Atores ainda precisam recorrer a outras atividades profissionais, mesmo que relacionadas à arte, para sobreviver
1943, Rio de Janeiro. Foi o polonês Ziembinski o diretor do primeiro sucesso de Nelson Rodrigues no teatro – Vestido de noiva. Exigia uma dedicação espartana dos atores de Os Comediantes. Segundo Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues, o elenco era formado por funcionários públicos, advogados, jornalistas, bancário, contador. No Recife, os atores do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) também conciliavam carreiras profissionais que não necessariamente tinham relação com a arte. Reinaldo de Oliveira, por exemplo, protagonista e diretor de diversas peças da companhia, é médico. Nos dois casos, os grupos eram amadores. No teatro profissional, no entanto, nem sempre a realidade – mesmo tantos anos depois – é diferente.
O ator pernambucano Sóstenes Vidal participou ano passado das gravações de Preamar, que deve estrear no segundo semestre na HBO. Na série, primeiro projeto longo de ficção da produtora Pindorama, com direção de Estevão Ciavatta, Vidal interpreta o porteiro de um prédio em Ipanema. Mas não é só como ator que Sóstenes Vidal, que participou de programas e séries como Amazônia e Malhação – e ainda do filme Lula, o filho do Brasil –, sobrevive. Ele é corretor de seguros. “Na realidade, sempre trabalhei com vendas. No teatro, eu não só atuava, mas produzia e vendia os espetáculos para escolas, montava espetáculos de fim de ano. Mas mesmo trabalhando como corretor, nunca deixei de fazer teatro. O espetáculo Auto da Compadecida, por exemplo, é apresentado há 20 anos”, conta o ator que interpreta João Grilo na montagem pernambucana do texto de Ariano Suassuna que tem produção de Socorro Rapôso e é ainda um dos Mateus em O baile do menino Deus, auto de Natal escrito por Ronaldo Correia de Brito e Francisco Assis Lima.
Sóstenes Vidal conta que não é difícil conciliar as carreiras, já que “como corretor sou um profissional autônomo. Não tenho que dar satisfação a patrão, respeitar um horário fixo, apesar de ter que cumprir uma meta. Mas quando eu não ganho dinheiro com teatro, ganho com seguros”, explica. Ainda assim, ele admite: “você não tem aquele tempo todo de construir o personagem, de se dedicar ao texto como queria”.
Profissionalmente, Germano Haiut, 74 anos, precisou fazer a opção entre o teatro e o comércio. “Eu brincava que eu era artista durante o dia e ator à noite. Quando a gente montou Jogos na hora da sesta, no Teatro de Amadores de Pernambuco, a temporada foi até um período de dezembro. E eu dizia: ‘Geninha (Geninha da Rosa Borges, que era a diretora), não posso chegar essa hora, às oito horas, porque a loja ainda fica aberta’. E a loja era atrás do Cinema São Luiz, no Centro do Recife. Aí eu tinha um táxi me esperando e, quando dava determinada hora, eu dizia que ia ao banheiro. Pegava o táxi, Geninha ficava me esperando na porta do teatro, eu trocava de roupa na coxia, o espetáculo já tinha começado e eu entrava em cena! Mas não deixei de ir nenhuma noite”, relembra.
Com mais de 20 peças até a década de 1980, Germano diz que o seu primeiro cachê foi quando interpretou o papel de Herodes, na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, em 2003. “Lembro como se fosse hoje: R$ 1.500. Fiquei feliz!”. Hoje, o ator que participou de filmes como O ano em que meus pais saíram de férias, dedica-se mais ao cinema. “A negociação geralmente depende de quanto tempo vou ficar fora do Recife. No teatro isso é mais difícil, não dá para marcar ensaio, comprometer um grupo se, de repente, por conta da vida comercial, preciso viajar”, explica.
Paula de Renor, atriz e uma das produtoras do festival pernambucano Janeiro de Grandes Espetáculos, atesta que é mesmo difícil sobreviver só de teatro: “Não se vive só de atuação”. Ainda assim, enxerga avanços: “Antigamente, as pessoas se dedicavam a outras profissões. Hoje, estão buscando possibilidade dentro da própria cadeia das artes cênicas. Estão fazendo produção, dando aula”. Para Paula, uma das saídas é a organização do teatro de grupo. “Procurando subsídios, incentivos, parcerias. E algumas leis já possibilitam a manutenção de grupos. Mas, ainda assim, é complicado. Porque, às vezes, quando o grupo não consegue o edital, se dispersa”, avalia.
Não foi o que aconteceu com o coletivo teatral pernambucano Magiluth, que tem oito anos de estrada e nunca foi aprovado no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) ou no Fomento às Artes Cênicas da Prefeitura do Recife. Ano passado, eles participaram do Rumos Itaú Cultural Teatro e, durante seis meses, fizeram intercâmbios e um processo de trabalho continuado com o grupo Teatro do Concreto, de Brasília. “Com esse projeto, tivemos a possibilidade de sobreviver só de teatro, mesmo com um orçamento mínimo. Mas a lógica é que o ator precisa passar o dia na repartição, na sala de aula e, à noite, vai trabalhar ensaiando”, diz o ator e diretor Pedro Vilela.
“Sei que fazemos parte de um recorte muito específico, por conta da idade, já que dos compromissos financeiros. Não sei por quanto tempo vamos conseguir. E olhe que já teve um momento em que até pensamos em parar as atividades. Estamos agora aprendendo com um processo da autogestão, fazendo articulações com outros grupos. Mas é uma mudança de mentalidade. A nossa atividade não consegue sobreviver por ela mesma; e é papel do estado desenvolver esse sistema”, alega.
A atriz Lívia Falcão diz que optou por permanecer no Recife mesmo que, no Rio de Janeiro, com a proximidade das emissoras de televisão, a realidade para os artistas parecesse mais fácil. “Não é um problema do mercado pernambucano. É a centralização das grandes empresas que cria isso em todo o país. Eles não contam com a mão de obra das outras regiões. Para ter trabalho na televisão, precisa estar lá. O Brasil inteiro sofre com isso, porque cada região tem o seu potencial, os seus artistas, diretores, produtores”, diz.
A pernambucana que fez sucesso, por exemplo, como Francisquinha, namorada do cabo Citonho (Tadeu Mello) no filme Lisbela e o prisioneiro; e como Regina da Glória na novela global Belíssima, atesta que são vários os fatores que contribuem para que ela continue morando em Pernambuco. “É aqui que eu me abasteço artisticamente. Os mestres da cultura popular estão aqui pertinho. Fico muito feliz de ir a Glória do Goitá e ver o mestre Zé de Vina”.
A atriz conta que a Duas Companhias, que mantém em parceria com a atriz Fabiana Pirro, é uma possibilidade de experimentar. “É uma tarefa árdua convencer o patrocinador de que a arte é importante. Por outro lado, cada vez mais tenho vontade de correr atrás dos nossos sonhos. Sempre tive a certeza de que não queria estar encostada no emprego. E isso depende da forma como cada um encara a sua profissão”. Apesar de a publicidade fazer parte do cotidiano de muitos artistas no Recife, Lívia conta que, ano passado, “fiz alguns poucos comerciais. Vivo mesmo do trabalho da companhia”.
Além da publicidade, outra possibilidade clara – embora esporádica – para os artistas pernambucanos é o cinema. “De alguma forma, a ponte entre o cinema e o teatro sempre existiu, mas agora está muito mais clara. Mas só temos três, quatro produções longas-metragens por ano, então geralmente não dá para viver só de cinema”, explica o produtor de elenco Rutílio Oliveira, que trabalhou ainda mais de perto com atores de teatro nas gravações do longa Tatuagem, primeiro de Hilton Lacerda. “O universo do filme era o teatro, então o elenco tinha mesmo muitas pessoas do teatro. Mas as produções normalmente agregam esses profissionais. É uma realidade que serve inclusive como aprendizado”, avalia. Para o produtor, uma das opções para preparar melhor os profissionais que vão trabalhar com cinema – e aí essa realidade nem é específica para atores – é levar estudantes ao set de filmagem. “As pessoas fazem um curso de cinema e não sabem bem o que é um set”, diz.
Emprego, no entanto, não é o único problema para aqueles que se dedicam às artes cênicas. Para Paula de Renor, é preciso primeiro haver formação de plateia – já que durante os festivais o público é incentivado pela divulgação, pela quantidade de atrações, e comparece aos teatros, mas essa nem sempre é a realidade, quando as produções locais entram em temporada. “Precisamos de boas casas de espetáculos, com equipamentos adequados, para que a qualidade técnica dos espetáculos melhore; precisamos de um curso superior de artes cênicas. Como não temos, as pessoas acham que podem aprender no palco, com o tempo, e pelo contrário, o tempo só solidifica vícios, erros”, diz. Paula explica que a existência de um curso superior, pleito antigo dos artistas da cidade (já que o curso disponível na Universidade Federal de Pernambuco forma arte-educadores), está no centro da questão sobre a engrenagem das artes cênicas em Pernambuco. “Quando existe uma escola superior, existe efervescência, público e vamos construindo um mercado e a independência do dinheiro público. Vira negócio, mercado e aí começam a surgir empregos para toda a cadeia”, avalia.
Pedro Vilela, por outro lado, acredita que os artistas precisam se organizar para conseguir melhorias para a classe e, consequentemente, para o público, que poderá acompanhar nos palcos as mudanças. “A grande luta de todos os coletivos, em todo o Brasil, em tentar emplacar leis de fomento que dêem conta de suas produções locais e que abarquem a manutenção dos coletivos teatrais. No Brasil, podemos dizer que São Paulo é o local mais avançado nessa questão”.
(Texto publicado na revista Continente do mês de fevereiro)