Monólogo ao pé do ouvido, Chico Science, para avocar cabeças de movimentos sociais. “O homem coletivo sente a necessidade de lutar…”, diz o texto de Science. “Viva Zapata! Viva Sandino! Antônio Conselheiro! Todos os Panteras Negras! Lampião sua imagem e semelhança…” A utopia ardendo do Lixão para citar a Revolução Mexicana de 1910, liderada pelo camponês Emiliano Zapata; a Revolução Sandinista na Nicarágua (1979- 90), comandada por Augusto Sandino, assassinado em 1934; os Panteras Negras, grupo radical na ação pelos direitos civis dos negros norte-americanos, na década de 1960; o Cangaço, com Lampião no Nordeste do Brasil e o Movimento de Canudos, fundado por Antônio Conselheiro e abatido pelo Exército em 1897.
Depois de uma apresentação de pouco mais de meia hora, artistas e público conversam sobre a peça ou outro nome que queiram dar. Na sessão que assisti, pessoas de várias partes do país (Recife, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais…) trocaram palavras amorosas sobre Muribeca – Algo sobre viver. Numa conversa horizontalizada e afetuosa, os artistas falaram do processo de criação à distância. Receberam os elogios de quem ficou para o bate-papo e se sentiu tocado pela energia do trabalho, o talento do ator Reinaldo Patrício e a paixão de todos os envolvidos nessa experiência. Vida longa à Muribeca e outros desdobramentos. A arte se reinventa a qualquer tempo.
Serviço
MURIBECA Algo sobre viver
Quando: todos os sábados de agosto, às 21h
Ingressos: A partir de R$ 10 (contribuições conscientes à venda no Sympla)
Onde: online, através da plataforma Zoom.
Ficha Técnica
Texto: Marcelino Freire
Dramaturgismo: Wellington Júnior
Direção: Breno Fittipaldi
Elenco: Reinaldo Patricio
Cenário e Figurino: Breno Fittipaldi e Reinaldo Patricio
Sonoplastia: Breno Fittipaldi
Iluminação: Wellington Júnior
Designer: Alberto Saulo
Produção executiva: Breno Fittipaldi, Reinaldo Patricio, Uirá Clemente e Wellington Júnior
Criação: Coletivo (In)comum e Grupo Calabouço e Grupo Bixigalixa
Realização: Patricius Produções
Duração : 35min