Pensar, tocar, incendiar o mundo através da arte. É um jeito de existir. De expandir horizontes. De buscar sentidos. O paulistano Márcio Marciano, encenador e dramaturgo do Coletivo de Teatro Alfenim, de João Pessoa, na Paraíba, está implicado contra a opressão. “O teatro surgiu em minha vida como um apelo e uma arma”, conta ele nesta longa e importante entrevista, que é um dos frutos de uma colaboração do Satisfeita, Yolanda? para o Itaú Cultural no projeto Cena Agora, edição Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. A iniciativa incluiu mediação crítica, a escrita de quatro colunas para o site do Itaú Cultural e uma série de entrevistas publicadas no Satisfeita, Yolanda?.
Com Pequeno Inventário das Afinidades Nordestinas, um experimento documental e lírico, em linguagem híbrida entre o teatro e o cinema, o Alfenim participou do programa Encruzilhada Nordeste(s): (contra)narrativas poéticas. A ação do Palco Virtual do Itaú Cultural reuniu trabalhos de 15 minutos de 28 grupos teatrais do Nordeste, do Norte e do Sudeste, que flexionaram sobre as construções estereotipadas ou colonizadas das identidades nordestinas, tendo como disparador a capa da revista Veja São Paulo, que publicou uma edição especial elegendo São Paulo como a capital do Nordeste.
A cena criada e dirigida por Márcio Marciano e Murilo Franco investiu na experiência de nordestinidade conectada a uma memória mais afetiva e com dobraduras sobre a atualidade de espaço e tempo no contexto da pandemia.
O grupo paraibano – formado por paulistanos, paraibanos, cariocas, mineiros, goianos e cearenses – buscou na leitura poética e crítica desse Pequeno Inventário alargar o arrolamento de ideias e sentidos para a questão. Participaram do quadro que explorou as contradições e afetos dessa composição múltipla do Nordeste as/os artistas Zezita Matos, Adriano Cabral, Edson Albuquerque, Lara Torrezan, Mayra Ferreira, Murilo Franco, Paula Coelho, Verônica Cavalcanti, Victor Dessô e Vítor Blam.
Marciano é um dos fundadores da Companhia do Latão, de São Paulo, onde atuou por 10 anos, antes de se mudar para a capital paraibana. É um pensador, dramaturgo e encenador “politicamente posicionado no contexto da luta de classes”. Para ele, fazer teatro também é um enfrentamento constante e incansável contra o capitalismo seus efeitos. Suas argutas reflexões amplificam as percepções sobre a política e a arte, abraçam o sentimento de estar junto, questionam de que teatro estamos falando, cobram as responsabilidades constitucionais do poder público de garantir apoio à arte e da cultura que vem sendo negadas, e ressaltam as necessárias e urgentes políticas de reparação deste país tão injusto.
O projeto “poético-político-pedagógico”, um termo brechtiano que distingue o percurso do Coletivo Alfenim, está refletido nos espetáculos do grupo. Num trajeto de 14 anos e na convivência com quatro gerações de artistas, o Alfenim montou, entre outros, Quebra-Quilos (2007), sobre uma revolta popular situada no sertão da Paraíba no final do século XIX; Milagre Brasileiro (2010), que investiga a figura do desaparecido político durante a ditadura militar, O Deus da Fortuna (2011), sobre o processo de financeirização do capital; o solo Brevidades (2013), com Zezita Matos; Memórias de um cão (2015) e Helenas (2018). Com o edital do RUMOS Itaú Cultural, a trupe deu início à pesquisa de Complexo Fatzer (2018), de Brecht, que derivou na encenação Desertores (2019), que volta à cena presencial após a pandemia.
A tarefa coletiva mais urgente para artistas e cidadãos, na visão de Márcio Marciano, “é confrontar e desbaratar o projeto miliciano de poder que está se imiscuindo em todas as instituições democráticas do país”. Essa luta é incontornável.
ENTREVISTA || MÁRCIO MARCIANO
Como o teatro entrou na sua vida?
Através de campanhas de popularização do teatro. Quando adolescente, na virada da década de 1970 para a década de 1980, eu era metalúrgico e morava num bairro operário de São Paulo, a Mooca. Lá existe um teatro da prefeitura, o Arthur Azevedo, que recebia espetáculos que haviam feito temporadas de sucesso e eram apresentados a preços populares. Tive a chance de ver montagens históricas como Na carreira do divino, O homem elefante, Pegue e não pague, Muro de arrimo, entre outros.
E ficou por quê?
Até então, nunca havia entrado num teatro. Foi uma descoberta saber que era possível juntar num mesmo espaço e num mesmo tempo tanta gente interessada em pensar o mundo através da Arte. Vi no Teatro uma síntese viva de várias formas de expressão, com a vantagem de que tudo acontecia ao alcance das mãos, a poesia materializada em ato, mentes e corpos em convergência. Para quem já pensava que o mundo andava fora dos eixos e que era preciso denunciar todas as formas de opressão, o teatro surgiu em minha vida como um apelo e uma arma. Mas somente mais tarde, depois de cursar jornalismo, me pus o desafio de estudar e fazer teatro. Passei um tempo no curso de Artes Cênicas da ECA (USP), mas o teatro me convocou e fui trabalhar como cenotécnico e operador de luz no Teatro do Ornitorrinco, grupo que eu admirava por ter me posto em contato com a obra de Brecht. Pouco tempo depois, participei da fundação da Companhia do Latão (SP), na qual permaneci por 10 anos.
Na sua trajetória, quais os episódios que considera mais relevantes?
Penso que para a grande maioria de artistas engajados num teatro não hegemônico, politicamente posicionado no contexto da luta de classes, toda estreia é um marco relevante na luta, mais ainda sua permanência em repertório. No meu caso particular, destaco os primeiros experimentos da Companhia do Latão, quando ocupamos por quatro anos o histórico Teatro de Arena, em São Paulo, assim como as várias apresentações do grupo em assentamentos do MST Brasil afora, e nossa participação no Fórum Mundial Social, em Porto Alegre (2003). Já no Coletivo de Teatro Alfenim, ressalto nossa participação no Festival Latino-americano de Teatro de Grupo de São Paulo, em 2009, a inauguração de nossa sede em João Pessoa, a Casa Amarela, com a estreia de Memórias de um cão, em 2015, e o Festival Internacional da Utopia, em Maricá (RJ), em 2016.
Poderia contar um pouco da trajetória do grupo?
O Coletivo de Teatro Alfenim surgiu em 2007, quando eu e Paula Coelho, minha companheira, nos mudamos de São Paulo para João Pessoa. Ela acabara de ingressar como professora no Departamento de Teatro da UFPB. Minha intenção era dar continuidade ao projeto de desenvolvimento de uma dramaturgia autoral a partir de temas brasileiros, iniciada na Companhia do Latão. O grupo foi formado por atrizes e atores convidados e estudantes de teatro que conheci em oficinas que ministrei na cidade. Esse encontro de gerações é uma das marcas do Coletivo. Da fundação participaram atrizes de carreira consolidada como Zezita Matos, Verônica Cavalcanti e Soia Lira, que permanecem atuando no grupo, juntamente com jovens atores e atrizes que conhecemos em oficinas oferecidas regularmente nesses 14 anos de atividade.
O Coletivo Alfenim estreou oficialmente no Festival Recife de Teatro Nacional, em 2007, com a leitura encenada de Quebra-Quilos, seu primeiro espetáculo. Em 2009, o grupo participou da Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo de São Paulo. A peça trata de uma revolta popular que ocorreu no sertão da Paraíba no final do século XIX contra a implantação do sistema métrico decimal. A segunda montagem, Milagre Brasileiro, de 2011, aborda o período mais sombrio da Ditadura Militar, após a decretação do AI-5, tendo seu foco na figura do “desaparecido político”. O espetáculo foi indicado ao Prêmio Shell na categoria Música. Em 2012, o Coletivo montou O Deus da Fortuna, uma parábola em chave cômica sobre o processo de financeirização do capital. A peça se passa numa China mítica, pré-capitalista. O espetáculo circulou pelo país com o projeto SESC- Palco Giratório, em 2014. Também em 2012 estreou Brevidades, um solo de Zezita Matos, que narra a trajetória de uma atriz acometida pelo Mal de Alzheimer. Recolhida a uma clínica, ela relembra em meio aos constantes lapsos de memória, os papéis marcantes de sua carreira.
Em 2013, o Alfenim foi contemplado pelo Programa de Patrocínio da Petrobras com o projeto Figurações Brasileiras. Além de circular com seu repertório por várias capitais do país, o grupo montou em 2015 Memórias de um cão. Em 2017, o espetáculo foi selecionado pelo programa de circulação da BR Distribuidora. Em 2018, o Coletivo estreou Helenas, que permanece em repertório. A peça foi escrita a partir da obra Minha vida de menina, de Helena Morley, que viveu em Diamantina, no final do século XIX. Retrata o processo de descoberta e de formação da personalidade por que passa a autora ao entrar na adolescência. Apesar da distância de mais de um século, as observações agudas de Helena revelam as contradições da sociabilidade brasileira dos dias atuais.
Em 2018, o Alfenim foi contemplado pelo RUMOS Itaú Cultural para iniciar o processo de estudos do Complexo Fatzer, a monumental obra inacabada de Bertolt Brecht. Esse estudo resultou na montagem do espetáculo Desertores, que estreou em 2019 na Casa Amarela, sede do grupo em João Pessoa, e permanece em cartaz à espera de retomar as apresentações presenciais após a pandemia. Ao longo de 14 anos de atividades ininterruptas, o Alfenim participou dos principais Festivais e Mostras de Teatro do país, além de ocupações em espaços da Funarte em São Paulo e Rio de Janeiro e dos Espaços da Caixa Cultural de Brasília, Rio e Curitiba. Em 2018, lançou seu primeiro CD Canções de Cena, com composições musicais de seus três primeiros espetáculos. Atualmente, prepara o lançamento de um novo CD com as canções de cena de Desertores.
Pode soar meio anacrônico,
mas temos a convicção de que
o Teatro deve ser uma arte pública,
coletiva e popular.
A força de nosso trabalho
vem justamente dessa formação
que reúne quatro gerações de artistas.
Uma marca do Alfenim
é a pluralidade que se reflete
no modo colaborativo de produção da cena
Como sobreviver enquanto coletivo?
Nomear o Alfenim como “coletivo” foi uma decisão programática, num momento em que a tendência era a de esfacelamento dos grupos em direção a produções solo, muito em função da falta de alternativas para a manutenção de projetos de pesquisa continuada. Ainda hoje, o termo incômodo é quase uma profissão de fé na busca de modos coletivos de produção da cena, contra a prevalência da especialização e da divisão social do trabalho em moldes capitalistas. Pode soar meio anacrônico, mas temos a convicção de que o Teatro deve ser uma arte pública, coletiva e popular. Essa escolha acarreta um custo, sobretudo no que se refere à circulação do grupo, uma vez que se torna cada vez mais inviável viajar com uma equipe de 14 ou 15 pessoas. Contudo, apesar das dificuldades, não temos dúvida de que a força de nosso trabalho vem justamente dessa formação que reúne quatro gerações de artistas.
Uma das peculiaridades do Alfenim, para o bem e para o mal, é que a grande maioria dos integrantes tem uma atividade profissional paralela. São professores universitários, professores de cursos técnicos de teatro, professores de artes, enfim, atividades complementares ao fazer teatral. Se, por um lado, essa condição limita o período de dedicação às atividades do grupo, por outro, proporciona uma alternativa de sobrevivência nos momentos de ausência de cobertura financeira, seja através da venda de espetáculos, seja com base nas verbas de editais.
Porém, o que mantém a unidade do Coletivo (afora os fundadores, a maioria de seus integrantes está no grupo há mais de 10 anos) é a apropriação de seu projeto “poético-político-pedagógico”, tomando emprestado um termo de Brecht. Com o tempo, estamos aprendendo a assimilar e pôr em prática os desejos de pesquisa e experimentação de cada artista em particular. Essa pluralidade se reflete no modo colaborativo de produção da cena, outra marca do Alfenim. Do ponto de vista material, o grupo deve sua existência às políticas públicas de fomento à pesquisa em artes. A fundação e a trajetória do Alfenim coincidem com o período mais efetivo dessas políticas, tanto no que se refere a editais em nível municipal, estadual e regional, como aos editais federais de manutenção e circulação de grupos. Apesar da excelência técnica e artística reconhecidas que o Alfenim vem desenvolvendo ao longo de 14 anos de atividades continuadas, ainda não conseguimos nenhum tipo de patrocínio ou apoio da iniciativa privada, com exceção do Itaú Cultural.
O que é necessário para fazer arte no Brasil?
No Brasil de hoje, é necessário, antes de tudo, confrontar e desbaratar o projeto miliciano de poder que está se imiscuindo em todas as instituições democráticas do país. Essa é a tarefa coletiva mais urgente. Contudo, dialeticamente, sabemos que a arte se alimenta da matéria negativa, de tudo o que é adverso. Sendo assim, apesar dos atuais “tempos de fezes”, como diz Drummond, a arte se fortalece na luta. Porém, a arte, como toda atividade humana que requer esforço e trabalho, precisa de condições minimamente favoráveis para se desenvolver em sua plenitude. Num mundo pautado pela forma mercadoria, essas condições não podem ficar dependentes das “leis do mercado”, como prega a liturgia neoliberal. Está previsto na Constituição do Brasil, que a arte e a cultura são direitos fundamentais do povo brasileiro, portanto, cabe ao poder público criar mecanismos de apoio e de desenvolvimento da arte e da cultura em todos os níveis de expressão, com ênfase para políticas de reparação dedicadas exclusivamente aos segmentos que historicamente vêm sofrendo as mais bárbaras formas de alijamento e discriminação. Nesse sentido, é necessário que a arte no Brasil de hoje se engaje na luta por transformações estruturais com vista à construção de um mundo mais igualitário e habitável por todas e todos.
O que você pode nos dizer do seu xará, Marcio Meirelles, do Teatro dos Novos, da Bahia?
Evoé, Marcio Meirelles! Tive o prazer de conhecer Marcio, pessoalmente, em 2001, se a memória não me trai, quando a Companhia do Latão esteve no Teatro Vila Velha apresentando A Comédia do Trabalho. Naquela ocasião, pudemos conversar sobre teatro e, principalmente sobre Brecht e a vinda de Peter Palitzsch, seu assistente no Berliner Ensemble. O diretor alemão viria ao Brasil para dar uma oficina à Companhia do Latão, em São Paulo, e para acompanhar a montagem de Material Fatzer, por Marcio, com o elenco do Teatro Vila Velha, em Salvador, a convite do Instituto Goethe. Os descaminhos do teatro não me levaram a assistir à montagem, mas em 2002, quando o texto com tradução de Christine Röhrig e colaboração de Marcio foi publicado, pude entender seu entusiasmo ao falar da obra inacabada de Brecht. Quase 20 anos após esse encontro com Fatzer, através de Marcio Meirelles, pude revisitar a obra de Brecht, agora com a tradução na íntegra de Pedro Mantovani, o que resultou na montagem de Desertores, que o Alfenim estreou em 2019, na Casa Amarela, em João Pessoa.
Quais as motivações para erguer um espetáculo?
Um espetáculo acaba por ser sempre a síntese de uma experiência em processo, um feixe de desejos e urgências, um modo de confrontação da realidade, uma imposição do engajamento na luta de classes e o testemunho de nossa capacidade de imaginar um mundo mais habitável. O que motiva um espetáculo do Alfenim é a necessidade de prestarmos, enquanto artistas e sujeitos históricos, um depoimento crítico, lúcido e poético em face das contradições de nossa vida em sociedade. Ainda que, às vezes, sob pena de falar para um número restrito de espectadores.
A qualidade primordial do teatro é o encontro presencial, sua capacidade de gerar um acontecimento social irreproduzível. A virtualidade desloca esse fenômeno para uma nova modalidade de experiência.
Vivemos um momento em que o Teatro foi obrigado a se adaptar ao mundo virtual. No início houve uma discussão se isso seria ou não teatro. Essa questão foi superada?
Penso que a questão está posta e ainda levará um bom tempo para ser superada. Não considero que o teatro tenha sido obrigado a se adaptar ao mundo virtual. Quem foi obrigado fomos nós, os fazedores de teatro, os trabalhadores que se viram de repente instados a utilizar novas ferramentas. E o resultado desse embate ainda está em processo de desdobramento e consolidação. A qualidade primordial do teatro é o encontro presencial, sua capacidade de gerar um acontecimento social irreproduzível. A virtualidade desloca esse fenômeno para uma nova modalidade de experiência. Não há nisso um juízo de valor, mas a constatação de um fato. A virtualidade suprime do teatro seu poder de celebração e engajamento coletivo, o que a meu ver reduz seu potencial de mobilização social. Num momento histórico de individuação radical, de limitação de nossas faculdades gregárias, a impossibilidade do encontro presencial nos confina ao simulacro da experiência social, o que num certo sentido nos desumaniza.
O teatro que é transmitido pelas redes derrubou barreiras geográficas, permitiu que pessoas de várias partes do mundo pudessem compartilhar o trabalho virtual. Como você percebe essa experiência, dos artistas e da recepção?
De fato, o teatro, enquanto capital simbólico, ganhou uma volatilidade semelhante ao capital financeiro. Parece não haver barreiras para sua circulação. Contudo, essa modalidade de acesso virtual, está longe da experiência de fruição que o teatro presencial promove. Para usar a distinção marxiana clássica entre valor de uso e valor de troca, me parece que nessa virtualização o teatro sai perdendo enquanto experiência de convívio social, apesar de preservar algo de sua natureza estética. Tanto para os artistas quanto para o público, me parece que há uma exageração falsificadora de sua capacidade de circulação em detrimento de sua potência de transformação. Se pensarmos o teatro somente enquanto linguagem, acredito que esse novo suporte acabará por proporcionar o surgimento de formas híbridas e inovadoras, com alta complexidade estética, baseadas em avanços tecnológicos. Mas algo se perde nessa privatização do fenômeno artístico, que, a meu ver, só se realiza enquanto intercâmbio social irreproduzível. Está acontecendo com o teatro hoje algo que de modo semelhante já acontece com as formas de reprodução da música. Uma coisa é ouvir uma ópera ou um show de rock num teatro ou num estádio, outra muito diferente, é ouvir essa mesma música na sala de sua casa, ainda que a qualidade do som seja impecável.
Qual é o espaço social, cultural e político de atuação de um grupo de teatro?
Desde sua mais remota origem, é da natureza do teatro ocupar um espaço social, cultural e político. Nesse sentido, um grupo de teatro sempre pode se tornar um elo importante na constituição de nossa sociabilidade. Onde houver vida humana, haverá pessoas se unindo em torno do desafio de figurar sua própria experiência e entendimento do mundo através do teatro. Naturalmente, ao longo da história, o teatro teve momentos de maior ou menor relevância social, cultural ou política. Às vezes, pode predominar um aspecto sobre os demais, e o teatro atender a demandas específicas, contudo, o social, o cultural e o político são elementos que não se dissociam. Ressalte-se que o teatro tem sua capacidade de intervenção potencializada quando um grupo teatral assume programaticamente, para si mesmo e para seu público, a tarefa de colocar sua arte a serviço da transformação social. Essa escolha implica o compromisso de ultrapassar a fronteira da investigação puramente estética em busca de formas mais efetivas de comunicação e mobilização social. Esse me parece ser o grande desafio de um grupo de teatro: alcançar o mais alto padrão técnico sem descuidar do caráter pedagógico de sua arte, no sentido de contribuir no plano simbólico para uma verdadeira ação política com vista à transformação social.
Quais motores de ordem artística, profissional, ideológica e política determinam ou influenciam o trajeto de um grupo teatral?
Num país como o Brasil, cuja tradição teatral é feita de descontinuidades, a primeira impressão é que todo grupo de teatro que surge tem alguma coisa de pioneiro ou inaugural. O diálogo produtivo com a tradição fica relegado ao plano da curiosidade histórica ou, o que é pior, ao plano das peculiaridades e exotismos. Talvez isso seja um reflexo tardio do gosto modernista pela inovação ou certa aversão por tudo o que represente o passado. E não podemos esquecer que, do ponto de vista da forma mercadoria, o apelo à novidade é a marca do sucesso. Nesse contexto, me parece que a despeito do esforço de um grupo em desenvolver um projeto artístico consequente e criar uma identidade própria, o que determina seu trajeto são fatores fortuitos, muito mais identificados com o apelo “mercadológico” de suas produções. Não raro, espetáculos com novidades formais, ou que abordam temas polêmicos que estão na ordem do dia fazem sucesso meteórico e adquirem chancela de qualidade e legitimidade, desde que não afrontem o “bom-gostismo” burguês. E isso influencia ou determina a trajetória desses grupos. Não há mal nenhum em fazer sucesso, ao contrário, a questão é quando a energia produtiva do grupo acaba se adequando aos apelos da circulação. Quando o grupo passa a fazer concessões à forma mercadoria.
Marciano, você havia falado que “é preciso reconquistar para a arte e, através dela própria, seu valor de uso, seu caráter formativo e pedagógico”. Como isso pode ser feito na prática?
A arte sempre se valeu do recurso da metalinguagem para refletir sobre sua própria razão de existir. Trata-se não apenas de um poderoso instrumento de análise das contradições do processo de composição da obra, como também de um convite à recepção crítica do que é apresentado ao público. Autores modernos e contemporâneos vêm desenvolvendo formas cada vez mais incisivas de utilização desse mecanismo de modo a revelar não apenas a estrutura interna que sustenta a obra de arte, como também as intenções que presidem sua composição. Essa prática, apesar do risco de resultar em puro exibicionismo narcisista, o que ocorre com frequência, pode ser um importante meio de aprendizagem da ação política. Nos “comentários” que acompanham o Complexo Fatzer, obra monumental de Brecht sobre o travamento da revolução e a ascensão do fascismo, o dramaturgo alemão observa que é preciso almejar o “mais alto padrão técnico”. Ele se refere à busca de uma cena dialética capaz de propiciar o acesso à grande pedagogia, ou seja, ao aprendizado da ação política. Para seus detratores isso equivale a proselitismo maniqueísta, quando, na verdade, Brecht propõe a utilização de procedimentos dramatúrgicos que permitam aos artistas envolvidos no processo de montagem refletir acerca de seu posicionamento de classe na cena narrada. Esse objetivo vai além do desvelamento da estrutura interna da cena, das intenções que a presidem ou de suas limitações técnicas. O que esse mecanismo metalinguístico proporciona ultrapassa a verificação da atuação do artista na cena em direção à atuação do artista enquanto sujeito político no contexto da luta de classes. É nessa perspectiva que a arte pode reconquistar seu valor de uso, como elemento constitutivo de uma “Pedagogia da Autonomia”, para usar os termos de Paulo Freire e, assim, recuperar seu caráter formativo.
O teatro tem, ou deveria ter, um papel de conscientização social?
Certamente tem e, mais do que nunca, deve ter na atual conjuntura social e política brasileira. Mas não basta a “consciência de classe” se essa consciência se fetichiza e se limita a seu valor de troca, quando não ultrapassa o circuito frequentado pela classe média bem pensante. Nós, os fazedores de teatro, precisamos encarar o desafio de levar nossa arte para a periferia do sistema, levar o teatro ao encontro daqueles que detêm o que Eric Hobsbawm denomina como o “conhecimento de classe”. Ou seja, é preciso pensar um projeto verdadeiramente amplo de circulação das obras teatrais para que estas atinjam as populações que estão alijadas do processo usual de circulação de bens culturais. Como diz Lênin, o movimento vem da margem, lá se encontra a vanguarda de toda verdadeira transformação.
Tentar ganhar a vida dignamente
fazendo Teatro no Brasil
é um projeto de alto risco.
Há um tipo de Teatro que sobe no trapézio sem rede de proteção. Para os artistas dessa estirpe, não há tempo de pensar no risco, já que o salto é a única coisa que importa.
O que é o risco no teatro? O que é um teatro sem risco?
Toda empreitada teatral comporta um certo grau de risco. Mas há espécies diferentes de risco no teatro. Antes de tudo, é preciso distinguir o tipo de teatro a que nos referimos. Se for ao teatro voltado para o entretenimento, o risco maior está no fracasso da bilheteria, ou na ausência da circulação patrocinada, quando seu valor de troca não se realiza conforme o planejado. Em todo o caso, não é um risco de ordem artística, mas empresarial. Há no Brasil inúmeros profissionais de altíssima competência tentando exercer bravamente seu ofício em circunstâncias pouco favoráveis. Tentar ganhar a vida dignamente fazendo Teatro no Brasil é um projeto de alto risco. Para se viabilizarem financeiramente, essas produções optam por caminhos já trilhados, dentro de uma margem maior de segurança, de modo a conquistar a adesão das plateias. Não tratam de temas polêmicos e não se aventuram em experimentalismos formais. Isso não as torna a priori atrações vulgares ou “caça-níqueis”, resultando muitas vezes em produtos de alta competência técnica. Porém, em que pese a dedicação e o profissionalismo dos artistas envolvidos, em grande parte acabam por ser montagens politicamente equivocadas, quando não francamente reacionárias. Já as empreitadas teatrais que priorizam a experimentação artística, quando superam o risco de sucumbir antes da estreia, têm que se haver com outra espécie de risco, o risco da incompreensão. Não falo da incompreensão do público, já que esse obstáculo pode ser artisticamente uma conquista e não um fracasso. Muitas vezes, essa incompreensão é na verdade puro preconceito, e é necessário que o teatro confronte toda espécie de atraso. Mas me refiro à incompreensão dos próprios artistas quanto ao que seja de fato uma experimentação artística genuína e não uma reprodução acrítica de um modelo em evidência. Muitas vezes, essas produções têm a convicção de que estão alargando os limites da arte, quando na verdade estão apenas “perfumando a rosa”, como diz João Cabral de Melo Neto, já que esse refinamento estético não vislumbra nenhuma transformação social. Mas há um tipo de teatro que sobe no trapézio sem rede de proteção. Para os artistas dessa estirpe, não há tempo de pensar no risco, já que o salto é a única coisa que importa.
Nossos representantes são horríveis, cafonas, ignorantes, um atraso de vida. Como a arte pode mudar esse quadro de homens brancos heteronormativos, preconceituosos, no comando?
Estamos vivendo um momento de retrocesso sem tamanho, os abutres do atraso aproveitaram uma oportunidade histórica de abrir a caixa de Pandora da miséria nacional, mas eles se esqueceram de vasculhar o fundo e não perceberam que lá restou a esperança. Quando vejo as muitas candidaturas coletivas que surgiram nas últimas eleições, penso que o modelo caduco da representação política eleitoral pode se renovar com iniciativas dessa natureza. É muito pouco, mas é um indício de que é possível fazer algo de fora para dentro, que a sociedade possa ela própria pautar reformas que o parlamento jamais faria sem pressão popular. Não à toa, essas candidaturas têm uma relação umbilical com algum movimento social ou artístico. Essa aproximação entre artistas e movimentos sociais pode se tornar relevante no enfrentamento do atraso.
O Brasil será sempre o país do futuro?
A noção de país, ou de Estado-Nação está em crise. Portanto, pensar o Brasil nessa perspectiva necessariamente implica pensar a crise global, sendo essa crise associada à crise maior do sistema capitalista. Desde sua origem, o território a que chamamos Brasil vem exercendo funções específicas no sistema de reprodução global do capital. Nesse sentido, o Brasil será sempre o futuro do capitalismo, enquanto esse sistema não for destruído.
É preciso destacar o caráter democrático,
popular e de inclusão do período Lula/Dilma,
apesar de suas contradições estruturais.
A parcela endinheirada aproveitou a crise
da representação política para eleger
a canalha miliciana e terraplanista como
quem vende um produto no comércio on-line
De quem é a culpa desse retrocesso que vivemos?
“Culpa” é um termo cristão que não alcança a complexidade da situação atual. Em primeiro lugar, não podemos perder de vista que o mundo globalizado sofre as consequências de uma severa crise na reprodução do capital, sendo que as novas estratégias de representação política buscam se adequar a essa conjuntura. A volatilidade do capital, bem como a volatilidade das interações sociais, via internet, afetam a prática política como a conhecemos, uma vez que as relações materiais de produção parecem pulverizadas e desimportantes. Nesse contexto, o retrocesso político e suas derivações comportamentais retrógradas e fascistas vêm ganhando espaço mundo afora. No Brasil, a situação parece ainda mais grave. A República surgiu de um golpe militar. De lá até hoje, passando pelos frequentes períodos ditatoriais, o país vem tentando construir o que não passa de um simulacro de democracia, cujas instituições estão a serviço de uma elite econômica boçal por definição. A crise da representação política que acontece mundo afora ganha aqui traços de cruel caricatura. Nos raros períodos de estabilidade democrática, o Brasil não deixou de avançar, ainda que timidamente, no que se refere às políticas de inclusão social. Nesse sentido, é preciso destacar o caráter democrático, popular e de inclusão do período Lula/Dilma, apesar de suas contradições estruturais. Os avanços inquestionáveis desse período, marcado pela inclusão das minorias, geraram o ressentimento ignorante de parcela expressiva da população. A parcela endinheirada, receosa de perder seu espaço de Poder, espertamente aproveitou a crise da representação política para eleger a canalha miliciana e terraplanista como quem vende um produto no comércio on-line. Fez isso de modo tão ágil que só nos restou a perplexidade melancólica de quem acreditava que a democracia estava consolidada.
Até que ponto nossa realidade é uma obra-prima da TV Globo?
A Globo pode ser considerada a face mais visível e brilhante de um monstro de muitos tentáculos. Ela tem uma capacidade incrível de se adaptar à conjuntura sem perder o verniz de civilidade. O projeto de poder atual não está de bem com a Globo, mas a Globo já demonstrou em outras ocasiões que os governos passam e ela fica. Para manter seu lugar de proeminência na produção do imaginário, a Globo tem investido maciçamente em outras plataformas virtuais. Ela sabe que está perdendo terreno para as rádios e TVs pentecostais e precisa reagir. Mas por trás dessa disputa pelo imaginário, todas essas emissoras se irmanam na preservação de seus privilégios no que toca ao marco regulador das comunicações no país. Pensar a democracia no Brasil implica necessariamente pensar a quebra desse monopólio.
O que o teatro pode provocar ainda hoje?
Hoje há uma tendência de positivação do termo “provocar”, mas provocar não é necessariamente uma virtude. O teatro tem incontáveis recursos de provocação que podem redundar em reacionarismo. Muito do teatro atual opera nesse nível de estímulo a respostas emocionais, reatualizando a velha e boa noção de “catarse”. Penso que o teatro tem o dever de provocar o pensamento crítico, mas não numa perspectiva iluminista, linear, mecanicista. O teatro precisa aguçar o sentido da contradição, desenvolver no público o gosto de pensar dialeticamente. Precisa encontrar formas de transformar a provocação em mobilização efetiva. Parafraseando Paulo Freire, o teatro não faz a Revolução, mas não há Revolução possível sem o Teatro.
Ficamos indignados com os gestos explícitos
de sordidez e frieza da milícia
que cada vez mais se apodera
das instâncias do poder
Vivemos momentos de ódio, intolerância… Como reverter esses sentimentos tão egoístas e covardes? Ódio se combate com ódio?
Num país como o Brasil, onde o passado escravocrata perdura até o presente, sentimentos como o ódio e a intolerância constituem nossa sociabilidade. Acontece que para a grande maioria de párias que compõe a sociedade brasileira, entre os quais me incluo, a impunidade que acoberta os atos pusilânimes parecia ser um privilégio dos endinheirados. Porém, a vitória eleitoral das elites mais retrógradas parece que deu a senha para que também os miseráveis se sentissem à vontade para praticar toda espécie de violência e covardia. Aos desavisados como nós, que tínhamos a precária ilusão de que vivíamos numa democracia consolidada, com instituições sólidas, e que caminhávamos com passos firmes rumo à civilização e ao processo irreversível de distribuição de direitos, resta o choque e a inação. Estamos perplexos diante da barbárie e incapacitados de uma reação organizada. Hoje, ficamos indignados com os gestos explícitos de sordidez e frieza da milícia que cada vez mais se apodera das instâncias do Poder. Nestes momentos em que parece não haver saída, tendo a pensar numa das leis da dialética, aquela que diz que a quantidade se torna qualidade. A História é cíclica, após um momento de regressão virá outro de superação. Em nosso espetáculo Desertores, há uma fala do coro que diz: “E o que fazer? Sentar à margem das cidades e ficar à espera do novo animal que surgirá para substituir o homem?” Esse novo animal não surgirá, nós mesmos é que teremos que encarar o problema de frente. Lênin dizia que a violência é a parteira da História. O Brasil precisa prestar contas com seu passado, enfrentar seus mortos para desenterrar o futuro. Esse enfrentamento do passado urge acontecer agora, sob pena de adiarmos o futuro indefinidamente.
Como não cair na cilada do maniqueísmo, na arte, no teatro, na vida?
Em momentos históricos de acirramento das contradições, temos a impressão de que se acabam as sutilezas, as nuances e ambiguidades, que tudo se divide em dois campos de luta cerrada. Porém, essa é uma visão reducionista e paralisante. É preciso pensar dialeticamente e agir, ainda que sem esperança. Por mais que as sutilezas sejam temporariamente deixadas de lado, o momento exige um posicionamento claro, sem temor de suas consequências. Brecht lamenta num poema dirigido “aos que virão” que “em tempos sombrios, falar de árvores chega a ser quase um crime, pois isso implica silenciar sobre tantas outras barbaridades”. Talvez nossa tarefa histórica seja não silenciar, ainda que nossos gritos encubram todas as nuances.
Daqui a 500 anos, haverá teatro? No exercício de esticar os sentidos para o futuro, como será?
O teatro pode ser privado de tudo, menos da capacidade intrínseca ao ser humano de fabular sua experiência. Enquanto houver seres humanos, e acredito firmemente que haverá daqui a 500 anos, sentiremos a necessidade vital de narrar nossa história uns aos outros. Quando se referia à vitória da Revolução e à chegada da “era científica”, Brecht dizia que talvez o Teatro como o conhecemos se tornasse desnecessário e se transmutasse em outra coisa a que poderíamos chamar “Taetro”. Talvez seja esse o nome que a humanidade dará à nossa arte daqui a 500 anos, mas certamente continuará como uma crônica de seu tempo.
Qual a pergunta urgente neste momento?
Tomo emprestadas as palavras de Brecht: “E o que fazer? Sentar à margem das cidades e ficar à espera do novo animal que surgirá para substituir o homem?”
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