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Morrer de amor: sobre família e ignorâncias

Morrer de amor. Foto: Lígia Jardim

Morrer de amor. Foto: Lígia Jardim

“(…) extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada,
e nada mais”
Paulo Leminski

As paredes da casa estão impregnadas de história. Sabe aqueles segredos não revelados por anos? Os assuntos escondidos? As conversas que não chegaram nem a acontecer? Em Morrer de amor, segundo ato inevitável: morrer, da Fundación La Maldita Vanidad Teatro, da Colômbia, despontam as dores advindas de relações que se deixaram empalidecer pelo tempo, pela falta de liberdade de nos mostrarmos como somos.

A encenação proposta pelo colombiano Jorge Hugo Marín nos leva a observar de perto os sentimentos e conflitos que se instauram durante o velório de Luís (Miguel González). Estamos ali, sentados na sala da casa onde familiares choram o morto. Somos/estamos cúmplices da encenação. A carga semântica implícita ao local torna-se um dos elementos da teatralidade nessa escritura cênica. Não adiantaria estar dentro de uma casa, do ponto de vista estético, se não houvesse uma apropriação do potencial simbólico do lugar, o que possibilita ao espectador uma mudança de perspectiva da cena. O jovem grupo colombiano, formado há cinco anos e que já tem pelo menos sete montagens no repertório, realmente se empodera da materialidade espacial da encenação. O caixão no meio da sala, como nos velórios de antigamente ou nas casas pelo interior do país, permite que estejamos diante de conflitos familiares que não conseguem permanecer incólumes, mesmo diante da morte.

Espetáculo é realizado dentro de uma casa

Espetáculo é realizado dentro de uma casa

A dramaturgia assinada pelo diretor Jorge Hugo Marín trata de questões arraigadas na cultura não só da Colômbia, mas de toda a América Latina, principalmente posições de intolerância e ignorância diante das diferenças. Muitos jovens homossexuais ainda sofrem sim todo tipo de preconceitos e violência, dentro e fora de casa. Não podemos esquecer o contexto em que estamos inseridos. No Brasil, em 2015, ainda precisamos de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para discutir se o conceito de família pode estar restrito à união entre um homem e uma mulher, como prega o Estatuto da Família, projeto de lei proposto pelo deputado pernambucano Anderson Ferreira. Uma lei que desconsidera as relações homoafetivas e ainda veta a adoção de crianças por casais gays.

Como montagem que opta pelo caminho do realismo, Morrer de amor traz atuações que transitam por um limite tênue. Por muito pouco, as interpretações poderiam soar over, exageradas e aí perder a relação com a realidade proposta pela encenação. O que não permite que isso aconteça é o talento dos atores e da direção, aliado à clareza de possibilidades e de compreensão da cena, inclusive a partir da dramaturgia. O texto serve ao propósito de revelar o cotidiano de uma família classe média baixa que não sabe lidar com os seus conflitos. Se todos os atores conseguem trabalhar no mesmo diapasão, um dos destaques é a atriz Juanita Cetina, intérprete da jovem Olga, que foi namorada de Luís (Miguel González) na infância. As oscilações na voz, o medo no olhar, os trejeitos assumidos pela personagem levam muitas vezes a plateia ao riso ou à impaciência diante da ingenuidade.

Morrer de amor nos leva à certeza de que, se não podemos extinguir todo remorso, como propõe o poema Bem no fundo, de Paulo Leminski, é melhor encarar as fissuras causadas pelas ações, ausências e omissões. Como plateia, sentimos não só o morto da família. Choramos não só a ficção. O que lamentamos mesmo é a realidade de Morrer de amor.

Montagem colombiana trata de temas como preconceito

Montagem colombiana trata de temas como preconceito

 

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O aquário absurdo e a profusão de imagens no Woyzeck de Andriy Zholdak

Woyzeck. Foto: Lígia Jardim

Woyzeck. Foto: Lígia Jardim

Enquanto a Ucrânia amarga uma situação de guerra, com 5,2 milhões de pessoas morando em áreas de conflito, o diretor ucraniano Andriy Zholdak, radicado na Alemanha, apresenta um Woyzeck em estado de tensão permanente. Uma sociedade presa dentro de um aquário transparente, que se movimenta em espaços circunscritos e delimitados. Podem ser todos ratos de laboratório ou coelhos, ou simplesmente homens animalizados, acorrentados a situações de dominação e fatalidade.

Assim como o próprio texto do alemão Georg Büchner, a performance midiática proposta pelo diretor ucraniano tem caráter político. A questão no primeiro plano continua sendo o desamparo e as relações de poder num mundo absurdo; no caso da encenação, especificamente, em diversas instâncias: desde as referências mais diretas e facilmente assimiláveis, com imagens que ressaltam a desigualdade social e a citação de que “somos 15 milhões de pobres”, o imperialismo, o militarismo, a globalização, até disputas internas que se dão noutras instâncias, como no campo da própria teatralidade.

Patrice Pavis já dizia no livro A encenação contemporânea que, na concorrência entre a imagem fílmica e o corpo real do ator, não é necessariamente esse último que ganha. No caso do Woyzeck proposto por Zholdak podemos dizer que o que se instaura é uma desorientação (propositada, obviamente) espacial do espectador. Desde o inicio, quando passamos por uma antessala e nos deparamos com a visceralidade da atuação dos performers em deliberada anarquia, até estabelecermos uma relação de frontalidade com o espetáculo, percebemos que o que se revela é uma instalação visual e sonora. O diretor bebe nos campos de várias linguagens, música, cinema, artes visuais, para compor um espetáculo que não se deixa enquadrar por um elemento sobrepujante de condução. Pode ser facilmente estudo de caso da teoria do teatro pós-dramático do alemão Hans-Thies Lehmann.

Cenas acontecem também dentro de aquários

Cenas acontecem também dentro de aquários

Direção é do ucraniano Andriy Zholdak

Direção é do ucraniano Andriy Zholdak

A fricção entre os vários componentes dessa ópera caótica nos deixa inicialmente aturdidos. As camadas vão se sobrepondo a cada instante com signos que não serão compreendidos em sua totalidade. Nem essa é, de maneira alguma, a intenção do diretor, que assina ainda roteiro dramático e coreografia. Assim como os atores, estamos nadando em aquários, perdidos na profusão das imagens que nos remetem a um mundo de seres absurdos no ano de 2108, seja em alguma grande metrópole ou numa nave espacial com destino a Saturno. De qualquer maneira, assim como acontece no palco, somos levados a recorrer a uma edição de imagens, de texto, de expressões e sonoridades, mesmo que, no espectador, os significados possam ser depurados muito tempo depois.

O texto de Büchner, com sua fragmentação de dramaturgia, um “drama de farrapos”, como pontua Anatol Rosenfeld, é um aliado na construção da engenhosa teatralidade de Zholdak. Sobre o texto, Anatol Rosenfeld complementa: “É um fragmento; mas é uma obra que só como fragmento poderia completar-se. Ela cumpre a sua lei específica de composição pela sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal. (…) Tal fato desfaz a perspectiva temporal; boa parte das cenas pode ser deslocada, a primeira cena não é mais distante do fim do que a sétima ou a décima-quarta”.

A escritura cênica no campo visual encontra reverberação no corpo do ator, submetido a uma experiência rigorosa. O caos é orquestrado e coreografo em minuciosos detalhes pelo diretor. Se a escritura cênica é marcada pelo excesso e pela profusão e multiplicidade de imagens, o efeito que isso tudo produz na plateia, no entanto, é de muito distanciamento ao final das duas horas de sessão. Como se toda frieza das relações em cena também fosse transposta para o espectador. A tentativa de humanizar aqueles seres se mostra vã. Os limites do aquário, mesmo que invisíveis, não são rompidos ainda que a cena aconteça no telhado, numa possibilidade frustrada de expansão. Quando, ao final de contas, tenta-se falar de amor, não há laços construídos que se encaixem em padrões a que estejamos minimamente familiarizados. O único ponto de conexão com alguma delicadeza possível é a criança; a esperança remota de que, em 2108, o mundo de Zholdak não esteja definitivamente instaurado em sua totalidade.

Criança participa de encenação

Criança participa de encenação

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Todos permanecem vivos

As irmãs Macaluso. Foto: Lígia Jardim

As irmãs Macaluso. Foto: Lígia Jardim

No último dia 19 de fevereiro, o The New York Times publicou um artigo de Oliver Sacks. No texto, que viralizou rapidamente pelas mídias sociais, o escritor e professor de neurologia escreveu sobre a experiência de encarar a consciência da proximidade da morte por conta de um câncer terminal. Os compartilhamentos na rede talvez tenham vindo pelo fato de que, ao invés do tom pesaroso diante da finitude, o artigo propunha a superação, com uma mensagem clara de encorajamento. “It is up to me now to choose how to live out the months that remain to me (Agora depende de mim escolher como viver os meses que me restam)”. Para o filósofo existencialista Martin Heidegger, a tomada de consciência da morte nos leva a um questionamento radical diante do ser. Em As irmãs Macaluso, montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale, esse questionamento é trazido exatamente pela convivência com a morte proposta pela encenação de Emma Dante: os mortos continuam sendo parte de nós. Será que estamos mesmo vivos? O que determina a existência de vida?

As sete irmãs da história – Gina, Cetty, Maria, Katia, Lia, Pinucia e Antonella – saem do limbo da escuridão e passam a existir para os espectadores inicialmente todas de preto. Executam cortejos fúnebres coreografados, em bloco, mesmo diante da insistência de uma delas em se destacar do grupo com liberdade de expressão. Se a queda se instaura por alguns instantes, a força do grupo reanima, coloca de volta no prumo.

A movimentação permanece até que as irmãs assumem a posição na qual permanecerão ao longo de praticamente toda a montagem, dispostas uma ao lado da outra. Na encenação da diretora e dramaturga de Palermo, no entanto, o fuzilamento do pelotão não será pelas mãos de elementos desconhecidos, externos, sem qualquer relação próxima e que apenas cumprem ordens pós-sentença de morte. Numa reunião familiar, as lembranças podem ser muito mais cortantes e virulentas do que qualquer projétil. Os julgamentos são desfiados e se mostram inevitáveis quando os laços relacionais permitem o conhecimento profundo do outro.

Montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale tem direção de Emma Dante

Montagem da Compagnia Sud Costa Occidentale tem direção de Emma Dante

A história da família é marcada por tragédias

A história da família é marcada por tragédias

O estado de energia e tensão presente no corpo das atrizes se desdobra na sonoridade da língua – o espetáculo é encenado no dialeto de Palermo – e das músicas cantadas inclusive pelos próprios atores. A partir do ritmo impresso pela movimentação do corpo, a poética do espetáculo vai se afirmando aos poucos e reverberando na plateia. As risadas com as travessuras e episódios de infância se transformam com a apreciação dos dramas que compõem a história daquela família, marcada por tragédias e calcada na tradição. O humor e a ironia travam uma relação tênue com a melancolia da percepção dos erros, com a inevitabilidade do acidente trágico, com os cuidados que deveriam ser tomados e não foram. O tempo não volta atrás, mas permanece. O presente existe enquanto desdobramento do passado, mas esse último não se exaure, se estabelece como permanência e continuidade.

Na cena, a realidade vai sendo permeada pela memória, que é capaz de se mostrar cruel e dura, mas também pode trazer uma afetividade transbordante. O que foi se apresenta amalgamado com o presente. Os que morreram permanecem ali e, mesmo aqueles que parecem voltar, nunca estiveram no campo do esquecimento. O pai, que faz um grunhido de porco, dá bronca com dedo em riste, mas canta a música com a preferida, a caçula, já estava presente como narrativa. Uma das sequências de maior potência poética na montagem é o encontro da mãe com o pai. Os dois giram agarrados como crianças, eternizando um momento que pode ser ilusão, sonho, idealização.

O encontro entre o pai e a mãe

O encontro entre o pai e a mãe

Sem nenhum cenário ou mesmo aparatos tecnológicos, a teatralidade de Emma Dante é construída a partir do vazio. Do vazio do preto que assume outras cores, mas depois se estabelece como ausência de cor. Do vazio do silêncio preenchido pela sonoridade rápida e ininteligível do dialeto. Do vazio da narrativa que se transforma em memória. Também há muita simplicidade estampada na cena. Quando a opção é óbvia, mas eficiente: o convívio do espectador com a história que nos agarra sem que nenhum esforço se mostre excessivo, talvez só pela constatação de que, naquela família, cabem todas as famílias do mundo, inclusive a minha.

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MITsp traz ao palco conflitos, discussão e crítica

As irmãs Macaluso

As irmãs Macaluso

Na cidade mais cosmopolita do Brasil, um festival que discute o teatro feito além do nosso umbigo. Produzido no mundo. Que coloca em pé de igualdade a apresentação da obra e as reverberações que podem surgir a partir daí: encontros com diretores, grupos, pesquisadores, crítica. É exatamente pela combinação desses elementos que a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp – é, mais uma vez, tão potente de possibilidades.

A segunda do festival, aberto na noite de ontem, no auditório Ibirapuera, em São Paulo, com a presença do prefeito Fernando Haddad, de representantes do Ministério da Cultura, do Sesc, do Itaú Cultural e da Oi, traz este ano espetáculos da Rússia, Alemanha, Inglaterra, Ucrânia, Holanda, Itália, Israel, Colômbia e Brasil.

Matando o tempo. Foto: Juan Carlos Mazo

Matando o tempo. Foto: Juan Carlos Mazo

Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, e Guilherme Marques, diretor geral do CIT-Ecum (Centro Internacional de Teatro Ecum) pensaram uma programação a partir da ideia de conflito, inclusive territorial. O espetáculo israelense Arquivo, por exemplo, com direção e autoria de Arkadi Zaides, usa imagens projetadas do arquivo do Centro de Informação Israelense pelos Direitos Humanos nos territórios ocupados. Voluntários palestinos que vivem na Cisjordânia receberam câmeras para gravar o dia a dia na ocupação.

As montagens geralmente também apresentam radicalidades com relação à encenação. Stifters Dinge, da Alemanha, direção de Heiner Goebbels, propõe uma performance sem atores, “uma instalação sonora e imagética que experimenta o cruzamento das artes visuais com a música erudita contemporânea”, diz o material do programa da MIT.

Stifters Dinge. Foto: Mario del Curto

Stifters Dinge. Foto: Mario del Curto

O festival traz ainda a sua primeira coprodução: o espetáculo Canção de muito longe, da Holanda, com direção de Ivo van Hove, que estreia no Brasil. Na montagem, “um jovem banqueiro retorna de Nova York para sua cidade natal, Amsterdã, para assistir ao funeral do seu irmão mais novo”, antecipa o programa.

As atividades de debate e formação incluem, por exemplo, uma ação intitulada Diálogos Transversais, que traz nomes geralmente de outros campos do conhecimento que não as artes cênicas, para discutirem os espetáculos logo após a apresentação. Para exemplificar, José Miguel Wisnik vai tratar de Canção de muito longe; Raquel Rolnik de Julia, espetáculo de Christiane Jatahy, e Bernardo Carvalho, de Arquivo.

Canção de muito longe

Canção de muito longe

Uma das mesas de discussão mais esperadas acontece no dia 15, às 11h, no Itaú Cultural, com Josete Féral, José Antonio Sánchez, Kil Abreu e Luiz Fernando Ramos.

Crítica

O Satisfeita, Yolanda? participa mais uma vez da MITsp como integrante do coletivo DocumentaCena, formado ainda pelos espaços virtuais Teatrojornal, Questão de crítica e Horizonte da Cena. Ao DocumentaCena, juntam-se outros críticos convidados – Beth Néspoli, Daniel Schenker, Michel Fernandes, Ruy Filho e Wellington Andrade – para que todos os espetáculos possam ter pelo menos três apreciações críticas. Os textos vão circular em publicações impressas nos próprios teatros e serão postados também no blog Olhares críticos, dentro do site da MITsp. Os textos dos integrantes do coletivo DocumentaCena serão publicados também aqui no Satisfeita, Yolanda?.

Oficina DocumentaCena

O DocumentaCena propôs também uma laboratório de crítica de teatro, que será realizado dias 11 e 12 de março, das 10h às 14h, no Centro de Pesquisa e Formação, no Sesc SP. O encontro pretende debater questões inerentes à crítica teatral, desde um recorte histórico sobre a crítica no Brasil, até a relação com outras artes, as especificidades da crítica jornalística e acadêmica e o local do espectador diante da crítica. As inscrições para a oficina estão abertas e podem ser feitas através do e-mail inscricoes@mitsp.org .

Confira a programação da MIT no site da mostra.

E se elas fossem para Moscou? Foto: Aline Macedo

E se elas fossem para Moscou? Foto: Aline Macedo

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