Cinematografia da realidade teatral
Por Pollyanna Diniz – Satisfeita, Yolanda?
A certa altura do espetáculo Cineastas, a declaração de um dos personagens saltou aos ouvidos: “o cinema é o ser humano fazendo o tempo parar”. Enquanto no cinema o instante se deixa capturar e reproduzir pelo aparato tecnológico, no teatro há mais coerência em dizer que ele é experimentado em conjunto. Por isso mesmo, a característica da efemeridade mostra-se, como sabemos, uma das mais intrínsecas à atividade teatral. Atores e espectadores estão em busca de uma vivência compartilhada, da fruição de pulsões e desejos, que não se dão numa via de mão única: acontecem tanto do palco para a plateia quanto vice-versa, mas significam efetivamente tempo, acontecimento e, geralmente, espaço divididos.
Em Cineastas, o dramaturgo e diretor argentino Mariano Pensotti traça paralelos e similitudes entre o teatro e o cinema e problematiza os limites entre realidade e ficção, só que utilizando, de fato, sempre a chave da ficção. A trama apresenta as vidas “reais” de quatro diretores de cinema e, concomitantemente, os filmes nos quais eles estão envolvidos. A dicotomia entre criação e realidade se estabelece a partir das representações dos filmes postos como obras de ficção quando, na realidade, tudo é simulacro do real.
As histórias se desenrolam simultaneamente e com a agilidade da linguagem audiovisual. As ações são apresentadas em planos distintos. A cena, aliás, propõe o mesmo recorte imagético do cinema nos enquadramentos bem definidos. Tudo está restrito ao que cabe naquele retângulo e, com isso, a questão: quais são os recortes que fazemos da realidade priorizando este ou aquele viés?
Nas duas telas, as narrativas exibidas se influenciam e são postas em fricção o tempo inteiro – até que ponto “realidade” e ficção podem se misturar e relacionar? De que forma esses conceitos podem ser intercambiáveis? Um dos cineastas, por exemplo, decide mudar o roteiro do filme depois que descobre uma doença terminal. Outra é afetada porque está filmando um roteiro em que um desaparecido surge anos depois desestabilizando a família; e ela enxerga ali a própria história, já que o pai dela também sumiu.
A dramaturgia está apoiada ainda nas contradições desveladas no cotidiano, entre os papéis assumidos diariamente nas diferentes situações e o que realmente somos ou gostaríamos de ser. Um dos diretores trabalha no McDonald´s, mas se dedica a rodar um filme em que teoricamente destruiria a imagem da multinacional.
Cineastas solicita o tempo inteiro que o espectador esteja acompanhando as sequências e os cortes propostos pelo diretor, retomando a narrativa de onde ela foi interrompida, como as diversas tramas em que nós mesmos, plateia, estamos envolvidos. A história de Pensotti normalmente tem um narrador, onisciente, que assume a condução da trama quando dispõe do microfone, e aí nos revela o que se passa, mesmo que os outros dois atores, por exemplo, estejam conversando. Não interessa o que dizem; aquele narrador já é capaz de traduzir não só o que está acontecendo “de fato”, como de nos contar em tom confessional o que os personagens estão pensando, os dilemas enfrentados, como se sentem. Logo depois o diálogo entre os dois pode ser retomado e virar novamente o foco principal da cena.
As possibilidades de espelhamento e construção de interferências entre realidade e ficção representadas dentro da peça nos inquietam também acerca do quanto nos resignamos diante das condições dadas pela efetividade do cotidiano. E, ao mesmo tempo, nessa perspectiva, do quanto podemos ser afetados e influenciados pela arte e, especificamente, pela experiência partilhada do teatro. Como se, sendo ou não capazes de lidar com a realidade ou suas reconstruções do dia a dia, o teatro sempre fosse um refúgio possível.
Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada
Por Ana Carolina Marinho – Antro Positivo
O que é, diante do real, esse trabalho intermediário da imaginação? – diz Robert Bresson. Para um cineasta inquieto com o seu tempo e com o seu fazer, suponho que seja o cotidiano o suporte de seus devaneios e a imaginação a engrenagem para a realidade. Mas encontra-se aí a potência e o revés da criação. Parto dessa suspeita para propor uma reflexão a partir de Cineastas, da Companhia Marea. Sendo a criação esse território da instabilidade e do desassossego, o criador busca ordenar as formas para delas subtrair instantes de arrebatamento. E cada instante desse capturado é enquadrado, o que retira dele uma possibilidade outra de existir, na medida em que se exclui do plano um universo para, quem sabe, libertar o plano dele mesmo; deslocado de sua realidade, do instante não permanece quase nada.
Reside também nessa instabilidade a ânsia por encontrar na vida o impulso criador, a inspiração poética, o acontecimento trágico ou qualquer outra intensidade a que atribuímos à banalidade. “Até que se viva algo especial, não se poderá viver nada”, diz um dos personagens. É uma espécie de apetite que destempera o olhar. Faminto pelo estímulo criativo, o criador olha ao redor esperando que dele possa se servir. Quando não obriga a realidade a ofertar alguma coisa sequer! E se nada satisfizer a gula, me juntarei ao criador para maldizer a vida e o cotidiano. E juntos permaneceremos distantes da experiência e da criação, enquanto desejarmos destemperadamente apoderar daquilo que queremos e tomar posse daquilo que deveríamos estar absortos. Se se cria por insatisfação ao que se tem, seria a criação ressonância do fracasso?
Em Cineastas, revela-se que a insatisfação reside tanto na imagem pré-fabricada – a película – quanto na imagem imediata – a realidade. Ambas querem servir-se uma da outra para, quem sabe, gerar uma dimensão terceira, intraduzível e arrebatadora. Não há a possibilidade de reconstruir a experiência sem deformá-la, por isso, a cena escapa do domínio do real ou da ficção. Não se trata do que aconteceu ou do que poderia acontecer, mas do que está acontecendo. Assim como na tela de cinema, o espetáculo é a sobreposição de dois frames justapostos, como se fossem duas vidas paralelas acontecendo simultaneamente, mas sem conseguirmos identificá-las. Cada instante de realidade são também 24 quadros por segundo?
Percorro o desenrolar da cena com as instruções de Bresson no pensamento, “o importante não é o que eles me mostram, mas o que eles escondem de mim e, sobretudo, o que eles não suspeitam que está dentro deles” e me parece que a encenação aposta nisso e que a legenda é o suporte para tal operação. O espetáculo consegue, através da simultaneidade das cenas, esgarçar os contornos e propor novas relações. É que não há como ter o casamento da imagem pré-fabricada com a imagem imediata sem que haja a destruição das duas.
Farei uma nota. A legenda, e essa é uma sensação que tem me perseguido nessa Mostra, tem sido a grande força de imposição do discurso. Ela antecipa o pensamento e retira do espectador a ilusão de que as coisas estão acontecendo pela primeira vez ali, de que o próximo segundo é desconhecido por mim, espectadora, e por eles, atuadores. Nesse espetáculo, diferentemente, isso torna-se linguagem, na medida em que a legenda se personifica e é o suporte para que as duas imagens se colidam. Numa espécie de tela projetada, a cena se desenrola em duas projeções com a presença da legenda entre elas. E, assim, passa a não interessar de qual projeção a legenda pertence, mas sim o atrito que gera a legenda pertencer às duas simultaneamente. Chego até a duvidar se a peça existe sem ela.