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Fragmentos da solidão gay
Crítica de Bicha Oca

Rodolfo Lima, como Alceu, em Bicha Oca, Foto: Ivana Moura

A dramaturgia reúne textos de Marcelino Freire

Só conheci a Bicha Oca 15 anos após sua estreia, no Espaço Extranho, situado na rua Barbara Heliodora, na Lapa, São Paulo. Minha curiosidade foi aguçada pela reputação da peça, que  tem como base os textos de Marcelino Freire. Considerando o longo percurso da peça, questionei-me sobre sua relevância em 2024. Afinal, o cenário LGBTQIA+ passou por diversos avanços (e reposicionamentos) desde a estreia do espetáculo. Será que Bicha Oca ainda teria algo a dizer ao público contemporâneo?

A resposta é sim. Bicha Oca mantém sua relevância, trabalhando com franqueza temas cruciais: a dignidade da população LGBTQIA+ idosa e os direitos humanos de indivíduos  em situação de vulnerabilidade econômica. A peça destaca que, mesmo com avanços sociais, a luta por igualdade e respeito continua. Isso é especialmente válido para aqueles que enfrentam uma tríplice vulnerabilidade: idade avançada, orientação sexual divergente da heteronormatividade e situação econômica precária. Em uma sociedade impregnada de preconceitos, Bicha Oca atua como lembrete das batalhas que ainda precisam ser travadas pela comunidade LGBTQIA+.

Criada pelo Núcleo Teatro do Indivíduo e dirigida por Rodolfo Lima, a peça adapta contos homoeróticos de Marcelino Freire, tecendo um relato que explora o universo arredio, impiedoso e aterrorizante da velhice gay. No centro desta trama está Seu Alceu, um homossexual de comportamento arcaico, que revisita seu passado, expondo as crueldades e isolamentos de sua existência.

A adaptação está calcada nos contos A volta da Carmen Miranda, Coração, Meus amigos Coloridos e Os Atores, além do micro conto inédito Seu Alceu. Esta colagem literária reverbera os práticas dos homossexuais, expondo mudanças entre passado e presente.

Alceu emerge como uma figura peculiar e o ator explora com seu físico – calvície incipiente e pelagem esparsa adornando seu torso e abdômen – e gestos as marcas do tempo e das decepções. Sua presença na cena é marcada por um olhar crítico e desencantado sobre a sociedade que o circunda, encarnando a melancolia e a decadência. Sua solidão é amplificada pela ausência deliberada de qualquer trilha sonora reconfortante.

O protagonista cita hábitos da comunidade gay, explorando cenários emblemáticos das rotinas dos encontros furtivos na Praça da República, das interações veladas em salas de cinema e dos contatos efêmeros nos transportes públicos. O conceito da “bicha oca” é personificado de maneira complexa: uma entidade simultaneamente extravagante, cômica e profundamente melancólica.

Como uma ilha de anacronismo, Alceu sustenta o descompasso com o hoje e apresenta um discurso deslocado em uma época onde a comunidade LGBTQ+ conquistou visibilidade e direitos. Sua inadaptação aos novos paradigmas sociais pulsa no confinamento em sua própria casa, que reflete sua alienação do mundo exterior.

Rafael Rudolf, de costas, representa o corpo jovem e desejável. Foto: Ivana Moura

Ao longo de seus 15 anos de trajetória, a peça passou por diversas interações, com Rodolfo Lima trabalhando com vários atores jovens e incorporando suas contribuições à versão final. A atual parceria com Rafael Rudolf traz um teor mais afetivo à produção, explorando a dinâmica complexa entre um corpo jovem e uma “bicha velha”.

A entrada de Rafael – e dos outros atores nas temporadas anteriores – marca um ponto de inflexão crucial no espetáculo. Até então, Alceu havia exposto exaustivamente sua solidão, a nostalgia pelos tempos de juventude e suas críticas mordazes ao comportamento contemporâneo da comunidade gay. Sua miséria existencial e material havia sido esmiuçada a ponto de quase esgotar a paciência do espectador. Neste momento crucial, o jovem Rafael surge como uma aparição quase etérea – uma projeção do desejo de Alceu ou talvez a materialização de um sonho há muito acalentado. Sua presença catalisa uma transformação na narrativa, introduzindo novas camadas à trama.

O relacionamento entre Alceu e Rafael é permeado por contradições que espelham questões profundas do universo LGBTQIA+. Oscila entre momentos de ternura genuína e dinâmicas claramente tóxicas, oferecendo um retrato nuançado das complexidades das relações intergeracionais na comunidade gay. Esse entrosamento poliédrico serve como um microcosmo, refletindo e amplificando diversas questões pertinentes ao mundo LGBTQIA+: o culto à juventude e a marginalização dos mais velhos, a dinâmica de poder em relacionamentos com grande diferença etária, o conflito entre diferentes gerações e suas visões de mundo, e a busca por conexão emocional em um ambiente muitas vezes hostil. Através deste relacionamento contraditório e caleidoscópico, o espetáculo consegue levantar, de forma sutil e impactante, uma miríade de temas relevantes, proporcionando uma reflexão profunda sobre as complexidades e desafios enfrentados pela comunidade LGBTQIA+ em diferentes fases da vida.

Bicha Oca chega ao Recife para apresentações na Escola Pernambucana de Circo nos dias 3 e 4 de outubro, às 20h, em um espaço com capacidade para 80 pessoas. Já no Espaço Cênicas, as apresentações serão nos dias 6 e 7 de outubro, às 18h e 20h, respectivamente, com ingressos a R$50 (inteira) e R$25 (meia), para um público de até 60 pessoas.

Nesses 15 anos de trajetória, Rodolfo Lima já trabalhou com 10 atores jovens. Foto: Ivana Moura

O final dessa versão com Rafael Rudolf tem uma conotação mais afetivas. 

O espetáculo navega por temas como a volatilidade dos relacionamentos, a busca incessante por conexão, o espectro do envelhecimento e as nuances menos glamourosas da experiência homossexual. “Pegação”, encontros casuais, práticas sexuais específicas e a realidade de um corpo em declínio são expostos sem filtros, expondo verdades incômodas, mas necessárias.

Esta produção teatral encara o desconforto, abraça-o, apresentando as mazelas da comunidade gay com coragem. A dramaturgia ousada flerta com o ridículo, com o grotesco.

Em essência, Bicha Oca é um exercício de desconstrução e reconstrução. Desafia percepções, quebra tabus e tece uma narrativa que ressoa profundamente com as experiências vividas e imaginadas da comunidade LGBTQ+. Reflete as camadas mais profundas e por vezes dolorosas da existência gay contemporânea, oferecendo uma experiência teatral que permanece impactante.

Ficha técnica
Bicha Oca a partir do originais de Marcelino Freire
Direção e adaptação: Rodolfo Lima
Elenco: Rafael Rudolf e Rodolfo Lima
Concepção Geral: Núcleo Teatro do Indivíduo
60 minutos
18 anos
Produção local: Rodrigo Dourado
Design Gráfico: Betinho Neto
@teatrodoindividuo

SERVIÇO

Bicha Oca no Recife
Escola Pernambucana de Circo (Avenida José Américo de Almeida, 05 – Macaxeira – Recife)
Quando: 03 e 04 de outubro de 2024, às 20h (ambos os dias)
Ingressos: R$30 (inteira) e R$15 (meia)
Capacidade: 80 pessoas
@escolapecirco
Link para compra antecipada:
03/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-03-10/2633756
04/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-04-10/2633785

Espaço Cênicas Rua Vigário Tenório 199 Edf. Álvaro Silva Oliveira 2º andar 201 – Recife Antigo)
Quando: 06 de outubro: 18h e 07 de outubro: 20h
Ingressos: R$50 (inteira) e R$25 (meia)
Capacidade: 60 pessoas
@espacocenicas Link para compra antecipada:
06/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-06-10/2633760
07/10: https://www.sympla.com.br/evento/bicha-oca-07-10/2633801

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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