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A máquina de fazer festas e… tiranos
Crítica do espetáculo Édipo REC

Jocasta (Nash Laila) coroa o DJ Édipo (Giordano Castro).Foto Camila Macedo / Divulgação

DESEJO DE SABER: Dançar até os pés ficarem inchados

Pompeia, SP, 28 de setembro de 2024. Dia seguinte à estreia do espetáculo Édipo REC, do Grupo Magiluth, do Recife

O desejo de poder é uma das forças motrizes das ações de Édipo, my love. Tem também o amor… um belo exercício de poder.

E a vida é decepcionante???

Mas será que somos gregas? A democracia foi forjada lá? E o teatro nasceu na Grécia? Gaguinho, personagem da atriz Odília Nunes em A Guará Vermelha, da Cia. do Tijolo, também contestou essa tese. O Corifeu de Édipo REC, na ressaca anos após a festa,  pondera que “já se fazia muito teatro em muitos lugares, nas mais variadas línguas, espalhados num território gigante e plural hoje singularizado na palavra África”.

Mas antes tem “a” festa e ela dura horas, muitas; anos, séculos. E como nos alimentamos desses estímulos de som, do banal ao mais potente, energia pura e outras pujanças de uma luz mágica de Jathyles Miranda que maneja as emoções, dessas que estão à flor da pele, mas busca o tutano.

Fazemos pose, se dói em algum ponto do corpo ninguém vai ver, até a queda final.

A música e o DJ, que será rei, as pequenas invejas e as grandes traições ocupam os espaços, se deslocam, traçam coreografias.

Na festa tão contagiante com suas drags provocadoras, adivinhadoras, somos levadas por tantas sensações e ambientes do poder macro ao micropoder. Do país Brasil, ao universo das nossas bolhas de tantas performances e multiplicações de imagens.

Mas afinal, do que você está falando?

De mim, bebê, pois cada uma fala de si e tenta valer sua narrativa, mesmo quando disfarça com os escudos da teoria.

Mário Sergio, no papel de Creonte, que ambiciosa ser o poderoso chefão. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Do fim da peça Édipo REC passando pelo  drink no templo da Pina Bo, das negociações da galera no Pompeu às tarefas prosaicas de limpar casa, preparar comida, e tentar elaborar algum pensamento sobre o 15º campeonato do Magiluth foram muitos tempos intercalados…. em apenas um dia.

Nem sabemos exatamente como chegamos naquele baile tão cheio de nuances, que o dono da sina só chega muitas poses depois.

Seguimos o Coro drag Erivaldo Oliveira e suas inflexões debochadas, seu modelito brilhante e botas de plataformas enormes.

Ainda na convivência, o clima se instala. Munido com sua máquina de captar imagens, Bruno Parmera de barba e boné (quase um disfarce) se projeta em Corifeu multiplicado por muitos clicks.

Creonte se apresenta ambíguo, quem é ele ?

Caímos na festa – o palco do Sesc Pompeia – com suas arquibancadas vazias e seu dancing lotado de espectadores/colaboradores que seguem o fluxo de Parmera, de Mário, de Erivaldo.

E são muitos climas de festa… a chegada de Pedro-Tirésias, num figurino deslumbrante, a dizer alguma verdade e celebrar outros teatros zecelsianos e muitos níveis de influências. A presença do Pedro Wagner traz uma liga, uma segurança, uma propriedade na cena; que o audiovisual permita que ele esteja muitas vezes no teatro. 

A atriz Nash Laila (Jocasta) na estreia, ao lado da diretora Cibele Forjaz. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Nash Laila como Jocasta. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Eu danço, tu danças, ela dança, nós dançamos, el_s dançam. E chega o “dono” da festa, o DJ Édipo (Giordano Castro), que conquistou sua Jocasta (Nash Laila) e apaziguou um país. Pelo menos por um tempo…

E que coisa mais linda a presença da atriz Nash Laila. Que coisa boa o Magiluth acolher uma intérprete depois de tantos anos sem a presença feminina no palco. Pareceu-me que o jogo ficou mais… delicioso. O que pode a atuação de uma mulher num elenco masculino? Muchas cosas, cariño. Inventa outras humanidades.

Enquanto dançamos, a máquina de fabricar “estados de felicidade” (que remete à peça Dinamarca) faz seu papel de explorar e questionar as imagens na sociedade contemporânea. A festança esconde, mas não anula com sua tecnologia, esse “clube” em crise existencial, aprisionado em ciclos de consumo, excessos que levam à sensação de vazio.

O jogo cênico com imagens gravadas e em tempo real promovem uma realidade nuançada e desafios interpretativos para quem observa ou se posiciona no palco. Muitas chaves são lançadas para quem busca significados. As ferramentas estão no ar.

 E como já pode ser considerado pré-histórico o costume de fotografar e partilhar vivências íntimas em álbuns de família discretamente… A narrativa visual da era digital é uma guerra extenuante e incessante de exposições públicas, cada qual “palestrando” sua saga no vasto anfiteatro digital da contemporaneidade.

O primeiro jorro / A primeira golfada, poucas horas depois da festa-peste saiu assim… Mas sem conectividade e com as memórias cheias dos meus equipamentos, o texto ficou grudado nas barreiras de saída…

Pedro Wagner- Tirésias em primeiro plano. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Desejo de saber: Pestes, enigmas, sinas.

SP, alguns dias após a estreia de Édipo REC

Traduzida como Édipo Rei em algumas versões (Mário da Gama Kury, Lilian Amadei Sais, Trajano Vieira e outros), e intitulada Édipo Tirano na edição publicada pela Todavia em 2017 (com tradução e comentários de Leonardo Antunes), a peça entrelaça incesto e patricídio. Esta, que é uma das mais renomadas tragédias gregas, foi escrita por Sófocles por volta de 429 a.C. e tem sido revisitada e recriada por artistas de diferentes épocas.

A obra explora a jornada de Édipo, rei de Tebas, em sua busca pela verdadeira identidade e pela solução do assassinato do antigo rei, Laio. A trama desvela gradualmente o terrível destino do protagonista, que, sem saber, matou seu pai e se casou com a própria mãe, cumprindo uma antiga profecia.

No artigo Édipo: a encruzilhada fatal, a psicanalista Maria Homem aponta que o texto dramatúrgico de Sófocles pode ser considerado o primeiro grande thriller ocidental, com várias reviravoltas, girando em torno de um crime central. “Quem matou Laio? Fio condutor do suspense. A essa camada se superpõe uma história de investigação de si mesmo, um processo – trágico – de desvelamento de si. O detalhe é que desde o início somos advertidos pelo cego que mais vê, Tirésias, de que o saber pode ser perigoso… [1]”

Édipo e Jocasta em sua festa. Foto: Camila Macedo/Divulgação

Édipo REC, a 15ª montagem do grupo Magiluth reinterpreta a tragédia de Sófocles da perspectiva contemporânea e podemos pensar nos conceitos desenvolvidos por Jean Baudrillard, de que vivemos em um mundo de simulacros – cópias sem originais – onde a distinção entre realidade e representação se tornou borrada. Neste contexto, a “hiper-realidade” substitui a realidade “autêntica”, e os signos e símbolos se tornam mais reais do que aquilo que supostamente representam. Os indícios que nos guiam por esse caminho revelam-se na encenação, que enfatiza os processos de produção na tecnologia, mídia e cultura da imagem.

O espetáculo está dividido em dois atos: o primeiro é uma celebração exuberante que ecoa o excesso de estímulos visuais da nossa era; o segundo apresenta o desenrolar da tragédia inevitável.

O primeiro, com direito a esquenta-festa na temporada paulistana na área de convivência do Sesc Pompeia, começa enquanto o público aguarda para adentrar no teatro. Alguns personagens – Corifeu (Parmera), Coro (Erivaldo), Creonte (Mário Sérgio) e Mensageiro (Lucas) circulam. Os outros personagens só “aparecem” dentro do teatro.

O Coro-drag, equilibrado em suas plataformas e do alto da escada convoca: “Sejamos carnaval. Sejamos essa alegria devastadora embriagada…” para depois cravar “Vamos fazer dessa noite, a noite mais linda do mundo”, um refrão também da música A Noite Mais Linda Do Mundo (A Felicidade), cantada por Odair José, que já faz um diálogo com outra canção popular inserida em Dinamarca, Quando Chegar o Amanhã, gravada por Leonardo Sullivan.

Neste trabalho comemorativo dos 20 anos de trajetória do Grupo Magiluth, a companhia realiza uma retrospectiva artística, tecendo habilmente elementos e temas de seus espetáculos anteriores na trama de Édipo REC. Esse processo de autorreflexão cênica está carregado de  referências sutis e explícitas a produções passadas. A dramaturgia expande as citações, abrangendo desde a mitologia grega até a cultura brasileira.

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Erivaldo, Coro-drag. Foto: Camila Macedo / Divulgação

Ainda no prólogo, o Coro-drag-Erivaldo, entre batidas de leque e toques de sarcasmo, afirma que ninguém poderá ser considerado feliz antes de ter vivido todos os dias até sua morte. Essa ideia constitui um dos pilares de qualquer versão de Édipo, sintetizando uma de suas reflexões mais profundas.

O Coro pergunta, responde, aconselha: “A vida é decepcionante? É decepcionante! Mas é isso que temos! Então finjam ter outra vida…”

O título Édipo REC reporta-se simultaneamente à cidade do Recife e ao ato de gravação (REC). Esta escolha expõe a combinação do mito clássico de Édipo com elementos contemporâneos da era digital, trazendo para a cena as pesquisas do diretor Luiz Fernando Marques – Lubi sobre as intersecções entre teatro e cinema. A obra esquadrinha o impacto da constante documentação e compartilhamento de nossas vidas nas redes sociais e outros meios digitais sobre nossa percepção da realidade e identidade.

Marques, em conjunto com o dramaturgo Giordano Castro e o elenco, desenvolve procedimentos cênicos que desafiam as convenções temporais e espaciais, criando um jogo complexo entre o passado mítico e o presente urbano. A não-linearidade cronológica da montagem aciona um dispositivo questionador da própria natureza do tempo no teatro e na vida.

A festa com o público no palco. Camila Macedo / Divulgação

O cenário transforma o palco em um ambiente frenético de celebração: luzes, fumaça, telões com projeção e música alta, envolvendo a plateia em uma experiência sensorial imersiva. Durante esse momento de “descontração”, muitas pequenas situações são expostas como o chamado para  dançar até os pés ficarem inchados, numa evocação ao nome Édipo ou quando o Coro faz menção a Édipo como elucidador de mistérios, homenageando a figura de Chico Science ao apontar que ele é aquele que fincou uma antena em meio às esculturas de lama e decifrou os enigmas.

A encenação de Édipo REC abraça e explora a noção de simulacro de maneira envolvente. A transformação do palco em uma boate com DJ e interação direta com o público cria uma hiper-realidade que engole tanto atores quanto espectadores. Esta reinterpretação encampa o poder avassalador da mídia e da cultura pop na formação das identidades. 

O uso de tecnologia audiovisual, com câmeras filmando e projetando cenas ao vivo, adiciona uma camada extra. Acompanhamos simultaneamente ao “real” e sua representação mediada. Esta dinâmica se estende à representação de Tebas como um “Recife-Pompéia fantasmagórico”, evocando uma ilusão de comunidade efêmera.

Em meio a esse fluxo, Édipo é coroado. Como diz um personagem: “Ele que é o próprio LSD – Luz, Som e Desejo!”

O jogo é intenso entre o elenco formado por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner, com a participação da atriz Nash Laila. Os personagens Corifeu, Coro, Édipo, Mensageiro, Tirésias, Creonte e Jocasta coexistem com figuras e dilemas contemporâneos.

O Corifeu convida o público a sair do teatro, sob o pretexto de que precisa filmar tudo novamente. Nesse segundo ato, enfrentamos a tragédia em sua essência. Tirésias, o sábio cego, reitera uma das frases mais lúcidas, belas e devastadoras da dramaturgia de todos os tempos: Nunca digas que uma pessoa foi feliz sem que tenha vivido o último dia de sua vida.

Vinte anos se passaram desde aquela grande festa, das juras de amor e da coroação de Édipo. O clima predominante é diametralmente oposto ao do primeiro ato. A peste se alastrou pela cidade, imperando o medo e a desconfiança. Tudo está à beira do abismo.

Essa tragédia festivo-pestilenta convoca para o teatro temas políticos e morais da nossa era. Questões éticas e suas consequências são abordadas, como o célebre episódio do fotógrafo que registrou a imagem de uma criança esquelética espreitada por um abutre. [2]

Parmera, o Corifeu, que capta as imagens. Foto: Camila Macedo / Divulgação

O Corifeu propondo a dancinha juntos na festa. Foto: Camila Macedo / Divulgação

As interrupções constantes do Corifeu (“Corta!”) e as mudanças abruptas de cena enfatizam a artificialidade da narrativa, tensionando qualquer noção de realidade coerente e unificada. 

A intensa interatividade e o uso extensivo de tecnologia podem, por vezes, obscurecer a fluidez e as questões filosóficas fundamentais da tragédia original. Há momentos em que o espetáculo corre o risco de priorizar o secundário. Já a apropriação da violência e do trauma levanta questões éticas sobre a estetização da barbárie no teatro. Um aspecto com muita possibilidade de discussão.

Embora por vezes corra o risco de se perder em seus  próprios labirintos, Édipo REC é um espetáculo tão provocador quanto potente em suas interpretações plurais e singulares. É a montagem que celebra os 20 anos do Grupo Magiluth, prosseguindo um trabalho de pesquisa importante de uma companhia que tem a coragem criativa para não deixar os clássicos intocáveis e mete a mão nessas obras para buscar a pulsação dos tempos atuais.

Lembrei de um espetáculo que assisti no Festival de Avignon, França, em 2023, que, embora não dialogue diretamente em temática com o trabalho do Magiluth, apresenta aproximações interessantes em dois aspectos: a celebração festiva e o uso inovador de recursos de projeção de imagem.

Extinction, dirigido por Julien Gosselin, apresenta-se como uma produção ambiciosa de cinco horas que desafia as convenções teatrais tradicionais. A peça inicia com um concerto de techno de uma hora, durante o qual cerveja flui gratuitamente e o público recebe convites para dançar.

Há uma radicalidade no uso de tecnologia visual em Extinction. Uma tela gigante exibe imagens em preto e branco, pontuando momentos de intensidade dramática. A transição para a representação principal é marcada por uma mudança na técnica de apresentação: os atores são vistos em parte na presença teatral e em imagens filmadas ao vivo e projetadas em preto e branco, com cinegrafistas invisíveis ao público. Baseado em textos de Thomas Bernhard, Arthur Schnitzler e Hugo von Hofmannsthal, o espetáculo explora temas complexos da sociedade vienense e suas reverberações. 

A alegria do primeiro ato. Foto: Camila Macedo/Divulgação.

A sisudez do segundo ato, quando Tirésias passa a real para Édipo. Foto: Camila Macedo / Divulgação

A dramaturgia de Giordano Castro e a cena de Lubi são ricas em intertextualidade, incorporando referências de filmes como Édipo Rex de Pasolini, Funeral das Rosas, de Matsumoto; Hiroshima, mon amour, de Alain  Resnais com roteiro da poeta Marguerite Duras. Além de filmagens num Recife soturno e desolado. Essas imagens, juntamente com outras, oferecem insights para significações e camadas que podem amplificar a recepção.

Há muito o que desenvolver sobre o diálogo entre o teatro e o cinema elaborado na montagem, especialmente a partir da questão lógica espectral e fantasmática dos que retornam da memória de outros tempos, bem como da sensação de solidão em meio a essa comunidade efêmera. No entanto, no momento, sinto-me exaurida. Registro apenas o desejo de retornar a esses assuntos e revisitar Édipo REC por outra perspectiva. Talvez depois de assistir ao espetáculo uma segunda vez, quem sabe.

O Édipo de Castro é arrogante, tirânico, que ostenta sua a húbris [3]; charmoso como alguns déspotas e meio infantil; reconhece por um lado seus traumas, mas ainda quer fazer valer o seu poder através de palavras e gestos, parecendo não entender que as “massas” abandonam os derrotados.

Por enquanto, encerro por aqui constatando que em Édipo REC o corpo assume a cidade numa pulsação alucinante. Levar a peça para a festa consagra o poder de ruptura com o tempo cotidiano, enquanto manifestação minúscula do encontro trágico na Antiguidade. E mesmo que não haja aqui o “incêndio das consciências”, na expressão de Roland Barthes, Édipo prossegue sendo o próprio enigma.

O Mensageiro (Lucas Torres), o amigo de Laio que testemunhou o assassinato. Foto: Camila Macedo / Divulgação

NOTAS

[1] HOMEM, Maria. Édipo: a encruzilhada fatal. In: SÓFOCLES. Édipo Tirano. São Paulo: Editora Todavia, 2017. E-book
[2] A fotografia “O abutre e a menina”, tirada por Kevin Carter em 1993 no Sudão, durante uma grave crise humanitária causada pela guerra civil, tornou-se um ícone do fotojornalismo e desencadeou um intenso debate ético. Carter acompanhava uma missão da ONU quando capturou a imagem de uma criança desnutrida com um abutre ao fundo. A foto, publicada no New York Times, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1994, mas também gerou controvérsia sobre a ação do fotógrafo em não ajudar a criança. Carter enfrentou depressão devido às críticas e ao trauma de suas experiências, culminando em seu suicídio em 1994. Anos depois, descobriu-se que a criança era um menino chamado Kong Nyong, que sobreviveu à fome, mas faleceu adulto em 2006 devido a uma febre.
[3 A húbris ou hybris (em grego ὕβρις, “hýbris”) é um conceito grego que pode ser traduzido como “tudo que passa da medida; descomedimento” e que atualmente alude a uma confiança excessiva, um orgulho exagerado, presunçãoarrogância ou insolência (originalmente contra os deuses)… https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%BAbris
 Na tragédia grega clássica, húbris era frequentemente uma deficiência fatal que causava a queda do herói trágico. Normalmente, o excesso de confiança levava o herói a tentar ultrapassar os limites das limitações humanas e assumir um status divino, e os deuses inevitavelmente humilhavam o ofensor com um lembrete agudo de sua mortalidade. https://www.merriam-webster.com/dictionary/hubris

Serviço:
Édipo REC
Quando: Até 26/10. Quinta a sábado, 20h. Domingos, 17h. Dia 12/10, sábado, 17h. Dia 23/10, quartas, 20h
Quanto: R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada), R$ 18 (credencial plena)
Onde: Sesc Pompeia – Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, SP
Duração: 105 minutos
Classificação etária: 18 anos

Ficha técnica:
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Design Gráfico: Mochila Produções
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Hello, stranger
Crítica de Apenas o fim do mundo

Depois de anos de ausência, Luiz volta à casa da Mãe e de Suzana. Foto: Humberto Araújo

– Boa noite! Entre, seja bem-vindo. Mas não espere ficar muito à vontade. Você pode ser surpreendido com a exposição de uma intimidade que não esperava, desconcertante. Os cumprimentos iniciais aparentam uma suposta formalidade, um distanciamento comedido: “Estou bem. E você, como é que vai você?”. Há, no entanto, palavras que aguardam por serem ditas. Faz anos que estão sendo maturadas. Talvez sejam faladas, num “domingo, evidentemente, ou ainda, ao longo de quase um ano inteiro”, naquele reencontro familiar na casa da Mãe e de Suzana.

O espetáculo Apenas o fim do mundo, do grupo pernambucano Magiluth, é um convite para que sejamos testemunhas. Sabe aquela vontade de, às vezes, se transformar numa mosquinha para presenciar como foi aquela conversa, o que teria sido dito, como a pessoa reagiu, o clima que se instaurou? Na montagem do Magiluth, o compartilhamento da intimidade é consentido e, assim como a mosquinha, neste jogo somos voyeurs, observadores do que acontece à nossa revelia, como se não estivéssemos ali, não fôssemos notados, algo incomum na trajetória do grupo em relação aos espectadores.

Suzana (Bruno Parmera) e Luiz (Pedro Wagner). Foto: Annelize Tozetto

Estamos à porta e somos chamados a entrar e a acompanhar a volta de Luiz, um escritor, filho mais velho da família, que saiu de casa há bastante tempo. A Mãe e os irmãos, Antonio e Suzana, permaneceram. Há também Catarina, esposa de Antonio, que o cunhado só viria a conhecer nessa visita. Luiz nunca tinha voltado, mas agora havia um motivo concreto para o retorno. O escritor queria anunciar que, “mais tarde, no ano seguinte – era a minha vez de morrer”.

Ao longo dos anos, o primogênito, que “nunca esquecia as datas importantes das nossas vidas, os aniversários, fossem quais fossem”, mandava “pequenos bilhetes”, lacônicos, que vinham “sempre escritos em cartões postais”: “Eu estou bem e espero que vocês também estejam bem”. Uma frase que não gera nem ao menos uma expectativa por ser respondida.

Há, portanto, um hiato complexo que abarca dimensões múltiplas que se entrecruzam –tempo, relações, desejos, frustrações, ausências, acusações – para ser descortinado neste reencontro. O texto do francês Jean-Luc Lagarce, dramaturgo e diretor, escrito em Berlim em 1990, e montado pela primeira vez em 1999, quatro anos depois de sua morte, escolhe conceder o foco a cada personagem por vez, promovendo mergulhos verticais em suas subjetividades. Quando decidem falar, em poucos minutos, vislumbramos o que dói, como dói, por que dói. São conversas que se estabelecem geralmente como solilóquios, já que uma das pessoas, Luiz, se coloca como alguém que escuta o que a outra tem a dizer. São discursos longos, com diminutas pausas, quase que para confirmar que o interlocutor ainda está ali, disponível à escuta. Cada fala é um jorro, um fluxo de pensamentos que nos enovela.

Em Curitiba, as sessões de Apenas o fim do mundo foram no Palácio Garibaldi. Foto: Humberto Araújo

Quanto a nós, espectadores, somos desafiados a estar presentes na escuta para não perdermos uma palavra, uma digressão, um instante de hesitação, enquanto esses personagens se esvaziam ao menos do discurso que carregaram por tanto tempo. Terão como resposta um “sorriso” ou “duas ou três palavras”. “E eles se lembrarão, mais tarde, a seguir, na sequência, à noite adormecendo, eles se lembrarão apenas desse sorriso, é a única coisa que vão querer guardar de você, e é esse sorriso que eles vão discutir e discutir de novo”.

Nessa torrente, há um passado idealizado que, diante do correr dos anos, nem sabemos se aconteceu exatamente daquele modo, se era mesmo feliz. É assim, por exemplo, na cena da mãe contando o passeio que a família fazia aos domingos. Quem não tem uma avó, um pai, uma tia, que reconta a mesma história seguidas vezes, como se de alguma forma a lembrança fosse capaz de se materializar? Até que essa lembrança vira melancolia pelo que foi e já não é mais, “como é que podemos saber como tudo desaparece”.

Em consonância com a idealização do passado, a ausência desemboca no desconhecimento e na imaginação. Depois de tantos anos, aquelas pessoas não se conhecem mais, não sabem mais quem são e quais serão suas reações diante do inesperado da realidade do outro. “Ele não muda, eu imaginava ele exatamente assim, você não muda, ele não muda, é assim que eu o imagino, ele não muda, o Luiz”.

São família, são estranhos entre si. Assim como na balada Hello stranger (coloque aí para ouvir no seu tocador de música!) de 1961, da norte-americana Barbara Lewis, que faz parte da trilha sonora, sempre especial nas peças do Magiluth, mas aqui em particular, pelos achados que são dramaturgia. “Hello, stranger. It seems so good to see you back again. How long has it been? Oh, seems like a mighty long time” ou, em português: “Olá, estranho. É tão bom vê-lo novamente. Quanto tempo se passou? Oh, parece ter passado um longo tempo”.

A relação familiar se organiza em torno da matriarca, a única personagem que não tem nome, descrita apenas como a Mãe, como se a sua subjetividade estivesse restrita ao papel materno, encarado de modo coletivo. A quem serve a máxima ‘mãe é tudo igual’? Aqui a Mãe medeia os conflitos, prevê o que vai acontecer, mas não se coloca como autoridade, deixando entrever a sua fragilidade diante do que se desenrola ao redor. “Eles vão querer te explicar e é provável que o façam, e sem jeito, o que eu quero dizer, porque eles vão ter medo do pouco tempo que você dá para eles, do pouco tempo que vocês vão passar juntos”. Uma das cenas mais tocantes do espetáculo é justamente a conversa entre a Mãe e Luiz, quando ela tece uma radiografia precisa da realidade íntima daqueles personagens, dos seus anseios e frustrações. “O que eles querem, o que eles queriam, talvez, é que você os encorajasse – não foi sempre isso que faltou para eles, que a gente os encoraje?”.

A conversa entre a Mãe (Erivaldo Oliveira) e Luiz (Pedro Wagner). Foto Humberto Araújo

Talvez uma das principais qualidades do texto de Lagarce, que é brilhante e aqui o adjetivo cabe sem receios, é que o dramaturgo consegue experimentar a oralidade ao limite, encadeando longos textos de cunho pessoal, íntimo, psicológico. As frases são entrecortadas por tempos verbais distintos, pensamentos que vão se justapondo, que podem ser interrompidos e retomados instantes adiante, logo que eu terminar de falar uma coisinha que lembrei e quero dizer e talvez faça sentido ser dita aqui, assim como se dá numa situação cotidiana. Mas quando isso é levado ao teatro, à efemeridade da experiência única, esse texto se mantém e ganha proporção pela consistência e qualidade para ser compreendido em sua integralidade, proposta desta dramaturgia especificamente.

E esse foi o principal desafio com o qual o Magiluth se deparou: o rigor na enunciação que o texto demanda. O cuidado com as palavras, com os seus significados, sua ordem de encadeamento, com o modo e o tempo no qual elas precisam ser ditas. Foram poucas as montagens nas quais o Magiluth se dedicou a um texto dramático previamente escrito, levando-o tal e qual como escrito ao palco: O canto de Gregório, de 2011, texto de Paulo Santoro, e Viúva, porém honesta, de 2012, em comemoração ao centenário de Nelson Rodrigues. Mas, em ambas, especialmente em Viúva, porém honesta, o registro da encenação, que era o do humor, o do sarcasmo, da ironia, não demandava exatamente rigor na enunciação da dramaturgia.

Nas outras montagens do repertório, textos dramáticos foram utilizados como disparadores para o processo artístico, como em Dinamarca, de 2018, releitura de Hamlet, e Estudo nº1: morte e vida, a partir de Morte e vida severina, ou os atores criaram as dramaturgias a partir de outras referências, mas o trabalho coletivo na sala de ensaio, contemplando inclusive propostas e desejos individuais, sempre foi mais determinante na elaboração dos textos, escritos em processo e, talvez por isso, mais livres de amarras.

Apenas o fim do mundo estreou em abril de 2019, depois de quase um ano de momentos imersivos, entrecortados por meses de distância, de residências artísticas com Giovana Soar, tradutora do texto do francês para o português, atriz à época da companhia brasileira de teatro, primeiro grupo a montar a dramaturgia no país, no ano de 2006; e com Luiz Fernando Marques Lubi, diretor parceiro do grupo desde Aquilo que o meu olhar guardou para você, em 2012, um dos artistas que mais conhece e se alinha com a dinâmica do grupo. Depois de Apenas o fim do mundo, Lubi assinou ainda a direção de Estudo nº1: morte e vida, que estreou em 2022.

Esses momentos com os dois amigos e artistas colaboradores, que assinam conjuntamente a direção da peça, geralmente eram marcados por oficinas e resultavam na apresentação de ensaios ao público, um processo recorrente no Magiluth: a abertura dos trabalhos aos espectadores antes que eles possam ser tidos como “prontos”. No Sesc Avenida Paulista, por exemplo, dias antes da estreia, os oficineiros puderam acompanhar o trabalho de mesa dos atores, de leitura do texto, de entendimento do modo de enunciação que a dramaturgia solicitava.

Esse encontro entre o grupo, Giovana Soar e Lubi era o que o Magiluth precisava para erguer a lindeza que é Apenas o fim do mundo, em toda sua humanidade, delicadeza e proximidade com o espectador. Veio de Giovana Soar o rigor no entendimento e na enunciação do texto de Lagarce e o convite ao espaço íntimo proposto por essas palavras. E de Lubi, com quem o grupo tem a intimidade dos anos de trabalho conjunto, vieram a experiência e a sagacidade com montagens site-specific, amealhada desde a criação do XIX, grupo do qual Lubi é um dos fundadores.

Neste tipo de espetáculo, as montagens são criadas ou se adaptam a lugares que não necessariamente são locais tradicionais de exibição de peças, como teatros. Essas obras dependem da interação com os espaços para que possam alcançar suas potências. No caso do Magiluth, a ideia é que o espectador experiencie esse reencontro entre Luiz e sua família no espaço proposto pela dramaturgia, uma casa. Parte da intimidade que a encenação propõe com o espectador vem do espaço cênico: vamos andando pelos cômodos da casa, acompanhando como se dá cada conversa. No entanto, mesmo assistindo a tudo de muito perto, estando nas bordas da cena, somos voyeurs (a mosquinha, lembra?), não participamos da cena, e por isso o distanciamento, como se não estivéssemos ali.

Em 2019, a peça estreou no 13º e no 14º andares do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo. Apesar de toda a engenhosidade da divisão de cômodos e da cenografia, da beleza da vista da Paulista, mesmo que a encenação fluísse, havia uma compressão. Eram espaços às vezes apertados demais para muitas pessoas assistirem a cenas longas. E era preciso imaginação para visualizar uma casa. No Recife, ainda em 2019, o espetáculo foi apresentado no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e o próprio grupo diz que aquele espaço era o ideal para a peça e que a cena da chegada de Luiz ganhava outra dimensão tendo como vista a Rua da Aurora, o Rio Capibaribe e, ao fundo, a Rua do Sol.

Em Curitiba, a peça ocupou o Palácio Garibaldi, um lindo casarão cuja construção começou em 1887, hoje conhecido como “a casa da cultura italiana em Curitiba”. Ali, o espaço abraçou a encenação, mesmo com todos os deslocamentos necessários, estávamos numa casa, que se não tinha uma geladeira amarela como nas versões anteriores, ostentava um fusca azul na garagem que serviu para uma discussão icônica que terminou com Catarina, a cunhada, sozinha dentro do carro, com uma impagável cara de paisagem. Fato é que o espaço nos fez viver com mais verticalidade a encenação.

Outra questão que pode ser levada em conta quando pensamos nas diferenças entre a estreia, em 2019, e a participação no Festival de Curitiba, em 2024, com seis sessões esgotadas, é o próprio tempo de maturação da peça. Ainda em 2019, o grupo precisou lidar com as especificidades do espetáculo, que dificultam sua circulação, e depois com a parada obrigatória imposta pela covid-19 a partir de março de 2020. Inclusive, naquele ano, eles estariam no Festival de Curitiba com o espetáculo.

Vivemos o fim do mundo, em escala global. Se, de algum modo, a epidemia de Aids que vitimou Lagarce e que mataria Luiz, “alguns meses mais tarde, um ano no máximo”, era o fim do mundo, a covid-19 levou o fim a níveis que não conhecíamos. E os garotos que estavam na faculdade e que criaram um grupo em 2004, depois de uma atividade para uma disciplina no curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), se tornaram homens, alguns são pais, viveram a pandemia e o medo do fim em múltiplas escalas. As dores sobre as quais o texto fala encontraram outros corpos em 2024.

É fundamental dizer que o Magiluth é um grupo formado por homens e que essa é sempre uma questão no momento de escolher um projeto. Em Apenas o fim do mundo, estão em cena Pedro Wagner (que não fazia a peça desde 2019; na temporada que o grupo cumpriu no ano passado no Mamam, ele foi substituído por Edjalma Freitas), Mário Sérgio Cabral, Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Lucas Torres, o único integrante que não possui personagem na peça, assina a assistência de direção, faz todo o apoio técnico da montagem e ainda faz uma participação, entrando em cena para tocar bateria.

Três dos atores interpretam personagens femininas: Giordano Castro é a cunhada, Catarina; Erivaldo Oliveira é a Mãe; Bruno Parmera é a irmã, Suzana. Mário Sérgio Cabral é o irmão, Antonio; e Pedro Wagner interpreta Luiz. A meu ver, a opção sempre perigosa de ter homens interpretando mulheres deu certo porque eles não fazem caricaturas das figuras femininas ou exageram nos gestos e nos trejeitos das personagens.

Giordano Castro é a cunhada, Catarina. Foto Humberto Araújo

Mário Sérgio Cabral é Antonio, o irmão. Foto: Annelize Tozetto

Nesta montagem, o elenco do Magiluth, como grupo, alcança maturidade na atuação. Pedro Wagner tem o domínio do ofício, faz um Luiz cheio de hesitações, que lida com a sua inabilidade para se contrapor às acusações de abandono, mostrando isso ao espectador a partir da expressão silenciosa do seu corpo. Antonio, de Mário Sérgio Cabral, “há muito tempo, é o que eu acho, eu me tornei um homem cansado”, foi se deixando endurecer pelas responsabilidades, e nos traz nuances entre a raiva e o medo de se permitir amar este irmão. O seu último monólogo é um descarrego, cheio de força e humanidade.

Giordano Castro faz uma Catarina comedida em gestos, de língua afiada e intervenções certeiras que se expressam no corpo. Erivaldo Oliveira é o que talvez mais se apoie no gestual na construção dessa Mãe que lê a todos, que lida com as imperfeições de cada um, inclusive com as suas próprias, e que mesmo assim é afeto. “Ela, ela me acaricia uma única vez o rosto, lentamente, como para me explicar que ela me perdoa não sei bem quais crimes”. E Bruno Parmera é uma Suzana eufórica com o reencontro com Luiz, que nos deixa tontos, mas que tem respiro para se auto traduzir ao irmão.

A maturidade, que é da própria trajetória como artistas, traz o autoconhecimento do que eles gostam e se permitem experimentar em cena. E, por isso, está lá, no meio da peça, uma banda de rock em decibéis altíssimos, como que para mostrar que o espírito, em si, permanece o mesmo de Viúva, porém honesta. Naquela tensão discursiva, é uma catarse que nos surpreende e captura.

De repente, uma banda de rock. Foto: Annelize Tozetto

Ao comemorar 20 anos em 2024, o Magiluth envereda na vivência dessa família com muito mais propriedade. Eles próprios são família, possuem laços, estão criando os filhos nessa comunidade que é um grupo de teatro. E isso é poderoso, na arte e na vida. Quando se tratam, na vida corrente, por “minhas queridas irmãs”, uma herança tchekhoviana que restou de O ano em que sonhamos perigosamente, o espetáculo que talvez seja o mais emblemático para a continuidade do grupo, revelam o afeto construído ao longo de duas décadas que permite projeção de futuro.

O espetáculo Apenas o fim do mundo foi apresentado nos dias 3, 4 e 5 de abril de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Ficha técnica:
Direção: Giovana Soar e Luiz Fernando Marques Lubi
Assistente de direção: Lucas Torres
Dramaturgia: Jean-Luc Lagarce
Tradução: Giovana Soar
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner
Técnico: Lucas Torres
Desenho de luz: Grupo Magiluth
Direção de arte: Guilherme Luigi e Luiz Fernando Marques Lubi
Design gráfico: Guilherme Luigi
Realização: Grupo Magiluth

Apenas o fim do mundo em Curitiba. Foto: Humberto Araújo

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Manifesto Transpofágico em Paris
e o Festival Everybody 2023

Renata Carvalho apresentou espetáculo Manifesto Transpofágico em Paris, . Foto: Rodrigo Fidelis

Duas sessões esgotadas. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

Poderia começar esse texto de muitas maneiras. A partir da recepção calorosa do público francês ao Manifesto Transpofágico. Com foco no crescimento da atriz Renata Carvalho desde a estreia da peça em 2019. Pelo que estava fora da cena (e nem tanto), do recrudescimento de atos antidemocráticos no Brasil ao recente horizonte humanitário com a volta de Lula. Por avanços na luta trans, que repercutem no palco. Existem caminhos e escolhas, sem garantias no caso do meu texto.

No trecho de um dos vídeos (um dos documentos) do espetáculo, uma frase ficou ecoando na minha cabeça nessa temporada parisiense, talvez porque sintetize a extensão e profundidade da violência contra os corpos trans: “cortei um braço… é pouco; corte o outro… é pouco, corte o pescoço”. É um depoimento de Bartô a Goulart de Andrade e Andrea de Maio, uma reportagem sobre a “Casa da Bartô”, de 1985, em que ela fala sobre aplicação de silicone industrial em travestis e como utilizava automutilação com gilete para defesa quando eram presas por abuso de poder policial.

Manifesto Transpofágico conta breves histórias de violências. Mesmo com cenas tocantes e outras engraçadas, a peça pinta um Brasil agressivo e ameaçador contra corpos trans, de ontem e de hoje. E expõe o quanto o mundo é atrozmente transfóbico. São e serão necessárias mais mudanças e garantias de direitos.

Solo com dramaturgia de Renata Carvalho e direção de Lubi. Foto: Rodrigo Fidelis

O Brasil se “acabava” no Carnaval 2023, num quase desespero de alegria depois da suspensão da festa pela pandemia e do alívio de se livrar do traste-ruim. Em Paris, pouco afeita aos delírios carnavalescos, no Carreau do Temple, Renata Carvalho, atriz trans militante e transpóloga conduzia sua performance solo e ensinava / alumiava umas coisinhas sobre os malefícios da cisnormatividade, do patriarcado, da exclusão histórica, da hipersexualização, da perseguição e brutalidade contra às pessoas trans.

As duas apresentações do Manifesto Transpofágico, faladas em português com legendas em francês, em sessões lotadas nos dias 20 e 21 de fevereiro, fizeram parte do Festival Everybody 2023.

Renata Carvalho traça um breve panorama da construção social e das representações de mulheres trans a partir da sua própria experiência. De menino saco-roxo, passando pela rejeição dos pais e a transformação do seu próprio corpo, uma invenção à base de desejos inabaláveis e silicone industrial.

Sozinha no palco, usando apenas uma calcinha justa, ela relata a guerra entre seu corpo e os olhares curiosos, inquisidores, desejosos, questionadores, a sempre querer arrancar pedaços simbólicos. Quase no escuro, sua voz anuncia um ajuste, enquanto convida a plateia para a sessão de transpofagia, a mirar – com a ideia de comer e digerir – seu corpo trans. “Meu corpo estava lá antes de mim, quando eu não tinha pedido nada. Ele é mais velho do que eu”, confessa, para destacar que “Hoje resolvi me vestir na minha própria pele”.

Essa pele que ela habita é esquadrinhada pela dramaturgia da iluminação, que retira o rosto dessa moldura. O corpo de Renata está recortado por luz e sombra. Os letreiros luminosos “gritam” obsessivamente a palavra “TRAVESTI”, que saltam do azul ao rosa choque, entre outras cores. As histórias são pesadas, de crueldades e humilhações. Mas ao falar de si, a atriz amplia seu foco para outras vivências semelhantes, para sua ancestralidade trans.

Corpo-desejo que persegue a essência do ser e não aceita as jaulas sociais. Estar em desacordo é ir à luta para se tornar protagonista de sua própria existência. A artista relata esses fatos em palavras simples, em episódios pontuais e compreensíveis, com franqueza, honestidade e coragem.

Corporeidade-história repleta de significações entregue praticamente em estado cru para o escrutínio da plateia. Mas há um preço para isso, cobrado mais sutilmente na primeira parte do espetáculo e mais diretamente na segunda, da consciência da transfobia de cada uma que contempla sua estampa.

Foto: Rodrigo Fidelis

Na peça as 3 uiaras de sp city, a dramaturga Ave Terrena Alves avisa, a quem interessar, que as personagens Miella e Cínthia devem ser interpretadas por atrizes travestis / mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047. O texto é dedicado às travestis / mulheres trans de ontem e hoje, que lutam para existir.

Cito esse drama musical da Ave Terrena (que esteve em cartaz no CCSP em 2018) porque episódios da perseguição do Estado a homossexuais, travestis e prostitutas nos idos dos anos de 1970 e 1980 são retrabalhados artisticamente na peça. E também pela luta contra o transfake. Renata Carvalho é uma das fundadoras do Movimento Nacional de Artistas Trans- MONART, onde foi criado o Manifesto Representatividade Trans, com o objetivo de garantir que personagens transgénero sejam interpretados por artistas transgénero.

Algo avançou nesse terreno, mas é uma luta constante. Desde a infância é preciso enfrentar uma sociedade transfóbica, que faz um jogo canalha de glamourizar, capitalizar narrativas e até matar real ou simbolicamente. No Brasil isso ganha uma proporção gigantesca, já que o país lidera vergonhosamente o percentual de assassinatos, 40% do total mundial de pessoas trans. Há também o número alto de suicídios, por rejeição da família, dificuldade de sobrevivência, insegurança de toda ordem.

Para existir é preciso que as histórias não sejam apagadas, que elas sejam contadas e recontadas. E Renata vale-se de arquivos documentais para fazer uma leitura crítica da trajetória cultural das travestis brasileiras. Sua transcestralidade que reconhece muitas que vieram antes, como Rogéria, Roberta Close e muitas outras.

O lugar social que ela ocupa é fortalecido por sua atuação como transpóloga, uma rama da antropologia que ela mesma criou, um estudo científico, teórico, etnográfico, epistemológico e empírico sobre sua “Transcestralidade” – uma antropologia trans, uma travesti que estuda o corpo travesti/trans, sua historicidade, transcestralidade, identidade, memória com foco nas artes.

Seu teatro é vivo e pulsante, humanamente imperfeito, com cargas da sujeira feito o rock, longe de qualquer ideia de alta cultura, beleza e bom gosto cis. Suas peças, como suas pesquisas, são atravessadas por reflexões e vivências da vida que reverberam no palco. Isso desde o questionamento da identidade de gênero em 2012, com espetáculo Em mim vive outra. Passando pela complexa e tumultuada atuação em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, um texto de Jo Clifford, onde interpretava Jesus de Nazaré. Como o Evangelho veio a projeção, reconhecimento, mas também proibições, censuras, violações de direitos, ações judiciais, ataques, ameaças de espancamento e morte, linchamentos virtuais e a manifestação brutal de ódio contra o corpo travesti.

Vânia Munhoz fez a tradução. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

A segunda parte do espetáculo é na plateia. É o jogo direto com o espectador, performance ardente e cada sessão é única, depende das respostas, das disponibilidades dos depoimentos. Renata Carvalho pergunta sobre a relação estreita daquele grupo com o corpo, grau de conhecimento e afetividade, se existe alguém na família, como é a relação.

Ao fazer uma enquete com a plateia para saber quantos homens cis já ficaram publicamente com uma pessoa trans, a atriz desenvolve uma sequência lógica para dar o xeque-mate na fragilidade cisgênera.  Do medo de perda de potência, do receio de virar o que não é e outras geleias na subjetividade.

Essa segunda parte da peça  Manifesto Transpofágico é sempre surpreendente, é uma energia viva a questionar as violências da genitalização do gênero. Como já pontuou Dodi Leal, uma artista gênero-desobediente, a definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica.

Nas turnês ao exterior, a produção da corpo Rastreado procura convidar uma travesti do local. No caso de Paris a tradução ficou por conta de Vânia Vênus Munhoz Pereira.

Aqui vale um parêntese: Vânia Munhoz é uma brasileira radicada na França há 34 anos. Parte de sua história está no livro Ricardo e Vânia, de Chico Felitti, publicado pela editora Todavia. Ricardo, que virou uma lenda urbana e circulava pela região das ruas Augusta e Paulista, no centro de São Paulo, trabalhava na distribuição de panfletos, era conhecido como Fofão da Augusta. O destino dessas duas figuras se encontrou nos anos 1980, quando elxs moraram juntes e aplicaram silicone na face. Ricardo morreu em 2017 depois de falar por videoconferência com o amor da sua vida. Interessados em saber mais dessa história, o livro está disponível nas livrarias e já tem os direitos comprados para virar filme.

Nessa tradução ao vivo, a atriz pergunta ao público e depois dá sua explicação de alguns termos, como cisgênero (“Se você não sabe o que isso significa, com certeza você é!” ) ou “passável”. Na primeira apresentação, incentivados pela artista, algumas pessoas deram seu depoimento da experiência de ter alguém trans na família.

Na sessão do segundo dia alguém respondeu que havia diferenças na acepção da palavra travesti no francês e em português. Bom de qualquer forma o público que acompanhou o festival é não desavisado. Se o médio francês já é bem sabido, o que opta por ir a um evento LGBTQIA+ já está bem-informado dos estudos de gênero No primeiro dia, por exemplo, Renata conheceu uma jovem pesquisadora que faz mestrado sobre o seu trabalho cênico.

Os franceses não toparam passar a mão no corpo da Renata. A atriz reforçou seu discurso sobre a consciência de que o corpo das mulheres, das trans, das travestis, o cabelos dos negros, a barriga das gravidas não são mercadorias para se pegar e apalpar num impulso, sem autorização.

Os parisienses estão numa classe mais adiantada. Além disso, ao que parece, os franceses são treinados desde a infância a serem palestrantes, eles têm argumentação para tudo. E os registros do preconceito na gramática, nos hábitos dos países de primeiro para outros subdesenvolvidos mudam. Sutilezas e ironias. Sigamos.

Renata Carvalho é uma presença perturbadora, a atravessar os rumores da língua, a dizer de condições a que foram/são submetidos corpos com o seu pela sociedade. Um solo para rodar o mundo.

Com Renata Carvalho
Luz: Wagner Antônio
Direção: Luiz Fernando Marques
Vídeo: Cecília Lucchesi
Tradução: Vânia Vênus Munhoz Pereira
Operação de luz: Juliana Augusta
Produção: Corpo Rastreado

 

Onironauta de Tânia Carvalho. Foto: Laurent Philippe / Divulgação

A segunda edição do Festival Everybody durou cinco dias, de 17 a 21 de fevereiro de 2023, no Le Carreau du Temple, em Paris, um evento que juntou propostas artísticas que pensam e movimentam o corpo, questionando estereótipos de várias naturezas. Além dos espetáculos, o Everybody contou com aulas de dança e de bem-estar, instalações de arte contemporânea e encontros para públicos variados.

Além do Manifesto Transpofágico, destaco três espetáculos. A ousadia estética de Onironauta de Tânia Carvalho, a alegria festiva em Happy Hype, dos Ouinch Ouinch x Mulah e a delicadeza de uma dança de cuidado em Formes de vie, do coreografo Éric Minh Cuong Castaing.

A coreógrafa e bailarina portuguesa Tânia Carvalho é internacionalmente conhecida por suas ousadias e desassossego com os muros erguidos entre linguagens artísticas. Quando quer, flerta e namora com a música, artes visuais e cinema. Título do trabalho de Tânia Carvalho, Onironauta (do grego óneiros, sonho + náutés, navegante) é uma pessoa que pode permanecer em um estado de consciência enquanto sonha. Dessa maneira, é capaz de se mover dentro dos sonhos como se fosse a própria realidade, conhecido como “sonho lúcido”.

Em cena, dois pianos tocados por Tânia e o pianista Andriucha e mais sete bailarinos. Esse estado dos sonhos tem muito de surreal, imagens de abismos e visão do paraíso. Navegamos entre luz e a escuridão. por um percurso estranho, desenhos desconcertantes. A provocação estética está embaralhada de vocabulário clássico e outras danças identificáveis ou não um tsunami de movimentos que desafiam as ideias de beleza. Há uma repetição bem-humorada, quebras e invasão estridente dos pianos. Sonhos estranhos fantasmagóricos e cheios de fúria.

Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH Foto Ivana Moura

Mulah comanda o som eletrizante de músicas afro e hip-hop na peça Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH, que se instalou no grande salão do ginásio. No plateia crianças, jovens famílias inteiras. No palco, o grupo a exercita a liberdade dos corpos que se encontram e se agarram na pista, que se abraçam e fazem coreografias insinuantes. Um chamamento de uma energia coletiva, que se transformou em festa no final.

Equipe do espetáculo Forma(s) de vida Foto: Ivana Moura

O trabalho assinado pelo designer, coreógrafo, diretor Eric Minh Cuong Castaing desenvolve um sensível processo entre o mundo do cuidado e o mundo da arte. Forma(s) de vida, uma peça em que corpos com problemas de mobilidade e corpos performáticos se combinam para realizar uma dança própria.

Kamal Messelleka, um ex-boxeador, que perdeu a força das pernas após um derrame, e Elise Argaud, que sofre da doença de Parkinson, tem a memória de seus corpos reativada. No palco estão Yumiko Funaya, Aloun Marchal, Nans Pierson.

As projeções de vídeos das caminhadas na natureza, ou dos exercícios de fortalecimento expõem as dificuldades, as dores, a insistência. E brota um poder estético nesse tentar, e falhar, e tentar de novo, um desenho, um arco, uma pulsação.

Com o auxílio dos coreógrafos como próteses humanas, o ex-boxeador e a bailarina ampliam os movimentos, criam uma poética, expressam um jeito de estar no mundo. O tempo é expandido na repetição, no ralentar do gesto. A força de criar arte se apresenta na esteira de um profundo respeito à vida.
 

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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