Tatto Medinni é Mariano. Fotos: Ivana Moura
Não gostava muito do título da peça: Mariano, irmão meu. Sei que relações conflituosas e/ou de proteção de uma das partes mobilizam sentimentos nobres. E neste mundo de contatos escorregadios e contratos descartáveis um pouco de segurança parece um oásis. Não sei se pelo que o título entrega ou pelo que ele esconde. Mas ontem o espetáculo estreou, no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, dentro do Festival Palco Giratório e o título se diluiu, ganhou outro sentido. A montagem é do grupo Engenho de Teatro, que já encenou quatro peças antes, todas com alguma ligação com uma poética da imagem e do verbo autoral.
No caso, Alexsandro Souto Maior assina o texto e também está no palco, no papel de Damião, o irmão mais velho. O irmão do título da encenação é interpretado do Tatto Medinni, um garoto com problemas cognitivos. A terceira figura dessa trama é a atriz Ana Cláudia Wanguestel, que faz a sóbria tia Augusta, e mais dois personagens de ligação (atendente de um serviço de seleção de cargo de trabalho e enfermeira de um posto médico).
Encenação é assinada por Eron Villar e direção de arte por Java Araújo
Os dois irmãos foram abandonados pela mãe quando Mariano nasceu. O mais novo é quem mais sofre com essa ausência e até mesmo pelo desconhecimento do rosto da mãe. Para minorar a dor do caçula, o mais velho adaptou um trecho do Apocalipse para a vida deles, (que ela fugiu de um dragão com sete cabeças e dez chifres) para justificar a lacuna materna.
Afeto e dependência. Essas duas coisas se misturam na vida da dupla. A sobrevivência é fruto da caridade alheia. O mais novo depende do mais velho, e não tem consciência disso. O mais velho é dependente do mais novo e tem consciência disso. Ambos têm a vida paralisada. Mariano espera todos os dias no cais pela volta da mãe. Que não vem.
A direção de Eron Villar aproveita bem os traçados espaciais e as mudanças de localização. As portas do cenário se transformam em outros objetos, manipuladas pelos próprios atores. Eron também imprime um andamento, um tempo que abre frestas para tocar os sentimentos do espectador.
Ana Cláudia Wanguestel interpreta Tia Augusta
A iluminação (também de Eron Villar) é de grande encanto plástico. Não há alegria na peça. O que existe é o sofrimento de dois seres, ligados pela genética e pelo amor. Cru é o tratamento, da temática aos diálogos. Mas não são rudes.
Eles habitam um lugar e um tempo não especificados. Seus trajes e algumas falas dizem de sua pobreza, da carência em todos os sentidos.
No início o autor pensou em escrever sobre a relação de Van Gogh e seu irmão Theo. Talvez eles existam em partículas do texto. O grupo fala que se inspira na estética e na linguagem do escritor Guimarães Rosa. Boas pegadas.
Damião (Alexsandro Souto Maior) cuida do irmão menor
Mariano, irmão meu conta com música ao vivo, de uma trilha que foi composta especialmente para o espetáculo. Isso garante um enriquecimento do todo.
A peça precisa de alguns ajustes, detalhes, reforço. Mas o diretor vai continuar a mexer na sua cria. A mão do diretor parece firme, mas não dura.
As interpretações vão crescer. Mas vale destacar o desempenho de Tatto Medinni como o louquinho, meio ingênuo, totalmente perdido e com um grande sentimento em desassossego. É um papel difícil, e qualquer um corre o risco de cair no clichê já divulgado pela televisão. Medinni leva a dor do seu personagem para o corpo, com um tique ao andar, um tique na cabeça. A voz, o gesto, a respiração, se harmonizam com a proposta para o personagem.
Apesar de conhecer tão bem o papel que escreveu, Alexsandro Souto Maior pode dar mais ao seu Damião. Algo que mexa com as tripas. E que essa agonia que sente, associada à culpa da invenção da história do dragão estejam vibrando na pele.
A tia de Ana Cláudia é pesada, solene cheia de vazios. Falta-lhe nuances.
É um espetáculo que deve crescer com a temporada. Mariano, irmão meu entra em cartaz no Teatro Marco Camarotti, às quartas e quintas, de 5 a 27 de junho.
Montagem estreou no Palco Giratório