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Humor afiado mira gordofobia
Crítica de 116 Gramas: peça para emagrecer

Atriz Letícia Rodrigues desafia os padrões de beleza impostos ao compartilhar conflitos e indignações. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

116 Gramas: peça para emagrecer é um monólogo inspirador que afronta e combate a gordofobia na sociedade. Com foco na vivência da atriz Letícia Rodrigues, o espetáculo traça uma delicada e complexa relação entre corpo, identidade e autoaceitação.. A personagem “A Gorda” propõe uma reflexão sobre como a pressão para se adequar a normas de beleza irreais podem afetar profundamente a vida das pessoas. A meta de emagrecer a cada sessão 116 gramas, aparentemente insignificante, estampa a constante preocupação com a balança. Essa fixação demonstra a coação social para que as mulheres controlem obsessivamente seus corpos e hábitos alimentares, muitas vezes em detrimento de sua saúde mental e bem-estar.

Para explorar os mecanismos de perpetuação da opressão contra as gordas, problematizando as normas restritivas impostas pela mídia e indústria da beleza, a protagonista compartilha sua história de tentativa e falha em se conformar às medidas impostas. Nessa jornada emocional e introspectiva, ela utiliza elementos de performance, projeção e interação.

A encenação estabelece um tom confessional e íntimo, utilizando a busca de se parecer com ícones como Britney Spears e Gisele Bündchen para criticar a obsessão com a magreza e a pressão para se encaixar em moldes inatingíveis. 

Logo no prólogo, a personagem revela de maneira incisiva sua compulsão por se adequar a um ideal de beleza: “Eu fiz de tudo pra emagrecer para ser como Britney, Gisele e tantas outras. Só que eu não consegui… até agora. A única coisa que eu não fiz para emagrecer foi uma peça e é por isso que eu tô aqui.” O teatro surge então como um último recurso nessa jornada.

Ao criar um espetáculo teatral como forma de “queimar calorias”, Letícia Rodrigues, atriz, diretora  e dramaturga, e o codiretor João Pedro Ribeiro lançam um olhar crítico sobre a supervalorização da aparência. A comparação irônica com uma “aula de academia, só que mais bonita” evidencia como a perseguição pela magreza pode eclipsar outras dimensões importantes da vida, como a criatividade e a autoexpressão.

A dramaturgia oferece uma perspectiva quase científica da perda de peso, com exercícios, números e teorias. A utilização da balança e a projeção dos cálculos de calorias contextualizam a preocupação com a perda de peso, além de questionar a medicalização e a quantificação do corpo humano. 116 Gramas mergulha na “ciência da obesidade”, usando o Índice de Massa Corporal (IMC) como um ponto de partida para uma análise mais ampla sobre os parâmetros de normalidade. As projeções de dados de celebridades e seus IMCs servem como um comentário ácido sobre a hipocrisia e a arbitrariedade dos paradigmas de beleza. A introdução das teorias da conspiração dos Illuminati adiciona uma camada de humor e absurdo, subvertendo as expectativas e destacando a obsessão da sociedade com a aparência e o controle.

Ao compartilhar memórias e buscar poesia no exercício físico e suor, a protagonista tenta ressignificar sua experiência corporal, carregando a montagem com intensa carga emocional. Ela expressa sua raiva e frustração de maneira física em determinados momentos, expondo a violência simbólica contra si mesma e os padrões que a oprimem, traduzindo sua luta interna e externa. A lista de coisas que ela odeia é um grito de desespero.

Com uma narrativa autoficcional, a dramaturgia investiga o desejo de aceitação e as imposições sociais relacionadas à aparência física. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Com domínio da cena, Rodrigues utiliza com maestria seus recursos vocais, expressões faciais e linguagem corporal para expor as dores e conflitos. Existe um humor cáustico e corrosivo que revela uma dor profunda, as marcas de anos de autorejeição e sabotagem social de todas as ordens. Ela transita com habilidade entre as diferentes vozes que a atormentam. Sua interpretação comprometida e envolvente contribui para desnaturalizar essa forma de intolerância.

Como aponta Malu Jimenez em Lute Como Uma Gorda (Editora Jandaíra, 2022), a gordofobia não é sobre saúde, mas sobre controle dos corpos, especialmente os femininos. As pessoas gordas têm seu caráter e valor questionados por conta do peso, sofrendo humilhações, rejeições e exclusões de oportunidades.

A saga autoficcional de Letícia transita entre a ironia sarcástica, o desespero sufocante e o grito de revolta. Seu corpo é a própria carne da política, o campo de batalha onde se inscrevem as marcas da gordofobia estrutural. Cada movimento, cada gota de suor que escorre é um manifesto da existência insurgente, um atestado vivo da humanidade que resiste sob a pele estigmatizada.

A performance expõe sem filtros a violência cotidiana que os corpos gordos sofrem numa sociedade que os rejeita e os desumaniza. Sua presença cênica é um ato de resistência e afirmação, reivindicando o direito de existir e ocupar espaços sem pedir desculpas por seu tamanho. Letícia denuncia como a gordofobia é um problema sistêmico que permeia todas as esferas da vida social, muito além de uma questão individual. A pressão constante para emagrecer, os olhares julgadores e a exclusão de oportunidades são manifestações concretas de uma estrutura opressiva.

Ao expor sua própria vulnerabilidade e transformá-la em potência criativa, a artista nos confronta com a necessidade de repensar nossa relação com os corpos. Sua performance é um manifesto político que usa a arte como ferramenta de denúncia e transformação.

Recheada de referências pop e fluxos de consciência febris, 116 Gramas: peça para emagrecer é um mosaico caleidoscópico dos discursos contraditórios que bombardeiam esses corpos. Das dietas da moda às teorias conspiratórias, passando pelos vigilantes do peso e a iconografia da Barbie, Letícia costura uma colcha alegórica que reflete a esquizofrenia de uma sociedade que lhes impõe o inatingível.

A atriz expõe a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

Letíícia Rodrigues dança A Morte do Cisne de Tchaikovsky. Foto: Maria Luiza Graner / Divulgação

O humor afiado é a arma com que Letícia desfere seus golpes mais incisivos. Ao rir do próprio incômodo, ela expõe a hipocrisia de uma cultura capitalista que lucra com a insegurança e o auto-ódio feminino. O riso na peça assume uma função subversiva, como propõe Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ao desestabilizar as estruturas de poder e expor suas contradições.

Após listar tudo que odeia em ser gorda, a personagem manifesta sua raiva, exemplificando o impacto da gordofobia. O espetáculo transita entre o lírico e o cru, utilizando releituras de mitos. A comparação do suplício de Prometeu à condição das pessoas gordas, “acorrentadas a corpos que a sociedade rejeita e pune”, enriquece a narrativa com uma pitada filosófica e mitológica.

A metáfora do corpo gordo que se sente permanentemente sujo, “como se precisasse ser constantemente limpo”, ressoa com a experiência de muitos. A ideia de estar preso em um corpo não desejado e a busca por libertação oferece uma visão sensível das dificuldades enfrentadas pelas pessoas gordas.

E é justamente esse corpo gordo enquanto ato de rebeldia que Letícia traz à cena, numa performance física e emocionalmente extenuante. Como quando executa até a exaustão A Morte do Cisne de Tchaikovsky. 

O espetáculo tensiona as noções estreitas e excludentes do que é um corpo capaz e desejável. Letícia desmascara na arte a crueldade por trás desse ideal inatingível de magreza. Num momento em que discursos de ódio e intolerância avançam, 116 Gramas se posiciona como uma voz potente e necessária de resistência. Numa sociedade neoliberal que nos adoece para depois lucrar com a cura, o espetáculo de Letícia Rodrigues é um chamado à insurreição.

Ficha Técnica
116 Gramas: Peça para Emagrecer
Idealização, dramaturgia e atuação: Letícia Rodrigues
Direção: João Pedro Ribeiro e Letícia Rodrigues
Direção de arte: Eliseu Weide
Direção de movimento e coreografia: Luaa Gabanini
Direção musical: Natália Nery
Composição e arranjo de trilha sonora: Lana Scott e Natália Nery
Gravação, mixagem, técnica e operação de som: Lana Scott
Direção, edição audiovisual, mapping e operação de vídeo: Lana Scott
Motion graphics: Pablo Vieira
Desenho de luz: Camille Laurent
Operação de luz: Felipe Stucchi
Coordenação de produção: Leo Birche
Produção: Jéssyca Rianho
Planejamento estratégico de comunicação: Thiago Dias
Comunicação visual e fotografia: Maria Luiza Graner

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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