Devo confessar que a principal motivação para vir ao Porto Alegre em Cena – Festival Internacional de Artes Cênicas este ano foi conferir com meus olhos, (e os outros sentidos, racionalidade e emoção) a montagem de Mãe Coragem e seus filhos, que o Berliner Ensemble apresenta até hoje na capital gaúcha.
Assisti ontem, no 7 de setembro tão cheio de significados para o Brasil.
Foi uma sessão antológica, de um grupo que embala o nosso aprendizado, de longe, há anos.
Fiquei na segunda fila do Theatro São Pedro – cadeira 13, da fila B – quase dentro da cena, no palco com circunferência central inclinada para a plateia. Os músicos ficavam nas laterais, praticamente embaixo do palco. Holofotes parecidos com os de um estádio de futebol iluminam a ribalta, voltados para o público. Uma carroça estacionada no canto do palco reaviva a memória do texto e das falas dos personagens.
Anna Fierling adentra o palco com sua carroça e seus três filhos, cada um com sobrenome diferente. De pais diferentes. À frente do elenco, Carmen-Maja Antoni, uma atriz baixinha e ágil, de vigor e carisma que tendem a aumentar com o desenrolar da peça e que está há 36 anos na companhia. Ela explora com maestria a força a ironia e o sarcasmo da protagonista. Anna Coragem tenta proteger a prole como uma leoa. Ela pensa que isso será possível. Mas a guerra cobra sua parte. E subtrai um a um seus filhos nas batalhas.
A protagonista tenta negociar com os exércitos a permanência de seus meninos junto à mãe. E apesar de toda sua habilidade, não há negociação possível.
Há alguns momentos sublimes no espetáculo. Destaco dois: quando Anna Fierling desconhece o corpo de seu filho morto e a atriz mostra na face e na tensão do corpo toda a dualidade dos sentimentos internos de uma mãe e o instinto de sobrevivência, para defender a si própria e a filha Kattrin. A outra é uma sequência longa, que começa quando a mudinha Kattrin, defendida pela atriz Anna Graenzer, resolve tocar o tambor para avisar aos moradores do perigo, o apoio dado pelo garoto, até ela ser resgatada aos braços da mãe.
Em todo o espetáculo Carmen-Maja Antoni se mostra estupenda no seu papel, enquanto os outros integrantes também exibem harmonia e qualidade técnica de interpretação. Os herdeiros do Berliner Ensemble vêm com um elenco afinado, uma encenação austera. Mas Claus Paymann, diretor artístico da companhia, não descarta o humor, um humor ferino que faz acordar para o absurdo da situação bélica.
A peça escrita por Brecht em 1939 faz alusão às duas Guerras Mundiais que o teórico alemão atravessou. A do subtítulo – Crônica da guerra dos trinta anos, mas possui uma atualidade tão grande que remete para qualquer guerra, em que as pessoas deixem prevalecer seus piores instintos. E onde ronde a barbárie.
O espetáculo falado e cantado em língua alemã contou com legendas. O pensamento artístico-político de Brecht, Helene Weigel e seus parceiros de utopia está impregnado em todos os elementos da encenação. Os traços épicos e dialéticos da montagem apostam na excelência artística.
As canções traduzem bem a poderosa revolução de Brecht. A técnica de esticar e quebrar a emoção chega a um patamar próximo da perfeição.
Para demarcar a diferença da família de Mãe Coragem, os outros personagens utilizam máscaras, como rostos pintados para a guerra. O núcleo de Coragem está de cara limpa.
Foram três horas de duração, num ritmo que nem era ágil e nem lento. As trocas de cenas deixavam o teatro no escuro por alguns segundos, o que provocava uma vontade de acompanhar essas mudanças, talvez na penumbra.
O profissionalismo é tamanho que uma figura do grupo, sentada na primeira fileira do teatro, acompanha fala por fala durante todo o espetáculo.
Ao final, a companhia foi ovacionada por um Theatro São Pedro lotado até a torrinha.