José Manoel Sobrinho, encenador, professor e gestor cultural. Foto: Anderson Freitas
Pelo porte franzino, ele bem que poderia ser um personagem de Ariano Suassuna, João Grilo ou Chicó. Pela atitude ligeira e o gosto pelos desafios e os triunfos nas pelejas da vida pode lembrar Trupizupe, o raio da Silibrina, figura criada para o palco por Bráulio Tavares. José Manoel Sobrinho é um agrestino de Bezerros, que tem sua marca na história do teatro brasileiro a partir de Pernambuco.
Não são poucas as suas façanhas. De montagens teatrais que dirigiu, ele contabiliza mais de 100. Além de encenador e ator, tornou-se um articulador afiado nas reentrâncias da política cultural.
Durante 42 anos foi funcionário do Sesc-PE, chegando ao cargo de gerente de cultura, o mais importante do organograma para a área. Foi desligado da instituição no mês de agosto e recebeu o apoio da classe artística que redigiu uma carta dos fazedores da Cultura para exaltar a importância da atuação de “Zé Manoel”. Sob sua liderança, foram estruturadas redes de fortalecimento da cultura pernambucana e com o Brasil.
Por alguns dias sentiu na pele a insegurança que é comum à maioria dos artistas brasileiros, que vivem de produção. Desde os 17 anos, trabalhava com emprego fixo. Mas, uma semana depois, ele já está envolvido com várias atividades culturais, algumas remuneradas, outras não. É a sua natureza. Não ficar parado e ser generoso.
Acostumado com a casa cheia de gente desde criança, de parentes e agregados, ele adotou isso como hábito e seu apartamento é sempre um pouso para os amigos. Isso diz muito do seu jeito de encarar a vida, com trocas e aprendizados.
“Sou um artista, um educador que se transformou em gestor da cultura e isso não foi sem dor, sem luta. É triste de dizer, mas optar por artes em um país como o Brasil é quase uma insanidade”. Quem pode dizer que ele não tem razão? Com tudo que ocorre neste país? A sensação que temos é que a Cultura está sempre em risco. “Sempre que se instaura uma crise é a cultura a mais penalizada”.
Vamos “ouvir” o que o filho de Seu Eloi e dona Estefânia, pai-do-coração de Cláudio Siqueira, tem a nos contar sobre sua experiência neste Planeta azul. É uma longa entrevista.
Meu pai viajava muito, por conta das empresas em que ele trabalhava.
Eram aventuras incríveis: até os meus 11 anos eu me mudei 30 vezes
Como foi sua infância? Quais as lembranças mais marcantes?
Meu avô paterno, João Noel, era sanfoneiro, tocava 8 baixos. Eu adorava ficar vendo. Aprendi a ler com os livros de cordel, os almanaques do Biotônico Fontoura, Carta do ABC, Tabuada. Minha tia-madrinha, Zoé, cantava lindamente. E dançava. E eu dançava muito nos bailes de forró que aconteciam na casa de meu avô paterno. Eu cantava e dançava muito. Cantava agudíssimo seguindo o tom de minha madrinha. E durante a semana passava as tardes no bananal, cortando cachos de banana e cantando o repertório. Depois ia cortar palma pras vacas ou fazer farinha na Casa de Farinhas.
Em Bezerros, ainda no sítio, tinha as festas na fazenda de Dona Carmem Moury Fernandes: São João (pamonha, canjica, milho assado, fogueira e fogos) , Natal, Páscoa, as manifestações populares, o pau-de-sebo, os fogos de artifício. Tinha também os terços e as noitadas religiosas onde eu cantava nos catecismos, acompanhava as rezas.
Teve uma época que eu achava que seria padre.
Outro dado da minha infância é que fiquei pouco tempo fixo em uma escola: meu pai viajava muito, por conta das empresas em que ele trabalhava. Eram aventuras incríveis: até os meus 11 anos eu me mudei 30 vezes: Bezerros, Pesqueira, Gravatá, Vitória de Santo Antão, Jaboatão dos Guararapes, Sirinhaém e Recife. Era um vai-e-vem enorme, ficávamos pouco tempo nos lugares.
Meu pai trabalhava em consertos de estradas, pistas, vias públicas e a gente o acompanhava para todo canto. Por isso, somente entrei em uma escola regular na antiga quarta série. Tive que fazer um exame de admissão, porque não tinha nenhum registro escolar, anterior. Tenho poucas memórias de escolas, professores, amigos de turma até chegar aos 12 anos de idade.
Bom, é importante que diga que éramos muito pobres, meu pai chegou a pedir esmolas para nos dar alimentação. Ele mesmo passou muita fome procurando emprego, foi vítima de exploração de mão de obra, trocou voto por vaga de emprego sem nem sequer saber o que era isso. Muito subemprego, trabalho assalariado, abuso de poder, coronelismo no Agreste, empreiteiros, usineiros. Meu pai chegou a se deslocar de Bezerros até Timbaúba – uns 180 km, de bicicletas -, à procura de emprego, por causa de um boato de que uma usina abrira vagas. E era boato mesmo.
Mas, as minhas memórias são de um casal feliz, trabalhador, “fazedor de menino”. Lembro do nascimento de minha irmã, Jô Francisca, bilheteira do Teatro Arraial Ariano Suassuna. Foi uma noite de fogos, pirão de frango, arroz branco e, para os adultos, cachimbada, uma bebida alcoólica, com mel. E muitas visitas com presentes para a menina.
E sua juventude?
Minha juventude foi de muito trabalho. Sou de família pobre. Sou uma pessoa de classe média. Desde os 12 anos que trabalho. Fui vendedor de picolé em Prazeres e na Praia de Piedade, – cheguei a vender 200 por dia; vendi bananas na feira, vendi sandálias, revistas e gibis, vendi artesanato de isopor na feira de San Martin. Ainda fui entregador de refeição a motoristas e cobradores de ônibus. Depois comecei aos 14 anos a dar aula de reforço escolar; cheguei a ter mais de 20 alunos. Finalmente, virei comerciante em casa, abrimos uma “vendinha” que no começo eu tomava conta.
Tirei muita água de dentro de casa. Quando chovia, a nossa casa era inundada. Foram muitas noites acordados, enfrentando as cheias de Prazeres. Foi uma juventude cheia de aventuras e trabalho.
Sofri muito bullying, porque não tinha farda ou sapato pra ir à escola e porque era magro, tímido e sem porte de elegância. Esse período foi ruim – era sempre o último nas filas, mesmo quando eu era o mais alto da turma.
E estudava muito. Lia todas as revistas e gibis e colecionava álbuns de figurinhas. Eu inventava muita coisa. Estudei um pouco da trajetória da italiana, de Gênova, Beata Paola Frassinetti, criadora da Congregação das Irmãs Doroteias, para participar de um programa de TV, que, graças a Deus, não fui: Silvio Santos.
Nesse período andei quilômetros de bicicleta, dancei em muitas festas na minha casa ou nas dos vizinhos. E, realmente, namorei. Naquela época eram namoros românticos, de jovens, mas depois dos 17 anos dei um tempo. Melhor pular essa parte.
Aos 14 anos comecei a fazer Teatro no Colégio Paola Frassinetti, em Prazeres. Frequentei muito a Biblioteca Central de Pernambuco e o Gabinete Português de Leituras – nossas viagens eram de trem. Alguns passeios me são inesquecíveis: a Festa da Pitomba dos Montes Guararapes, andar de lancha da CTU no Rio Capibaribe com meus irmãos menores, ir à Praia de Piedade. Ah! E no final de ano passear pelo Recife para ver a decoração de Natal.
Lia tudo o que era publicado em edições populares da Literatura Brasileira. Aos 17 anos já estava dando aulas em uma escola e aos 18 comecei a dar aulas no mesmo Colégio Paola Frassinetti, meu primeiro emprego formal.
DE ATOR A ENCENADOR
Sistema 25, sobre o sistema prisional. Fotos: Rogério Alves
Foto de 1974, no Colégio Paola Frassinetti, primeira ação em Teatro: O Deus Único, de Érico Veríssimo.
Mário Antonio Miranda, José Manoel e Carlos Lira em A bomba, de 1979
A bomba, de Alexandrino Souto, com direção de Mário Antonio Miranda.
Mário Miranda, Carlos Lira e José Manoel
Montagem Beckett and Lispector com direção de Breno Fitipaldi, no Teatro Joaquim Cardozo
Então como você foi atraído para o teatro?
Fui atraído para o teatro por uma professora de português do Colégio Paola Frassinetti, em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes, e depois pelo Teatro Experimental de Olinda, com Valdi Coutinho. Foi Valdi quem me deu todas as oportunidades, me iniciou em tudo. Comecei como ator sob direção de Carlos Bartolomeu, no espetáculo Debu Le Rá, com adaptação de Bartolomeu a partir de obra de Oswald de Andrade.
Como ator fiz poucas coisas e me orgulho muito de ter passado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco em A Capital Federal e A Promessa, de Luiz Marinho, como ator substituto. Dividir cenas com Geninha da Rosa Borges, Reinaldo de Oliveira, Diná de Oliveira, Renato Phaelante, Fernando de Oliveira, Vicentina do Amaral… Fico comovido quando penso nisso: dividir cenas com esses e essas gigantes.
Você atuou pouco como ator, por quê?
Eu me transformei em encenador por necessidade, por sorte, por senso de oportunidade, mas eu queria mesmo era ser ator. E depois que eu comecei a dirigir, essa rotina foi enfraquecendo o ator que há em mim. Muito comprometido com a direção de espetáculos fiquei sem tempo para estudar e praticar interpretação. Conto nos dedos os espetáculos que fiz como ator: 3 no Teatro Experimental de Olinda; 6 na TTTrês Produções Artísticas; 2 no Teatro de Amadores de Pernambuco e alguns poucos independentes, dentre eles Seltrap, com Luiz Felipe Botelho e Beckett and Lispector, com Breno Fittipaldi, em ambos eu dei muito trabalho aos diretores.
Fui dirigido ainda por Carlos Bartolomeu, Mário Lima, Reinaldo de Oliveira, Geninha da Rosa Borges, Antônio Carlos Vander Vélden, Mário Antônio Miranda, Carlos Varella: poucos, para quem tem 45 anos de carreira, mas com quem aprendi muito.
Além de pouco tempo pra estudar interpretação, comecei a ficar com medo. É uma pressão muito grande, uma cobrança muito grande, talvez excesso de zelo ou insegurança mesmo. O fato é que tenho certeza, eu deveria ter me focado mais na carreira de ator.
Como foi sua formação na área?
Como eu disse, o início como encenador foi uma necessidade do grupo, uma urgência, era difícil ter diretores disponíveis para trabalhar com artistas e grupos da periferia. Participei de muitos cursos, oficinas, ações formativas, movimentos políticos e, principalmente, muitos festivais de teatro. Os festivais foram as principais escolas de minha geração.
Como você qualificaria sua educação formal?
Absolutamente atípica. Já falei que entrei numa escola e me mantive com regularidade a partir da quarta série, depois fui pra escola privada, graças a uma bolsa que meu pai conseguiu com Maria de Lourdes Chaves, proprietária e Diretora do Colégio Paola Frassinetti. Ela foi minha maior incentivadora. Lá eu fui presidente do Centro Cívico e vivi a experiência do movimento estudantil. Concluí o antigo primário e o científico (fundamental e médio), já emendei com a Fesp, cursando História, depois fui para a Funeso – Olinda, novamente História, de onde saí para a Universidade Federal de Pernambuco, Licenciatura Plena em Educação Artística (fui jubilado no quinto ano). Depois fui fazer Administração em Marketing, que odiei, e finalmente, o Curso de Letras (Vernáculo). Cursei todas as disciplinas de uma Especialização em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, mas não apresentei o texto final. Explico: Eu fazia muito Teatro e viajava muito, passava muito tempo fora do Recife e com isso eu atrasava o curso e desistia. Errei. Pronto. Reconheço. Entrei em muitas faculdades, mas sai de todas. Somente me formei em Letras, aos 50 anos. Não faria isso, hoje. Mudaria o rumo dessa prosa.
Quais são as suas expertises?
Não sei cozinhar, nem dirigir veículos, nem nadar, nem tocar instrumentos musicais: queria muito tudo isso. Andar de bicicleta é meu maior orgulho, andar bem. Sou datilógrafo de certificado e tudo. A vida me levou por muitos caminhos e lugares. Acho que minha maior expertise é viajar, fazer amizades, reconhecer os méritos de todos os outros. Sou um trabalhador inveterado e incansável,
Você montou mais de 100 espetáculos no período de 1977 até 2020. Como foi essa proeza?
Hoje eu entendo que foram muitas as motivações e pelo fato de não ter medo de arriscar. Foram escolhas por força do meu desejo de associar o trabalho de encenador ao de ativista político. Quando eu dirigia um espetáculo para um grupo eu aproveitava para, na medida do possível, participar do processo de organização e fortalecimento do grupo. Muitos desses trabalhos eu fiz por meio de projetos e como conclusão dos vários cursos que ministrei. Também pelos muitos convites que recebi de produtores. Tive a oportunidade de trabalhar com quase todos os produtores do Recife dos anos 1980 e 1990. Tem um fato que preciso frisar, eu era muito organizado com as questões de tempo, agenda muito disciplinada o que me dava condições de dirigir alguns espetáculos, simultaneamente.
De que forma você classificaria essas encenações? É possível agrupá-las por temática? O que existe em comum entre essas montagens?
De certo modo é possível agrupar: montagens de conclusão de cursos e de projetos; espetáculos da TTTrês Produções Artísticas e dos grupos do Sesc; montagens dos grupos independentes e dos produtores. Em comum entre a maioria, a narrativa política, recortes ideológicos, compromisso social. Nunca desassociei meu trabalho de encenador das lutas políticas. Agrupar por temáticas (luta das mulheres, erotismo, morte, lutas sociais, liberdades humanas etc.), ainda poderia identificar espetáculos para crianças e jovens, de rua, para espaços alternativos.
Avoar, de 1987, pela TTTRES Produções Artísticas, ficou 10 anos em circulação. Com direção musical de André Filho, iluminação de Xislane Ramos de Pontes . Elenco: Carlos Lira , Cira Ramos, Paulo De Pontes, Flávio Santos, Otacílio Júnior, Rudimar Constâncio, Ivone Cordeiro, Célio Pontes, Hamilton Figueiredo e Kátia Ribeiro.
O que motivou as escolhas, esses espetáculos, esses autores?
Não há uma resposta conclusiva, porque foram muitas as motivações. Sobre a dramaturgia brasileira recaíram muitas das minhas opções: autores nacionais, pernambucanos, jovens autores. Há um autor com o qual trabalhei muito, o paulistano Vladmiir Capella. Conheci a obra dele através da Ingrid Dormien Koudela. Vladimir era defensor de um teatro sem faixa etária e eu também. Nós dois escolhemos trabalhar pensando nas crianças e nos jovens por um bom tempo, mas tratando de todos os temas, sem receio e da obra dele eu dirigi Como a Lua (3 versões), Avoar, Com Panos e Lendas, Antes de ir ao Baile e Píramo e Tisbe. Com ele me aproximei da APTIJ – Associação Paulista de Teatro para a Infância e a Juventude e isso fez toda a diferença. Também acompanhar os trabalhos de Ilo Krugli e Bia Lessa. A primeira montagem de Como a Lua foi decisiva para muito do que eu fiz até agora.
Por esses dias, começando a trabalhar com a Cia. Oxente, de João Pessoa, observei que além de pernambucanos, os autores paraibanos estiveram presentes na minha trajetória: Bráulio Tavares (Trupizupe, o Raio da Silibrina e Quinze Anos Depois), Altimar Pimentel ( Flor do Campo e Viva a Nau Catarineta) e José Bezerra Filho (Lampiaço, o rei do Cangão) e isso começou durante as várias temporadas que fiz em João Pessoa e no Festival de Campina Grande.
Durante um tempo fiz espetáculos como O Mágico de Oz, O Menino do Dedo Verde, Cantigas ao Pequeno Príncipe e O Regresso. Poderia elencar muitos recortes, acho que fico devendo, quem sabe eu mesmo faça um estudo mais aprofundado sobre minhas escolhas.
Há alguma peça que você se orgulha mais ou que riscaria do seu currículo?
Nenhuma tiraria do meu currículo. Tenho o maior orgulho, inclusive dos meus maiores erros como encenador. Ao decidir dizer tantos sim, claro, que corri muitos riscos, mas quem me convidou, também se arriscou. Tenho muito orgulho de nos anos 1990 ter montado Jesus Homem, de Plínio Marcos e, de, para interpretar Jesus, ter escolhido uma atriz negra (Nika di Oliveira). Igualmente ter montado Cantigas ao Pequeno Príncipe com Érico José, também negro para interpretar uma personagem tão obviamente loura. E não só isso, pelo fato de serem negros, mas pelo fato de que nós desconstruímos narrativas enrijecidas, estereótipos.
Também me orgulho de ter, no começo dos anos 1990, ter dirigido Janos Adler, de Luiz Felipe Botelho sobre a temática do HIV. Nos anos 1980 eu montei Anjos de Guarda, de Zeno Wilde e realizamos o Teatro em Residências (De Porta-em-Porta), com mais de 100 apresentações, mais que um espetáculo, uma vivência para nós e para todas as famílias que nos receberam. Um Barco chamado Brasil, texto de Romildo Moreira para o Projeto Vamos Teatralizar a Constituinte de 1988.
Avoar, de Vladimir Capella, foram mais de 10 anos, ininterruptos, em cena e, mais recentemente a minha experiência um pouco radical com o Sistema 25, inspirado em conto de Plínio Marcos, com dramaturgia dos atores.
Essa é uma pergunta de respostas infinitas, melhor para nesses exemplos.
Ah! Tenho muito orgulho de ter trabalhado com o Grupo Loucas de Pedras Lilás, com as meninas da Casa de Passagem, com a atriz e produtora Socorro Raposo e com o produtor Bóris Trindade.
Por que foram rareando seus trabalhos?
De 1977 a 1999 fiz muitos espetáculos, mas com o meu crescimento dentro do Sesc, na função de gestor e as tarefas nos diversos projetos, inclusive na condução das políticas de cultura em Camaragibe e, por ministrar muito cursos e oficinas, a minha produção como encenador foi rareando. Tem outro fator: os grupos e as produtoras foram sendo extintos e as opções foram reduzindo. Também a minha opção por estudar literatura no curso de Letras me deixou com tempo mais reduzido. Outras escolhas, outras funções, outros caminhos.
ARTICULAÇÃO, AÇÃO, LINGUAGENS
Como foram seus processos de montagem?
Uma experiência que destaco foram as montagens para a rua, dentre elas, Um Barco Chamado Brasil, com texto de Romildo Moreira, para o Projeto Nacional Vamos Teatralizar a Constituinte e O que se Enxerga depois do Medo, de Wilma Lessa e Williams Sant’anna, com o Teatro Pesquisa Sesc: Núcleo Domínio Público.
Muita coisa mudou em cada geração, seja nos sistemas de produção, seja na dramaturgia, nas narrativas, nos temas, no modo de fazer, de lidar com atores e atrizes. Mas, foi na relação com os públicos que senti as maiores mudanças. Mais até do que nos aspectos estéticos. Antes, eram públicos enormes, hoje, o teatro é para poucos: esta mudança me chega de maneira pouco vibrante.
Quando você começou havia uma dificuldade de comunicação. Atualmente, com todos os recursos tecnológicos, é possível acompanhar procedimentos, estéticas e resultados de grupos distantes. Você entende que houve mudanças de criação e registro?
Tudo mudou muito: nos processos de criação, na temporalidade dos espetáculos, nos sistemas de produção, na estrutura dos grupos, na estética, nos modos de organização das experiências e nos registros. Algumas coisas mudaram para melhor, mais autonomia para os criadores, maior descentralização dos processos. Também muitas mudanças nas relações com a crítica e com os registros. Hoje se escreve mais, se registra mais, só os públicos que chegam menos.
Como você define sua estética e sua ética na criação dos trabalhos?
Quando paro pra pensar em tudo o que fiz, identifico claramente uma vertente política em meu teatro, uma presença ideológica. Não adianta: eu preciso me sentir útil. Há um certo compromisso com a pedagogia, com a educação, com o conceito de experiência. Sempre gostei da ideia de um espectador ativo, dentro do jogo, em muitos casos, quase atuando, pouco passivo. Sou um encenador de poucos elementos visuais, mas não abro mão de uma luz conceitual. Dos anos 1970 a 1990 eu também fui iluminador, meus espetáculos tinham forte dramaturgia de luz, e até hoje é assim> O que mudou é que eu não faço mais luz. Sou econômico em direção de arte, gosto de palco mais nu, porém, a música é um elemento dramático que recorro, antes funcionava como personagem, agora, na estética contemporânea, como dramaturgia.
Trabalho e trabalhei com muitos criadores musicais: André Filho, Allan Sales, Sérgio Kyrillos, Nando Lobo, Toinho Alves (do Quinteto Violado), Ediel Guerra (de Arcoverde), Osvaldo Costa (do Cabo de Santo Agostinho), Sagrama (Cláudio Moura), Sônia Guimarães e mais recentemente, Samuel Lira. Hoje, observo que meu teatro conseguiu acompanhar o tempo, passei por muitos fundamentos, mergulhei em muitos universos, estou em diálogo com a cena contemporânea porque entendo o fluxo e a dinâmica da cultura. É difícil, mas eu busco, estudo, pesquiso.
Como são feitas as escolhas e procedimentos de linguagens?
Não há uma regra. Muitos fatores interferem nas tomadas de decisão: o momento politico, a estrutura de produção, o perfil dos artistas, a dramaturgia de referência. Atualmente, me sinto mais frágil na relação com atores, preciso estudar mais, entender melhor este universo, mas isto não me deixa inseguro, fico mais inquieto. A juventude me provoca, me chama e eu vou.
TEATRO PRA CRIANÇAS E JOVENS
Há especificidades, como defendia Marco Camarotti, do teatro que deve ser feito para crianças e adolescentes?
Não tenho elementos teóricos para contradizer Marco Camarotti, nosso maior estudioso e pesquisador da arte realizada para crianças e jovens, porque sei que o processo de evolução das pessoas é algo em camadas, crescente, a partir do que descobrem e experienciam em suas trajetórias. E a arte precisa reconhecer essas fases. Porém, também entendo e Marco falava sobre isso, que cada pessoa é um mundo, um universo, um mistério. E, sendo assim, reconhecemos que cada um desenvolve o seu potencial de modo diferente, a depender de sua realidade e de seu padrão social, das oportunidades e das escolhas.
Quando dirijo um espetáculo para crianças e jovens procuro construir um sistema de ações que possibilitem leituras e relações simultâneas por públicos das mais diversas idades. Sou contra a indicação etária, a classificação por idade. Eu faço porque as leis exigem e o padrão social hierárquico e autoritário me impõem. O discurso da moralidade e a prática da falsa moral cristã enclausuram , mediocrizam e enquadram os seres: tudo sob a égide da defesa da família. Sob o falso discurso da imoralidade.
Nós sabemos que a criança ao ver um corpo nu jamais trata com imoralidade ou criticidade, é apenas um corpo nu. A indecência está na cabeça dos adultos, com seus interesses e limites e medos. Objetivamente, eu construo meus espetáculos sem esta preocupação de separar crianças e jovens. E posso dizer, por causa vivida, a criança entra no jogo, basta haver a oferta da possibilidade. Quando ela não quer, dorme. E eu também acho isso bastante normal. Cabe à criança definir como e por quanto tempo se relacionará com uma obra de arte.
O que mudou para esse público desde que começou a fazer teatro?
Já tratei de temas como a morte para crianças e o resultado foi muito satisfatório, da mesma maneira que lidei sobre o nascimento sem falar de cegonha e sem esconder a verdade. Trabalhar para crianças e jovens é sempre um desafio muito grande. Pra mim, a diferença hoje em relação ao século XX é a relação com as tecnologias, e não somente com as crianças. As tecnologias estão isolando muito as pessoas e isso tem repercutido no universo do espetáculo. Penso que essa questão do isolamento social em decorrência do uso das novas tecnologias é que estará exigindo dos artistas de teatro um olhar especial e cuidadoso. Mas haverá saídas, isso haverá.
Hoje os desafios são maiores?
Não maiores, nem menores, têm a dimensão de seu tempo.
José Manoel Sobrinho, Foto: Acervo pessoal
SAÍDA DO SESC… FUTURO
O que significou o Sesc na sua vida?
Difícil sintetizar. Entrei no Sesc aos 19 anos e lá me mantive até os 62. Penso como sendo um território amplo, aberto, cheio de possibilidades. No Sesc fui professor de teatro (minha carteira profissional está assinada como professor de teatro, no dia 1º de Junho de 1979).
De 1977 a 1979 fui prestador de serviços e já comecei dando aulas e dirigindo o Grupo de Teatro Amador do Sesc, na Unidade de Santa Rita, no Recife. Por mais de 20 anos fui professor. Depois assumi a coordenação de cultura do Sesc Santo Amaro, no Recife, depois coordenador de Cultura do Sesc Pernambuco e finalmente Gerente de Cultura. Foi uma empresa que me reconheceu pelo trabalho. Ajudei a construir uma Rede incrível de Arte e Cultura no Sesc de Pernambuco e do Brasil. Tenho um amor enorme pelo Sesc e uma profunda gratidão. Não consigo pensar diferente. Por meio desta instituição vi surgirem artistas, pesquisadores, técnicos, professores de artes. Conheci pessoas geniais. Muito de minha formação humana, artística, intelectual foi forjada em seus territórios. Tive muita autonomia para trabalhar, pude inventar e desenvolver muitas coisas. O Sesc está conectado à minha vida, não tem como me desconectar.
Quando exercemos uma atividade com paixão, o trabalho se torna mais que obrigação / sacrifício/ meio de sobrevivência. Parecem-me que suas ações de trabalho sempre tão apaixonadas passavam de longe desse limite labutar do capitalismo. O que é o trabalho?
O trabalho? Um direito, lugar de fruição, de construção de relações. Não separo muito trabalho, construção, diálogo, enfrentamento, planejamento, carreira, salário, formação. Claro que estou me espelhando em minha experiência. Para muitos, trabalho também é violência, arbítrio, autoritarismo: nem sempre a sociedade industrial, patriarcalista, escravocrata permitiu que o trabalho fosse um lugar de libertação. Não sou ingênuo. Seja no Sesc ou nos outros lugares onde atuei, o meu trabalho esteve associado à ideia de coletivo e de criação. Ah! Não posso desassociar trabalho de renda, salário, construção de bens que me possibilitassem vida justa.
A classe artística / cultural de Pernambuco fez uma petição pública (Carta dos Fazedores da Cultura ao SESC PE) com questionamento ao Sesc por sua saída e de apoio a você pelos projetos desenvolvidos ao longo de sua trajetória. O que achou disso? [A carta e a resposta do Sesc estão copiadas abaixo da entrevista]
Eu fiquei profundamente sensibilizado com as reações de apoio a mim, tanto da classe, quanto dos integrantes da Rede Sesc em todo o Brasil e no estado. Em relação aos setores da Cultura penso que o fato de ter estabelecido uma relação franca foi o que mais me fez bem. Em uma função como a de gerente de Cultura do Sesc, a gente se vê diante de muitos desafios.
Há um princípio que eu procurei seguir sempre: se a pessoa procurava o Sesc com uma proposta e se eu percebesse que não havia possibilidade, eu dizia o não, de imediato. É preciso saber dizer não, rápido, objetivo e explicar o porquê do não. Eu disse muitos nãos, mas explicava. Se fosse algo compatível, o sim era logo e se eu tivesse dúvida pedia tempo para avaliar. Acho que essa postura me ajudou muito nas relações com o setor.
A Cultura é uma área muito penalizada e não dá para ficar adiando posicionamento. E tudo precisa ser explicado. As pessoas merecem e têm esse direito.
Sobre a carta, acho importante, um ato político, um posicionamento do setor que só tem acumulado perdas. Não me refiro ao fato de ser em minha defesa, mas por ser um alerta para todos. A luta é grande. Também um ato de generosidade para comigo. Não foi um pedido para um retorno meu, foi antes, uma reação com receio do que poderia acontecer depois. A carta é um ato político de resistência da categoria.
O que achou da escolha do seu sucessor, Rudimar Constâncio?
Rudimar Constâncio é um profissional muito preparado, um artista, pesquisador, estudioso da Cultura e da Educação, um homem formado em História, Mestre e concluindo um doutorado com o desenvolvimento de duas pesquisas, absolutamente necessárias. Um jovem de posições firmes, muito querido e respeitado no meio. Também conhece muito a Rede Sesc, tem um serviço prestado há 28 anos à Instituição e aos seus clientes. Já foi gerente das unidades do Sesc em Arcoverde e Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, e vinha conduzindo o Teatro Samuel Campelo. Diretor, professor e ator de Teatro com vasto conhecimento e incursão pelo interior de Pernambuco.
Não tenho nenhuma dúvida de que dará certo. Ele, no entanto, vai precisar muito do apoio da Direção do Sesc.> Não se faz politica de cultura sem recursos, sem liberdade de criação. Não me preocupo com a condução do Sesc, o que me preocupa é a ação predatória do atual Governo Federal com as intervenções nocivas do presidente e de seus aderentes das politicas econômicas. O ministro da Economia, Paulo Guedes, é o segundo maior inimigo da Arte, da Cultura, da Educação, da Saúde e de todas as politicas sociais da atualidade.
Quais são seus planos agora? Projetos adiados devem ser retomados ou iniciados, não?
Vou me candidatar a um mestrado, de preferência na área da gestão cultural. Pretendo estudar e contribuir com o setor público, principalmente junto com aos municípios. Não dá mais para que os municípios deixem as políticas de Cultura em décimo plano. Vou estruturar minha consultoria em gestão da Cultura e oferecer os meus serviços. Ajudar na estruturação do setor. Vou intensificar meu trabalho de encenador e devo acelerar o meu trabalho com a Cia Oxente de Atividades Culturais de João Pessoa. Gostaria de realizar um trabalho de ator, estou conversando com Érico José, quem sabe eu consiga construir uma proposta com ele.
Nós, da Cultura, somos militantes. Se precisar trabalhar 15 horas num dia a gente trabalha.
Isso faz uma diferença enorme
Como diz a sabedoria popular, 42 anos não são 42 dias. É muito investimento emocional, físico, intelectual depositado nesse emprego. Conte algo que você considera especial que ocorreu no seu período de instituição? E algo absolutamente abominável?
Nós, da Cultura, somos militantes. Se precisar trabalhar 15 horas num dia, a gente trabalha. Isso faz uma diferença enorme. Nesses 42 anos, poucos funcionários da Cultura não se engajaram nesse processo. Foram muitas as realizações, difícil nominar uma. Acho que a efetivação da Rede Sesc de Cultura no estado e sua conexão com o país. A construção ou reforma dos equipamentos de Cultura: eu estive envolvido em todos. Também a criação dos postos de trabalho, eu estive envolvido. E a direção sempre acolheu. Tenho o maior orgulho. Também na criação dos principais projetos, participei ativamente.
Tem um fato que aconteceu nos anos 1980 que foi difícil. O ex-presidente do Sesc, Manoel Ramos de Almeida se candidatou a deputado estadual pelo antigo PDS e queria que eu o apoiasse. E eu me neguei e cheguei a ser convidado a deixar o Sesc. Eu o enfrentei e não saí. Foi bem difícil. E foi caso único, porque o Sesc é apartidário, não se envolve em lutas partidárias, trabalha com as gestões independente de sua tendência. O Sesc tem autonomia.
Nessa trajetória, você tem arrependimentos? Principalmente na vida pessoal, de ter deixado de fazer algo pelas obrigações com a carreira na empresa?
Não me arrependo de nada do que fiz, sou um homem que faz escolhas. Talvez me arrependa do que não fiz. Tenho experiências incríveis na minha vida. Comecei como professor de teatro no Sesc e fui construindo uma relação com a Instituição. Comecei pelo Sesc Santa Rita, depois fui para Casa Amarela, depois Santo Amaro e por fim para compor a equipe junto à direção. O Sesc me deu muitas oportunidades e eu aproveitei todas. O reconhecimento que obtive foi resultado de muito trabalho e empenho, mas também é muito coletivo. O meu reconhecimento está associado às oportunidades.
Outra coisa difícil é esta sensação de que o setor da Cultura está sempre em risco.
Sempre que se instaura uma crise é a cultura a mais penalizada. O Brasil é assim…
A ARTICULAÇÃO NACIONAL
Em 2019, vistoriando a construção do Cinema do Sesc no Centro de Produção Cultural de Garanhuns, ao lado de Naruna Freitas, da área do Audiovisual do Sesc Pernambuco
Como funcionou a articulação das ações do Sesc PE com nacional?
O Sesc é uma instituição federativa, com autonomia administrativa em cada estado, mas tem o Departamento Nacional que cumpre um papel fundamental para o país. É o DN o órgão responsável pela formulação das políticas do Sesc para o Brasil. O Sesc Nacional é muito importante, organiza, amplia os espaços de reflexão, articula toda a Rede Sesc. O Regional de Pernambuco ocupa um lugar de muito prestígio nesta rede e isso independe de pessoa, são muitas pessoas. Eu fui apenas parte desta rede, deste colegiado. Tive a sorte de ter participado nos grupos de trabalho que formularam várias políticas do Sesc: política de Cultura do Sesc para o Brasil, das Artes Cênicas, da Literatura. Ainda: participei em menor escala das formulações das políticas de Música, Artes Visuais e da criação dos Marcos Referenciais de Memória Social e Patrimônio Cultural e também de Arte-Educação. Direito e diversidade são os princípios das políticas do Sesc para o Brasil e eu creio que serão mantidos. O diálogo da Cultura com a educação e com a ação social são outros eixos e eu participei dessas construções. Isso faz parte da missão do Gerente de Cultura do Sesc e eu, felizmente, tive todas essas oportunidades. Pude trabalhar diretamente com muita gente com destaque como Álvaro de Melo Salmito, Sidnei Cruz, Márcia Rodrigues Costa, Wagner Campos, Maria Helena Kuhner, Maria José Gomes Duarte, Marcos Henrique Rego, dentre muitos em âmbito nacional. Em Pernambuco, trabalhar com o Professor Josias Albuquerque, Edson Wanderley Neves, Antônio Inocêncio Lima, Silvia Cavadinha, Teresa Ferraz e, ultimamente, com o diretor Oswaldo Ramos foram oportunidades que agregam valor a qualquer profissional. O professor Josias me deu muitas oportunidades de trabalho, de crescimento e me permitiu atuar na construção desta rede de teatros, galerias de artes, salas de experimentação em artes e cultura. Professor Josias fez a grande diferença na minha carreira.
A ARTICULAÇÃO COM O INTERIOR SEM COLONIZAÇÃO
É muito frágil a construção das políticas de cultura nos municípios brasileiros, em todos, independente de se é capital ou interior, mas no interior é muito mais difícil
Os saberes existem em toda parte, mas nossa história está carregada de hierarquias e dominações. Como você liderou na prática a articulação com o interior sem colonização?
Minha relação com o interior do estado é anterior ao Sesc, muito anterior. Começou com o Teatro Experimental de Olinda, TEO, em 1977, com o Protec – Projeto Teatro Comunitário, que eu participei e coordenei por um bom tempo. Com o Protec, além do Recife, nós trabalhamos com Igarassu, Limoeiro, Caruaru e Arcoverde. Arcoverde foi nosso principal polo descentralizado. Trabalhamos com núcleos de articulação. Depois com o grupo TEO no espetáculo Os Mistérios do Sexo, nos apresentamos em várias cidades.
Depois da experiência com o TEO vieram as ações com a TTTrês Produções Artísticas, nosso grupo de Jaboatão dos Guararapes. Com o nosso Projeto de Circulação de Teatro pelo Interior fomos a mais de 40 cidades do estado. Finalmente, o Sesc e a possibilidade de uma atuação mais continuada. E a ação junto com a Federação do Teatro de Pernambuco, Feteape e as diversas oportunidades de trabalho com o Festival de Inverno de Garanhuns, FIG, e trabalho em Caruaru, quando Arari Marrocos me contratou para uma ação junto à Casa de Cultura José Condé.
Além do tempo de trabalho com Leda Alves na cidade do Cabo de Santo Agostinho e a experiência com Camaragibe. Tudo isso foi me mostrando a grande potência criativa fora da capital. Sou agrestino, sou de Bezerros e isso também me influenciou muito.
Outra vez eu preciso afirmar: nada foi só. Nunca trabalhei sozinho, nem minha articulação foi algo que me isolou, ao contrário, só foi possível porque foi uma ação em coletivo. Muita gente, muitos trajetos diferentes. Aprendi muito com os movimentos populares, com as periferias, inclusive aprendi que NÃO HÁ CENTRO, todo lugar é centro. Certa vez, numa roda de conversas em Palmas, Tocantins, eu caí na besteira de dizer que o Tocantins era longe. De imediato alguém da plateia disse: não. Recife é que é longe, tudo depende de onde se vê. Nunca mais eu disse que um lugar era longe.
Sei que esses processo de valorização das ações feitas no interior vêm de muitos anos. O incentivo a festivais, fortalecimentos de grupos. Como você lidou com as peculiaridades de cada regional / cidade ?
Aprendi com Viola Spolin que criatividade é um fenômeno que todo mundo tem, basta ser provocado, estimulado, potencializado. Não importa se mora em Bezerros, no sítio Serra dos Bois, onde eu nasci, ou se mora em São Paulo. Todo mundo pode e merece oportunidade. As políticas necessitam sair deste lugar de centro. Bodocó é um grande centro de criação, assim como Triunfo, Goiana.
A questão é que a construção das políticas não passa pelo sentido de direito. As oportunidades estão associadas ao poder econômico e aos acessos à comunicação e isto é uma aberração. Sempre procurei trabalhar com os artistas, técnicos, produtores e públicos em situação de igualdade, mas é muito difícil. É muito frágil a construção das políticas de cultura nos municípios brasileiros, em todos, independente de se é capital ou interior, mas no interior é muito mais difícil. Os criadores e trabalhadores da Cultura com atuação no interior do estado passam por muitas dificuldades e reparações são urgentes.
Tenho certeza que isso passa pela lógica eurocentrista, capitalista, branca, machista, patriarcal, colonizadora.
Claro que eu não comecei com uma consciência formada, cometi muitos erros nessa trajetória, mas fui permitindo a mim mesmo aprender, pela escuta, pela troca, pelos afetos e pelas construções. Você mesma, Ivana Moura, participou, como artista e como jornalista e crítica de artes de muitos momentos estruturadores. Você acompanhou muito as ações do interior do estado nas áreas de teatro e dança, principalmente. Muitas lideranças artísticas se destacaram a partir do trabalho realizado em Caruaru, Palmares, Limoeiro, Timbaúba, Surubim, Goiana, Garanhuns, Belo Jardim, Pesqueira, Arcoverde, Serra Talhada, Salgueiro e Petrolina, para destacar alguns outros polos de criação. Eu sempre fui muito misturado, não foi apenas por meio do Sesc, mas o Sesc, os últimos 20 anos, foi fundamental.
FORMAÇÃO DE ATORES
O curso de formação do Sesc foi ganhando espaço na lacuna do CFA e da Fundaj do Derby?
O Curso de Interpretação para Teatro – CIT surge como uma continuidade ao que surgiu nos anos 1980. Ele nasceu nos anos 1980, antes do da Fundaj e do CFA (Curso de Formação do Ator, da UFPE) – só que era mais tímido. Chamava-se Curso Regular de Teatro – CRT. Muita gente deu aula entre os anos 1980 e 1999: Luiz Felipe Botelho, Williams Sant’anna, Gilberto Brito, Leila Freitas, Otacílio Júnior, Amélia Conrado, Kalyna de Paula, Wellington Júnior, Paulo Henrique Ferreira, Roberto Lúcio, Galiana Brasil, vários outros… A partir de 2000, ele ganha outra dimensão. Sob a coordenação de Galiana Brasil, nós, juntamente com Roberto Lúcio, construímos uma nova grade programática, atualizamos o conceito do curso. Reconfiguramos para atender aos ditames dos novos tempos. Muita gente foi aluna do CIT, desde quando era CRT (Curso Regular de Teatro). De 2015 para cá, ele tem passado por outras reformulações, agora com Rita Marize Farias, Rodrigo Cunha, Almir Martins. Muita gente tem dado aulas no curso nestes últimos 8 anos, dentre eles Luís Reis, João Denys, Cira Ramos, Paula de Renor, Antonio Cadengue, Mariane Consentino, Anamaria Sobral, Maria Clara Camarotti, Leidson Ferraz, Samuel Bennaton, entre outros vários.
Quais avanços foram feitos desde a criação do primeiro curso?
O CIT tem cumprido um papel estratégico fundamental no Recife e em Jaboatão dos Guararapes, seus dois núcleos. Rudimar Constâncio tem cumprido um papel importante para o CIT no Sesc Piedade. Mais uma vez a equipe tem estudado novas atualizações, mas o CIT atualmente está sintonizado com o pensamento do teatro contemporâneo. A estruturação da coordenação pedagógica do curso com Rodrigo Cunha e Almir Martins, o novo sistema de avaliação, o acompanhamento do desempenho dos alunos foram avanços mais recentes da pedagogia do curso.
Qual o diferencial do curso de formação do Sesc em relação a outros oferecidos em Pernambuco?
Pernambuco tem uma oferta muito boa para quem deseja estudar Teatro, não apenas no Sesc. Felizmente, muitos egressos dos cursos da Universidade Federal de Pernambuco, especialistas, mestres, doutores estão criando outros ambientes no estado e eu acho isso muito relevante. No caso do Sesc, tem a marca da Instituição, sua própria história, a qualidade de sua equipe de professores. Mas, sinceramente, as outras escolas também tem profissionais muito bons, cada um com sua pedagogia e com suas metodologias. Seguramente, o maior diferencial são os resultados históricos dos cursos do Sesc.
Qual o período que você esteve no Curso Básico à Formação de Atores da Fundaj?
Iniciei na Fundaj em 1990 e fui até 1996. Cuidei de duas disciplinas, em turmas diferentes: improvisação para o teatro e Interpretação e em três turmas fui responsável pelas montagens de conclusão: Flor do Campo, de Altimar Pimentel; Píramo e Tisbe, de Vladimir Capella; e Janos Adler, de Luiz Felipe Botelho.
Como era o funcionamento lá dentro?
Foi uma experiência e uma oportunidade importante pra mim, muita gente surgiu ou cresceu vivendo as experiências nos corredores da Fundaj, no Derby. Aliás, sinto falta dos trabalhos da Fundaj, do Teatro José Carlos Cavalcanti Borges, uma linda casa de espetáculos.
Se não me falha a memória, foi numa montagem de conclusão de curso da Fundaj que você recebeu uma crítica em que dizia mais ou menos que os alunos-atores derraparam na lama e nunca se ergueriam?
Sim, foi na montagem de Janos Adler, que era uma encenação na lama, um crítico insinuando que o texto e a montagem estavam além do elenco. Não concordei, como não concordo até hoje… dentre outros artistas, lá estavam Robson Queiróz, Janine Aroucha, Márcia Cruz, dentre outros. Um elenco incrível que o tempo se encarregou de consolidar.
O que você pensa da crítica feita em Pernambuco? Há pouco tempo alguns artistas afirmaram para uma revista local que não existe crítica teatral. Você concorda com isso?
Leio tudo o que posso, me reabasteço lendo as análises, observações, considerações dos críticos de artes. Sinto muita falta dos espaços, das colunas, do trabalho dos críticos. Já tive alguns embates, diálogos bem significativos. A crítica nos ajuda, orienta, problematiza.
Há dois momentos bem distintos, que eu alcancei: de 1976 a 2000 e de 2000 pra cá: um tempo em que os críticos atuavam nos grandes veículos de comunicação e depois os críticos nos veículos online. E há ainda o período de transição, de 1990 a 2005. Não tenho muita segurança nestas datas, mas é o que me salta os olhos.
Em qualquer época, a crítica cumpriu e cumpre um papel muito importante. Havia uma maior sistematização, antes. E um certo glamour. Adoro ler os livros dos críticos dos anos 1970 a 1990, lá estão informações e reflexões muito potentes sobre o teatro, a arte que se produziu. Penso que ainda faltam escolas que estimulem esta função. Sinto falta. O crítico cumpre um papel de mediação, necessário, relevante.
Como você avalia a pedagogia do teatro desde sua entrada nessa função e as mudanças ocorridas ao longo dos anos?
De 1977 até 2010, aproximadamente, eu dei aulas, muitas. Tenho certeza de que mais de 1 mil alunos de teatro passaram por mim, no Brasil inteiro. Dei aula em quase todos os estados do Brasil, em cursos e oficinas de curta duração, e em muitas cidades de Pernambuco. No Recife e na RMR dei aulas seguidamente, a muitas turmas. Mas, parei. Chegou um momento em que percebi que, para dar aulas, eu teria que estudar e pesquisar muito mais. E eu não tinha tempo.
Minhas tarefas na gestão, no Sesc Pernambuco, na Rede Sesc no Estado e no Brasil, meu envolvimento com formulação de políticas, a minha relação com a Literatura, tudo me fazia perceber que ministrar aulas de teatro seria uma irresponsabilidade. Com muita dor, eu parei. De vez em quando eu ministro alguma oficina, mas somente se me sentir seguro. Preciso ter responsabilidade com o que faço e sala de aula é algo primoroso. Quero e vou voltar, mas antes vou me preparar.
Ocorreram muitas mudanças, as pedagogias de ensino do teatro foram ressignificadas e eu não acompanhei a contento. Por isso, parei. O pensamento da mulher e do homem contemporâneos e as lutas da atualidade levaram as artes à revisão de pensamento e novos valores foram elevados, as lutas dos movimentos por reparação, os direitos humanos interferindo diretamente nas artes, as questões de acessibilidade, a afirmação da politica de direito, as novas estéticas, o pensamento performativo, as novas tecnologias, tudo fez com que o Teatro se reconfigurasse. Um exercício duro e penoso para a minha geração, mas necessário. E urgente.
O PROJETO GIL VICENTE E O
GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA
O que foi o projeto Gil Vicente e em que condições ele funcionou?
A poeta e escritora Maria de Lourdes Hortas foi diretora de Cultura do Gabinete Português de Leitura, no Recife, e me convidou para coordenar um projeto denominado Projeto Gil Vicente. E eu fui. Foi uma oportunidade excelente para eu estudar a dramaturgia de Portugal e sua relação com o Brasil. Realizamos muitas ações, trabalhos, também, com a poesia, um mergulho em Fernando Pessoa, as narrativas de Almeida Garret, também estudamos a dramaturgia dos anos 1990.
No final de 1989 começamos os trabalhos que se prolongaram até 1992. Em pouco tempo, a direção do Gabinete montou uma galeria de artes e um teatro, ambos no pavimento térreo do lindo prédio da Rua do Imperador e, com um elenco incrível eu dirigi A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, em versão adaptada por João Denys Araújo Leite, direção de arte de Luiz Felipe Botelho, músicas e sonoplastia de André Filho. Gostei muito da experiência, dirigir esse espetáculo, cumprir temporada e participar de outras ações no Gabinete. Dirigi também um trabalho a partir da obra de Fernando Pessoa.
O que você lembra do Recife dessa época?
Tenho medo de parecer saudosista, mas eram tempos de muita ebulição, Recife tinha muitos grupos, produtores, casas de espetáculos com temporadas, espetáculos de longa vida, espaços alternativos. Na contramão, não tinha aparatos públicos, nenhum edital. Os artistas trabalhavam muito e não ganhavam quase nada. Aliás, nesse último aspecto não mudou.
Outro dado que eu lembro e sinto falta, as Universidades e Faculdades tinham grupos muito importantes: UFPE, Unicap, Fafire, As Instituições bancárias: Bandepe, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil. Tinha os grupos da Fundaj, AABB, Sindicato dos Bancários, Chesf, Coperbo, além dos do Sesc. Esses grupos eram muito independentes, mesmo sendo vinculados às empresas, contratavam diretores, montavam obras da dramaturgia pernambucana, brasileira ou estrangeira, algo pujante. Lembro da movimentação e das lutas politicas, constantes e de resistência. Havia até o Prêmio Espontâneo para os Melhores do Ano. E muita briga, muita briga, muita resistência do pessoal das artes.
AS AÇÕES NOS PRESÍDIOS
Em que consistiam as ações desenvolvidas nos presídios?
A atriz pernambucana Maria Rita Freire Costa, uma atriz que merece ser estudada, havia realizado experiências com teatro em unidades prisionais em São Paulo, Belém e Brasília e apresentou ao Ministério da Justiça uma proposta para realização de um projeto de ressocialização por meio da arte. E eles toparam e lançaram uma proposta nacional por meio de diversas entidades.
A entidade que se interessou em Pernambuco foi a Feteape – Federação do Teatro de Pernambuco. O Projeto Nacional chamava-se Nimuendaju – Aquele que constrói o seu próprio caminho, uma expressão do Tupinambá. Num encontro em Brasília, Pernambuco foi representado por Teresa Amaral. A Feteape assumiu o projeto em Pernambuco para realização conjunta com a Secretaria de Justiça de Pernambuco. A assistente social Iluminata Rangel Macedo assumiu a coordenação na Secretaria.
Em Pernambuco, o projeto aconteceu em dois momentos distintos e com nomes diferentes: Projeto Coringa e Projeto Alvará de Expressão, em ambos eu fui o coordenador artístico. Consistia na realização de ações formativas (oficinas, cursos, palestras, rodas de conversa, seminários e encontros sobre artes e teatro) ministradas por artistas do estado. E ações de fruição com apresentações de espetáculos nas unidades prisionais. Foram mais de 50 espetáculos de teatro e dança.
Na fase seguinte foram estruturados grupos de teatro nas unidades, com diretores teatrais fixos, com a realização de montagens, estreias, temporadas nos presídios, circulação dos espetáculos entre as unidades e diversas apresentações em teatros, dentre eles o Teatro de Santa Isabel, Teatros Apolo, Barreto Júnior, e no Cabo de Santo Agostinho e Garanhuns. Todas as etapas do projeto foram realizadas com residentes dos Presídios Aníbal Bruno, Barreto Campelo, no Feminino do Bom Pastor, no Hospital de Custódia Psiquiátrica de Itamaracá e na Unidades de Palmares e Pesqueira. Também com passagem pelas Unidades de Caruaru, Limoeiro e na Penitenciária Agrícola de Itamaracá.
Quais as forças você precisou desafiar para pôr em prática ações humanitárias com relação aos presos?
Por incrível que pareça, as forças que tivemos que enfrentar foram os dirigentes religiosos das unidades prisionais e os advogados que não entendiam porque um preso se envolveria com teatro no presídio. Recebemos muito apoio das equipes da Secretaria de Justiça, das áreas de segurança e dos juízes das varas de execução penal. Nunca houve nenhum incidente envolvendo os mais de 200 artistas que passaram pelo projeto.
O que houve de desdobramento desse trabalho?
O que destaco dessas experiências é a comprovação de que a arte é potente, humaniza, tem potência social, inclusive em casos extremos, como são os presídios de segurança máxima. Não há romantismo nesta minha leitura, o que eu vivenciei foi um aprendizado excepcional para todos nós, inclusive para a área de segurança dos presídios. Em mais de cinco anos não houve, sequer, um incidente envolvendo a área de segurança.
Quais as linhas ideológicas de sustentação do projeto?
A base conceitual e prática do projeto eram as ideias de Paulo Freire, Augusto Boal, Bertold Brecht, Grotowski: teatro político e pedagogia do teatro. Muitos espetáculos foram montados com dramaturgia brasileira e, também, com dramaturgias criadas pelos participantes dos grupos por meio de oficinas de escrita dramatúrgica com Williams Sant’anna, Wilma Lessa, Romildo Moreira, Carlos Lira, Normando Roberto Santos, Paulo Oliveira Lima e eu. Textos de Samuel Beckett (Esperando Godot), Timochenco Wehbi (A longa jornada de Zero à Ene), Marcus Acioly (LatinoAmérica), dentre outros. Muitos grupos e artistas do teatro e da dança participaram deste projeto. Além de Teresa Amaral, Zácaras Garcia também participou da coordenação do projeto, iniciado no governo de Miguel Arraes e encerrado no governo de Jarbas Vasconcelos.
Como e por que acabou?
Um secretário de Justiça achou que o projeto não deveria continuar.
ENTIDADES DE CLASSE E GESTÃO PÚBLICA
Existe uma tradição combativa em Pernambuco das organizações artísticas. Conta como foi, quais os cargos e quais as lutas enfrentadas na Feteape, Confenata.
Vou dizer um chavão; teatro é arte de coletivo. E eu sempre levei muito a sério isso. Trabalhei muito com produtores e elencos, mas são os grupos a minha paixão. É um mecanismo fantástico, as relações são diferentes. O modo de produzir, de criar, no grupo ganha uma dimensão da vida, uma extensão, algo que me fascina. Por conta disso, meu engajamento, desde cedo nos processos de formação política e de fortalecimento de grupos.
Assumir em 1980 a presidência da Associação de Grupos de Teatro de Jaboatão dos Guararapes foi o primeiro exercício. Era um movimento incrível, com várias ações, festivais. Logo depois, com a TTTrês Produções Artísticas fizemos o Movimento de Teatro Periférico, uma articulação pelas cidades da Região Metropolitana do Recife e, concomitantemente, o Projeto Teatro no Interior com circulação por muitas cidades de Pernambuco, Paraíba, Ceará. Como consequência, a presidência da Federação do Teatro de Pernambuco, Feteape, seguida da coordenação da Coordenadoria de Teatro para o Interior, também na Feteape. Depois a Confederação Nacional do Teatro – Confenata, onde fui Secretário-Geral e depois Diretor da Regional Nordeste II (da Bahia a Paraíba).
Essas organizações da sociedade civil, entidades de representação dos grupos e artistas do Teatro foram, juntamente com os festivais locais e nacionais, a minha maior escola de formação. Antes de me formar em Letras, pela Fafire, passei pela Fesp/UPE e pela Funeso nos cursos de História, e por quase 5 anos, pelo Curso Licenciatura Plena em Educação Artística, da UFPE: nenhum deles eu concluí, viajava muito e não conseguia. Entrei na universidade com 18 anos, mas só me formei no ano que completei 50: escolhas. Isso eu mudaria hoje, mas…
Como surgiu e o que fez a TTTrês Produções?
A TTTrês Produções Artísticas foi fundada em 1979, em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes, por mim, Carlos Lira e Mário Antônio Miranda, todos vindos do Sesc e do Teatro Experimental de Olinda. O nosso desejo era ter mais autonomia para trabalhar, definir nossas propostas de trabalho. Aprendemos cedo que cada artista necessita ser protagonista de sua história.
A TTTrês tinha como objetivo principal ser nosso espaço de experimentação. Todos seriamos atores, dramaturgos e encenadores e depois de termos o nosso espetáculo faríamos uma circulação por 500 cidades do Brasil. Elaboramos uma lista de 500 cidades – ao final, nos apresentamos em aproximadamente 100. Foram muitas montagens, muita circulação pelo Brasil, sem edital, sem recursos públicos, a maioria dependendo de renda de bilheteria ou de sobras do meu salário do Sesc. Nossos espetáculos eram seguidos de ações formativas: cursos, oficinas, debates, encontros com grupos. Um incrível exercício de troca entre artistas e públicos.
A cidade de Jaboatão estava meio parada, no quesito teatro, quando você sacudiu o pedaço? Como foi isso?
A nossa experiência de grupo, nós levamos para a proposta de criação da Associação de Grupos de Teatro de Jaboatão dos Guararapes, quando eu fui o seu primeiro presidente. Eram uns 11 grupos da cidade. Realizamos festivais, mostras, temporadas, cursos, oficinas, debates, envolvendo artistas de todos os grupos, uma experiência de gestão cultural por meio de uma entidade da sociedade civil. A sede da Associação era na minha casa, onde também era a sede de nosso grupo e onde nós criamos a Biblioteca Orlando Miranda de Carvalho: no bairro de Prazeres. Naquela oportunidade iniciamos uma parceria com a Diretoria de Cultura de Jaboatão dos Guararapes, cujo diretor era um multiartista, ex-padre, Antônio Carlos Vander Vélden. Com direção dele, chegamos a montar dois espetáculos contando com as participações de artistas de todos os grupos da cidade. Um desses espetáculos era sobre a saga do Padre Vitor Miracapillo, expulso do Brasil pelo regime ditatorial. Era um movimento político de muita força e representatividade e por isso mesmo sofremos muita pressão política e policial. Foi um movimento fundamental para os jovens artistas da cidade.
Não se faz política pública sem recurso,
não se faz Cultura sem investimento.
O que foi o Projeto Camará?
Fui convidado pela Prefeitura de Camaragibe, por meio do seu Departamento de Cultura, para realizar o Projeto Teatro Camará, um curso com até três turmas para atender a uma proposta de campanha. Havia um compromisso do ex-prefeito João Lemos e o convite a mim era para realizar os cursos. E assim foi: três turmas, super lotadas. Antes de terminar os cursos, os alunos deveriam passar por um processo de orientação, principalmente quem era integrante de grupo. Porém, antes de terminar as aulas eu fui convidado e aceitei ser diretor de Cultura de Camaragibe. Aceleramos o processo de escrita e prática de uma política de cultura para a cidade, situada na Região Metropolitana do Recife, com 150 mil habitantes.
Como consequência deste trabalho, fui mantido na equipe de Cultura da cidade, na gestão do Prefeito Paulo Santana, quando foi criada a Fundação de Cultura, Turismo e Esportes de Camaragibe. Por um ano eu fui vice-presidente e por mais 6 anos eu fui presidente e pudemos viver uma experiência trabalhosa, mas com muitas realizações, culminando com o uso de 5% do orçamento da cidade para a Cultura, algo raro ainda hoje no Brasil.
A estruturação das políticas de Cultura, Turismo e Esportes foi um desafio muito grande e urgente. Paulo Santana foi um prefeito exemplar para a Cultura: o mais difícil era o fato de que o orçamento da cidade ainda hoje é pequeno, sobrevive do Fundo de Participação dos Municípios e do comércio local. Mesmo sendo um percentual acima do padrão, era pouco, porque a cidade tem poucos recursos, quando comparamos com outras da RMR. E não se faz política pública sem recurso, não se faz Cultura sem investimento. No entanto, com a organização de todos os setores das artes foi menos difícil construir as bases de um Sistema Municipal de Cultura. Muitos foram os conflitos, principalmente os meus: é muito ruim querer e não poder, saber da importância e atuar com tantos limites.
Como é ser um artista febril e um gestor ousado diante das limitações impostas pela política, pelo mandato e pela mentalidade que impera até hoje de que cultura não é “item” de primeira necessidade?
Bom, eu sou um artista, educador que se transformou em gestor da cultura e isso não foi sem dor, sem luta. É triste de dizer, mas optar por artes em um país como o Brasil é quase uma insanidade. No caso de Camaragibe, foram muitos os enfrentamentos por causa da estrutura precária e da falta de espaços e equipamentos para a Cultura. E claro, a visão de parte da população e de grande parte dos políticos.
Para muitos cultura é supérfluo. Hoje ainda predomina esta lógica. Camaragibe realizou projetos de referência, fez parcerias, mesmo que ainda na época não existissem o Funcultura ou outros editais. Uma equipe muito atuante esteve à frente das políticas em Camaragibe, a cidade conquistou muitos prêmios internacionais e nacionais nas áreas de gestão pública, saúde e educação e isto repercutiu no campo da Cultura. Os habitantes compraram a ideia do projeto e a cidade passou a ter muitas opções e ofertas em programação cultural.
Esse movimento em Camaragibe teve quais reflexos?
Como consequência, novos espaços foram surgindo, grupos e artistas, além de novos gestores a exemplo de Carminha Lins, Saulo Uchôa, Sávio Uchôa, Joabson Guerra, Paula de Tássia, Janaina Amorim, Vilde Menezes, Ciça Portela, Cláudio Siqueira, Bruno Marinho, Lucila Gomes, Vânia Oliveira, entre vários outros. Novas gerações surgiram, posteriormente como desdobramento dessas experiências. Também, Lela Menezes, Uel Silva e Geraldo Cosmo que já atuavam na cidade, mas ampliaram as suas expertises como gestores. Camaragibe foi uma grande escola de gestão da Cultura para quem viveu a experiência.
AS RELAÇÕES COM O NORTE DO BRASIL
São muitos Nortes, mas há alguns traços que merecem destaque: o tempo amazônico, o preço amazônico, as distâncias amazônicas e os mistérios dos encantados das matas
O Nordeste ficou pequeno para você, que traçou relação com o Norte do Brasil. O que encontrou e descobriu naquela região? O que se pode aprender dessa ponte com os nortistas?
Os povos da floresta vivem em um mundo especial e particular. Fui muito para a região Norte por meio do Sesc, no início, mas depois, continuei um trabalho no contato com outras organizações ou mesmo por conta própria. Por 10 anos seguidos minhas férias foram no Norte do Brasil. Participei de inúmeros festivais, mostras, encontros, ministrei cursos, palestras, oficinas, fui analista de espetáculos, orientei grupos. Tem muitos pernambucanos no Norte, atuando com a Cultura e no início foram os meus interlocutores: Suely Rodrigues, Judilson Dias e Fabiano Barros, todos foram coordenadores de Cultura do Sesc Rondônia. Porto Velho foi minha porta de entrada, depois trabalhei no Acre, Amapá, Roraima, Amazonas, Tocantins e Pará. No Pará foi onde menos trabalhei.
Cada estado tem suas particularidades, são muitos Nortes, mas há alguns traços que merecem destaque: o tempo amazônico, o preço amazônico, as distâncias amazônicas e os mistérios dos encantados das matas. São muitas culturas, muitos hábitos e a arte explode em suas particularidades. As capitais concentram grande produção, mas eu ainda visitei Xapuri/Acre, terra do Chico Mendes, e Parintins/Amazonas, terra dos Bois Garantido e Caprichoso: mundos indescritíveis. O que mais me chamou a atenção foi a existência de um certo preconceito com a arte produzida no Norte, por parte do restante do país, como se não entendesse a dinâmica e as particularidades da arte produzida no Norte. É uma arte de uma força e de uma dimensão excepcionais.
E o pensamento sobre democracia e mundo que pode ser apreendido.
Os artistas do Norte têm um compromisso visível com as lutas do povo brasileiro, acrescido de suas próprias lutas, têm compromisso com seus púbicos, e realizam uma arte bastante comprometida. Me identifico muito com o que se produz na Amazônia.
José Manoel Sobrinho
É BOM SABER O QUE DIZER NA FRENTE DAS CRIANÇAS
Educar uma pessoa a partir do seu próprio corpo, de sua relação com o corpo tem um significado especial
Como você se enxerga? Quais os defeitos do Zé?
Minha avó paterna dizia que eu “era feinho, mas muito inteligente e bonzinho”. E eu cresci acreditando nisso. Ela me comparava a um primo que ela dizia “o outro é tão bonitinho, mas é uma peste”. Eu preferiria, mil vezes, ser lindo e uma peste. Principalmente, ser lindo. E depois, adolescente, eu dizia que não importava ter espelho em casa.
O que eu tiro de aprendizado é que, de fato, precisa ter cuidado com o que se diz a uma criança, porque as verdades, mesmo que relativas, viram absolutas quando ditas de maneira descuidada para uma criança. Ainda mais se quem diz tem a força e o significado de uma avó.
Já adulto, tenho um mantra: “fazer o quê, se a pessoa é fraca de feição?!” Depois eu construí um mantra mais meu: “Ah! Eu só vou namorar com gente bonita. Se eu quiser ver gente feia me olho no espelho”.
O fato é que isso teve uma repercussão muito grande na minha vida: amo o mar e as águas, mas não sei nadar e isto está relacionado a um estranhamento que construí com o meu corpo. E por que eu falo isso hoje? Porque por causa disso eu deixei de ser um ator-bailarino-pesquisador com toda a dimensão que essas profissões têm. Sempre falei isso para os meus amigos e só estou falando isso agora porque sinto que tem função pedagógica. Educar uma pessoa a partir do seu próprio corpo, de sua relação com o corpo tem um significado especial, fará toda a diferença para o que a pessoa será e como será, no futuro. Sei que isso me caracteriza como uma pessoa com preconceito, principalmente comigo mesmo e isso me tirou de muitos ambientes. Não tenho defeito físico, mas construí um conceito sobre meu corpo que não me ajudou e isto é difícil de mudar, nem meus quase 10 anos de terapia tem conseguido.
Quem você fez sofrer na vida?
Eu, mais do que qualquer outra pessoa. Minha mãe, seguramente, porque sempre fui muito independente e, de certo modo, egoísta. Quando decidi sair de casa, nem conversei, sai. E sei que ela sofreu.
Você me contou que existe uma espécie de tradição na sua família de agregar pessoas. Por exemplo, seus avós adotaram parentes, seus pais também adotaram pessoas e que essa herança passou para você. Agregar, hospedar, acolher são ações comuns na sua vida, que gosta de ter uma casa cheia. São outros laços de família que você compõe. Gostaria de saber mais sobre isso.
Nas casas de meus avós maternos e paternos nunca estavam somente eles e os filhos, sempre tinha mais alguém. Venho de uma família muito grande, mais de 10 tios e tias paternos e também mais de 10 maternos e primos e primas. Fui criança lidando com tia adotiva, depois na minha casa meus pais sempre receberam meus tios e tias e primos e primas. Dividir o quarto de casa era algo muito comum. E era muito bom. Fui criança e adolescente com a casa sempre com pessoas morando, gente muito querida. Nossos beliches (camas duplas) eram territórios de alegria, conversa e risadas. Quando eu fui crescendo isso foi ficando mais sólido.
Entrar no teatro foi definidor. Mesmo na casa dos meus pais ter alguém dormindo, passando dias, noites, era algo comum e corriqueiro. Eles, duas figuras incríveis, nunca me colocaram limites ou brigaram comigo e recebiam a todas e todos muito bem. A receptividade de meus pais e de meus irmãos, o fato de nunca contestarem, penso que me dava muita liberdade para estar sempre convidando alguém. Às vezes, 2 ou 3 ou até mais.
Certa vez, a Equipe Teatral de Arcoverde – Etearc, veio se apresentar em Prazeres, com sua montagem de O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna. Não deu outra, todos ficaram hospedados na minha casa, umas 12 pessoas. Meus pais saíram do quarto deles e colocaram todas as meninas do grupo. Eles dormiram no chão.
Quando sai de casa e vim morar no Recife, não vim morar só: primeiro fui adotado por Rudimar Constâncio, que me acolheu em seu apartamento da Rua do Hospício. Acho que fiquei uns 2 anos morando na casa de Rudimar. Depois, aluguei um apartamento e fui morar, desta vez dividindo com Cláudio Siqueira e Vilde Menezes. Pronto. A partir daí, nunca morei sozinho. Por muitos anos minha casa foi território de pouso pra algumas pessoas amigas, artistas na luta por uma oportunidade, na busca por seu desenvolvimento humano.
Não há necessidade de citar nomes, mas posso dizer que em minha casa moraram artistas de Arcoverde, Sertânia, Petrolina e Camaragibe. Tenho certeza que foi herança de meus avós e de meus pais. É importante dizer que não é porque sou bonzinho, é uma cultura, uma oportunidade para mim. aprendi muito sobre a vida, a arte, a complexidade para se fazer arte e educação no Nordeste do Brasil, no Brasil, por melhor dizer.
Carrega algum sentimento de culpa por algo que fez ou deixou de fazer?
Sempre digo que sou cristão burro, aquele dramático que sofre por todos, tem pena de tudo. Mas arrependimento eu não tenho não, muito menos culpa. Tem uma coisa que eu me queixo, de não ter escrito tudo o que experimentei e vivenciei. Ah! Sim! Entrei na faculdade aos 18 anos, na Fesp – Faculdades de Pernambuco, hoje UPE, mas só me formei aos 50 anos, no ano que completei 50 anos, na Faculdade Frassinetti do Recife – Fafire. Disso eu me arrependo e muito. Também me arrependo de não ter comprado minha casa própria, isso é muito importante que todo jovem faça logo. O Brasil é um país medíocre para o envelhecimento, é importante construir alguma estrutura.
Como você definiria sua vida intelectual? A experiência de vida compartilhada com muita gente pelo seu trabalho forjou ou expandiu sua humanidade?
Poxa! É difícil uma autoavaliação assim. Me considero uma pessoa muito humana, mas sou meio estourado e às vezes magoo as pessoas. Tento me redimir. Dizem que sou difícil de ser convencido, que tenho argumentos pra tudo e isso parece ser uma coisa ruim. A experiência de vida compartilhada me mostrou que, de fato, a vida é bela. Penso que a gente veio a este mundo pra ser feliz e o que for ao contrário, que me deixe ou deixe o outro infeliz, não vale a pena.
Sou um homem de muitas limitações intelectuais, o que me salva é a minha reconhecida generosidade. Eu corro muito, vou atrás, sou entusiasta. O que me fortalece é o meu entusiasmo e a minha energia, sempre fui “assulerado”. Ainda vou desenvolver melhor uma metodologia de pesquisa e estudo. Não tive tanto acesso a um conhecimento universal, tenho muitas limitações, fui um leitor sem muitas opções de escolha, não tinha poder aquisitivo e isso tem repercussões muito sérias no futuro de uma pessoa.
ANDAR COM FÉ, MAS COM ESPÍRITO CRÍTICO
Se o Brasil fosse independente não teríamos tanta fome e tanta dor em nossas terras, nem tanta escravidão, poucos bilionários e milhões na pobreza.
Como é sua espiritualidade?
Sou católico, de origem familiar, mas muito crítico da Igreja Católica, tenho pavor da história de crimes das religiões; tenho muitos amigos e familiares evangélicos, mas acho hoje os mais radicais e intolerantes, os grandes culpados por termos este presidente do Brasil, pessoa que não gosto nem de dizer o nome. O que me alivia é minha espiritualidade, minha relação com a natureza, com as pessoas, com o tempo. Sou uma criatura que reza muito, agradeço a Deus, gosto dos Santos Católicos, procuro entender a força dos Orixás, peço ajuda às minhas amigas espíritas.
Não frequento templos, igrejas de nenhuma religião ou seita, mas se tiver uma cerimônia e se eu me interessar eu vou. Amo conversar com Deus, com Nossa Senhora, rezo o Credo, rezo para os Anjos e para o Meu Anjo da Guarda. Visito templos como se fossem centros culturais. Tenho medo da morte. Ou seja, sou uma pessoa misturada.
Tenho maior carinho e admiração por Dom Helder Camara e por Dom Pedro Casaldáliga. Gritei muito nas ruas em defesa da Teologia da Libertação. Também não celebraria uma missa pela Independência do Brasil, igual fez o Padre Vitor Miracapillo. Se o Brasil fosse independente não teríamos tanta fome e tanta dor em nossas terras, nem tanta escravidão, poucos bilionários e milhões na pobreza. Acho que tenho um espirito revoltoso.
Em alguns momentos da história, as religiões vão bem além de um apoio espiritual. Também serviram como setores de proteção aos mais vulneráveis. Temos como exemplo no Recife a atuação de Dom Helder Camara, que protegeu os mais fracos. Como você vê a atuação das religiões atualmente no Brasil, no Recife?
As cristãs, vejo como um mercado livre, cheias de interesses escusos, com patronos e líderes milionários, cada vez mais dominando os veículos de comunicação, desrespeitando a Constituição Brasileira que garante o livre exercício religioso. Igrejas tradicionais que violentam os povos de religiões afro-brasileiras, intolerantes, segregacionistas que se utilizam da miséria e da fragilidade humana. Religiões históricas que se utilizam da dor dos fiéis para o enriquecimento e a dominação.
Tenho me preocupado com as muitas denúncias de crimes de lideres das religiões de maior espiritualidade. As várias denúncias, que vem de longe, mas seguem até hoje, da invasão dessas religiões em comunidades dos povos originários, demonizando as crenças ancestrais. Padres e pastores que invadem as florestas em flagrante agressão à crença ancestral. Sou cético e descrente das religiões por causa de seus líderes. Muito abuso de poder, perseguição e uso da fé para vender mercadorias.
Jamais votarei em padre ou pastor para função pública. Quem quiser ser politico partidário, de carreira que deixe a liderança religiosa para quem tem vocação e fé suficientes. Por outro lado, sou um homem crente, recorro muito a Deus, confio, creio e agradeço, mas a cada dia fujo de lideres religiosos. Claro que há as exceções, desses, normalmente eu gosto muito.
Você já leu a Bíblia ou a lê com regularidade?
Li a Bíblia como livro de história, acho uma obra linda, de uma humanidade comovente, mas não sou um leitor contumaz. Vou aproveitar o estimulo desta pergunta e reler, terei muito a aprender. Encontro nela princípios fundamentais para a pessoa de boa-vontade, um livro que deveria ser lido por todas as pessoas, como lugar de reflexão para se entender o nosso lugar no mundo. Acho a história de Cristo uma referência para se entender o sentido de reciprocidade, de luta, de crença.
AÇÕES AFIRMATIVAS
Se os próximos 520 anos fossem de politicas de reparação, ainda assim não conseguiríamos reparar todos os crimes contra as pessoas pretas, contra os povos originários, contra as mulheres, as pessoas com deficiência, os lgbtqi+, os pobres, os imigrantes
Quais os tipos de posicionamentos frente aos novos movimentos de afirmação? É possível reparação? Negros, índios, mulheres, etc.?
É revoltante viver no Brasil atual, com tanta intolerância e com a chancela do crime, da violência institucionalizada. O Estado brasileiro patrocinando a violência, o arbítrio, a violência desumana contra as pessoas indefesas. Se os próximos 520 anos fossem de politicas de reparação, ainda assim não conseguiríamos reparar todos os crimes contra as pessoas pretas, contra os povos originários, contra as mulheres, as pessoas com deficiência, as pessoas lgbtqi+, as pessoas pobres, os imigrantes.
O mundo tem muitos débitos, o Brasil tem muitos débitos com a humanidade. Eu sou um homem nordestino, classe média, desnutrido, gay e sinto na pele todas as punições por isto. Mas sou branco. Jamais saberei a dor do desrespeito para com as pessoas negras. Meu corpo não sofreu a punição perversa, não sofreu a pressão da perseguição, não carrega as marcas do degredo e da escravidão. Nunca fui perseguido em um supermercado, mesmo carregando em mim todas as marcas de um povo pobre.
Você pergunta se é possível a reparação e eu digo, é inadiável, mas não será fácil com o Estado brasileiro dominado, um Estado perseguidor; todas as instâncias do legislativo sem credibilidade, atuando apenas para os seus interesses; um judiciário sem posição, que muda de acordo com os ventos; uma polícia enfraquecida como instituição que violenta, inclusive os policiais, estruturas envelhecidas, patriarcais. O trabalho brasileiro absolutamente precarizado. A gestão pública em frangalhos com desmontes da saúde e da educação; os municípios endividados, com a escuta popular cada vez mais escamoteada.
Todos nós não negros, não índios precisamos ter a responsabilidade humana e trabalharmos para diminuir tantas dores, respeitando as diversidades. Sinceramente, este é um tema que me deixa fora do eixo, me chama à responsabilidade para superar os meus limites e não silenciar, não pactuar, não ficar omisso. Tenho consciência de que nunca saberei, em mim, a dimensão dessa dor e de todos os desrespeitos e violências, as macro e as microviolências. Me sinto inteiramente incompetente diante dessa, de fato, pandemia.
Como você se define como homem branco, sempre no comando?
Eu sou um trabalhador brasileiro, militante da cultura. Não tenho protetores. Os espaços que conquistei foram resultado de muitas lutas e suor. Sou defensor dos direitos de todas e de todos, da igualdade de oportunidades; inteiramente comprometido com as lutas libertárias e com as lutas por reparação a todas e todos que tiveram os seus direitos reduzidos por qualquer motivo.
Não tenho dúvidas de que sou um privilegiado e tenho que ficar atento, permanentemente. Tenho contra mim o fato de ser originário de uma sociedade branca, autoritária, repressora, machista, excludente, hierárquica, de politica de balcão, eurocentrista, colonizadora, violenta, escravocrata, de uso da força e do poder. Mas, eu não me sinto herdeiro, não desejo ser herdeiro; também, por motivos já falados nessa entrevista, sou violentado e excluído. Mas, repito: não sou negro e nem sou trans e isso faz uma diferença grande a meu favor. Entendo que não basta ser antirracista, tenho que trabalhar, também, para impedir novos danos. Esta é uma responsabilidade inadiável, de todos. Sofro quando reconheço que poderia ter sido mais propositivo e atento à questões humanas de tanta urgência.
Você viajou muitíssimo a trabalho, mas nunca resolveu sair, se mudar do Recife ou da Região Metropolitana, por quê? Você não teria uma cidade ideal para morar?
No ciclo dos anos de 1980 a 2000 eu recebi muitas propostas de trabalho para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Rondônia, mas nunca foi minha meta. Acho que tem a ver, primeiro com a minha relação com meus pais, preciso ser sincero. Mas, também, porque sempre raciocinei que, se todos fossem, como seriam os territórios de origem?
Uma das minhas maiores felicidades durante os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram as inaugurações das Faculdades e dos Institutos Federais no interior do Estado e do Brasil. Tenho alunos desde cedo e ouvi muitas narrativas daqueles que, mesmo sem querer, tinham que sair de suas cidades para vir estudar no Recife. E como eram comuns as lágrimas e os desabafos, cresci vendo e ouvindo. Cresci acompanhando o êxodo rural, meu pai, meus tios, primos, todos foram embora para São Paulo, trabalhar na construção civil, depois voltavam, casavam e levaram as mulheres. E nunca mais voltavam. Tive a sorte que meu pai não gostou, minha mãe foi salva do êxodo, mas na cabeça dela este foi um fantasma que sempre a rondou.
Sou herdeiro do êxodo rural, das dores das saudades, e acho, tenho certeza, que fui profundamente influenciado por isso. Daí porque nunca sai.
Claro que perdi em alguns campos, as informações chegavam aqui mais tardiamente, a comunicação toda no Sudeste dominava o povo brasileiro, por isso a força das novelas, dos programas de TV.
Participei do movimento pela Regionalização da Programação da Televisão e do Rádio brasileiros, não podíamos aceitar aquele modelo centralizador, economicamente predatório, excludente. Tudo isso me influenciou para não sair de Pernambuco.
Eu, de minha parte, adoraria morar em Manaus, João Pessoa, Salvador, Brasilia, Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. De Pernambuco… Arcoverde, Petrolina e Triunfo são as que mais me comovem. Do ponto de vista do teatro, adoro os públicos de Pernambuco, tenho muito o que dialogar com todos, não vejo motivos para sair, posso ir e voltar sempre, assim, como sempre fiz. E não me arrependo.
HUMANO, DEMASIADO HUMANO
Você é querido por muitos. Mas é “persona non grata” em algum lugar ou para alguém?
Não tenho como negar que sou muito querido, sinto isso no dia a dia. Claro que sou persona non grata. Quando fui presidente da Federação do Teatro de Pernambuco, Feteape, nos anos 1980, do século XX, eu era persona non grata dentro da Fundação de Cultura da Cidade do Recife. Quando eu era presidente da Fundação de Cultura, Turismo e Esportes de Camaragibe tinha uma oposição feroz na Câmara de Vereadores, era pequena, mas me criava muitos problemas. E olha que eu acho a existência das oposições algo fundamental para a democracia, a vigilância, a fiscalização e para cobrar o serviço público, mesmo que depois, quando está no poder, não faça.
Penso que muitos artistas e produtores que ouviram um não, de mim, saíram me odiando nos expedientes da fundação. Sou professor desde os meus 14 anos e profissionalmente desde os 18. Claro que tive alunos que me odiavam, não era o professor bonzinho, era bem severo no cumprimento dos acordos.
No Sesc Pernambuco, fiquei muitos anos como Gestor de Cultura, igualmente muita gente deve ter insatisfações. E, tanto na Fundação de Cultura de Camaragibe, quanto no Sesc, eu tinha o papel de ligar e desligar pessoas e ninguém aceita e gosta de ser demitido. Há pessoas que não falam comigo até hoje.
Bom… Como pessoa humana, cidadão do mundo, sinceramente, não vislumbro muitos desafetos, mas eles existem, poucos declarados, mas existem. Sou uma pessoa cheia de contradições, arroubos e isso deve ter incomodado muita gente. E minha capacidade de argumentação e muitas vezes descabida insistência, seguramente, me deu dissabores.
O que significa o silêncio?
Respiração, pausa, Intervalo de grande profundidade, quando o som se permite ouvir na sua sublimação, espaço pra decisão, momento quando o olhar ganha mais força e protagonismo, raciocínio, oxigenação, intervalo do pulso, hora do bocejo, interregno da pulsação, momento oportuno para mudar de direção, de posição. Boa hora pra perdoar, boa hora pra atacar, suspensão da dor, momento exato da morte, momento exato do primeiro, hora exata do nascimento. Movimento imperceptível.
POLÍTICA, UMA ARTE DIFÍCIL
Você trabalhou durante um tempo com políticas culturais públicas, na articulação. E em Camaragibe no governo mais diretamente. Sua visão é privilegiada. Gostaria que você fizesse uma análise sincera das políticas cultuais que são realizadas especificamente pela Prefeitura do Recife e pelo Governo do Estado de Pernambuco. Sei que essas questões são espinhosas, mas seu olhar é importante. Por que as relações de compadrios e os muros baixos nas políticas pernambucanas são tão fortemente marcadas por resquícios do coronelismo?
Vou direto ao assunto. Enquanto os setores públicos da Cultura ficarem dependentes e reféns dos partidos políticos não se vai a lugar algum. Enquanto as secretarias e departamentos de Cultura ficarem reféns da Casa Civil ou das Secretarias de Governo, Gabinete, Administração, Economia, Finanças, Planejamento, não se chegará a lugar nenhum.
Os secretários de Cultura precisam de autonomia politica, financeira e administrativa para governar. Há que se ter politica de estado e não politica de governo. Os prefeitos precisam ter responsabilidade na hora de nomear os secretários ou diretores de Cultura. Para mim, falta clareza por parte dos prefeitos e, em muitos casos, responsabilidade, na hora de definir o gestor da área. Não quero, nem devo nomear aqui nenhum município, modo geral, este é um grande problema.
Também não há formação politica nas Câmaras de Vereadores na hora da construção e aprovação de leis para a área: elas precisam ser reparadoras, protetivas, promotoras, para acessibilidade. Há pouca ou quase nenhuma escuta, os interesses são diversos, menos para a área. Não se entende a força que a Cultura tem como geradora de economias: quanto mais se investe na produção local, mais há geração de economia no próprio município. É preciso que se entenda, a prioridade de investimento tem que ser na produção, no artista, no técnico local.
Isso tem inúmeros desdobramentos locais. Na representatividade, na reparação, na democratização, na democracia cultural, na geração de postos de trabalho, na economia e nas finanças, no comércio local, na educação, na saúde, na segurança, na mobilidade urbana, no turismo, na acessibilidade, na estima do município e das pessoas, artistas ou não.
Há que se separar política de Cultura da realização de eventos. No caso de uma capital como o Recife, para mim este é um fator cruel. O evento é muito importante, deve fazer parte da politica cultural, mas não pode ser “a política”.
Quando a secretaria fica à disposição do Carnaval, São João e Natal e as questões prioritárias ficam secundarizadas não tem jeito. Há que se resolver esta equação e isto é uma decisão politica.
Sem querer partidarizar, mas o governo do João Paulo, no Recife, deu sinais de que é possível: não conseguiu consolidar, não deu tempo, mas foi um avanço.
Fortalecer os setores da sociedade civil, ampliar a escuta; honrar os compromissos financeiros com todos, mas em especial com a produção do estado e dos municípios; qualificar os equipamentos culturais com investimentos e com equipe qualificada, treinada; afirmar os Sistemas de Cultura: Conselhos, Fundos, Órgãos públicos da Cultura, investimentos; garantir no mínimo 5% do orçamento para a Cultura; criar linhas de investimento; criar aproximação com a iniciativa privada para que haja investimentos de setores importantes.
São muitas frentes, seguramente aqui ainda falta uma infinidade de questões. Mas, seguramente, não pode ser uma tarefa apenas dos secretários ou diretores de Cultura. Isso precisa ser um compromisso, uma responsabilidade dos governantes e dos legisladores. Será que isso é uma utopia?
Qual sua reação diante do avanço de um pensamento e uma prática mais conservadores, das ideias e atitudes fascistas que povoam o mundo nessa fase?
Sem tolerância nenhuma, inadmissível, criminosos ao extremo, sem chance de diálogo. Tenho medo, tenho muito medo porque os defensores da violência e da morte criminosa são extremistas e eu sou defensor da paz entre os povos. O crescimento da direita fascista no mundo é preocupante. Também é preocupante a adesão de parte da imprensa às ideias conservadoras. Todos sabemos que muitos dos retrocessos brasileiros contaram com o apoio e a ação direta de grandes veículos da imprensa e das comunicações. Políticos, empresários, banqueiros, grupos de comunicação têm participação ativa nos avanços dessa politica excludente, que beneficia as grandes fortunas e empurram os pobres para situação extremada, basta ver o crescimento da fome no mundo.
A arte continuará lutando contra abusos de poder, contra a dominação dos grandes grupos econômicos. E contra as forças politicas que oprimem, basta que a gente observe as reformas implementadas nos governos Temer e no atual: precarização do trabalho, perdas de conquistas históricas, aumento da criminalidade e da violência, crescente armamento da população, perdas no processo de aposentadoria, desmonte das estruturas públicas das áreas da educação, saúde, meio ambiente, cultura, direitos humanos, sem deixar de falar na existência do gabinete do ódio e toda a sua estrutura de disseminação de mentiras e da promoção de perda de segurança.
Como você traçaria uma cartografia dessa situação, desse avanço?
Com o golpe de 1964, o brasileiro ficou impedido de exercer o seu direito ao voto, à escolha de seus lideres e gestores, foram os tempos dos políticos biônicos. Agora, em pleno 2018 o brasileiro, por meio do voto fez escolhas. Isso me assusta, a memória é curta, a significativa eleição de quadros opressores para a condução do Brasil e de estados deixa visível que nossa memória é muito frágil .
Me preocupa a partidarização do Judiciário, a presença do Judiciário em articulação com corruptos, usurpadores do bem da coletividade, a baixa qualidade dos senadores e deputados federais, a presença de líderes religiosos cristãos no Senado, na Câmara Federal, nas Câmaras Estaduais e nas Câmaras de Vereadores, desviando os objetivos e interferindo na ética dessas instituições. Nunca votei, nem votarei em padre ou pastor para cargo eletivo público, as experiências no Brasil são desastrosas, sectárias, excludentes.
Não traçarei uma cartografia da situação, mas chamo a atenção de todos nós, porque não podemos ficar distantes das lutas, das construções politicas para garantir um quadro de líderes políticos mais coerentes e comprometidos com as reais necessidades das comunidades.
CARTA DOS FAZEDORES DE CULTURA AO SESC PE
Para: SESC DE PERNAMBUCO
O SESC de Pernambuco tem sido fundamental para a memória, formação e difusão cultural no nosso Estado. Aproximou pessoas – trabalhadores e trabalhadoras da cultura e PÚBLICO. Promoveu inclusão, valorizou e iluminou a diversidade. Criou fluxos de trocas de arte e conhecimento antes nunca vislumbrados. Revelou que a Arte e a Cultura pulsam em todos os rincões pernambucanos. E que Cultura é Direito, é símbolo da nossa identidade, é força econômica.
Toda essa marca histórica foi possível porque José Manoel Sobrinho, nosso Zé Manoel, compreendeu a Missão da Instituição e soube com maestria promover a inclusão definitiva do SESC-PE na História da Cultura Pernambucana, como qualquer um pode comprovar nos registros oficiais e na memória de todos os que testemunharam as realizações que ele promoveu.
Conhecedor como poucos, das realidades do interior do nosso estado, respeitando e valorizando toda sua diversidade, Zé foi – e é – um gestor responsável e consequente, um técnico e especialista ousado, um parceiro generoso e acolhedor.
Neste tempo de agora, em que a cultura tem sido constantemente atacada desde suas bases, a demissão de Zé Manoel, cai sobre nós como mais uma agressão, por tudo que ele representa, e por toda contribuição que com certeza poderia dar, não só para o SESC, mas, enquanto SESC, também para a cultura pernambucana.
Agradecemos a Zé Manoel por ter dedicado 42 anos de sua vida a essa instituição!
Quando o SESC demite um profissional como José Manoel Sobrinho, nos demite também como cidadãos e como artistas.
Resposta do SESC ( Oswaldo Ramos, diretor regional)
Prezada Sra. Paula de Renor,
Registramos o recebimento de carta encaminhada por Vossa Senhoria representando o grupo intitulado “Fazedores de Cultura do Estado de Pernambuco”.
Inicialmente, gostaríamos de agradecer as referências ao Sesc de Pernambuco com relação à sua importância para a memória, a formação e a difusão cultural em nosso Estado. Esse reconhecimento por parte de um grupo seleto de pessoas que subscrevem a referida carta nos envaidece e reforça nosso compromisso com o desenvolvimento cultural no território pernambucano.
Também nos associamos ao reconhecimento do papel extraordinário e essencial do colega José Manoel para a construção desse ativo, que transborda as fronteiras do nosso Estado. Ao longo dos 42 anos de trabalho no Sesc, José Manoel escreveu uma belíssima história de sucesso, que deixa sua marca presente e muito forte no acervo e nas ações promovidas pelo Sesc. Temos certeza de que sua contribuição para a Cultura do nosso Estado continuará, como sempre, bastante relevante e efetiva, independentemente do seu vínculo empregatício com o Sesc PE.
Por outro lado, no próprio Sesc PE, teremos oportunidade de escrever outros capítulos dessa história, se for do desejo dele, pois José Manoel poderá exercer outro importante papel de protagonista, atuando de forma estratégica como consultor, com base na sua experiência e conhecimento em outros trabalhos em nossa instituição.
De forma muito respeitosa, como sempre convivemos, gostaríamos de agradecer mais uma vez, cada segundo desses 42 anos que José Manoel dedicou ao Sesc PE. O seu legado e a sua história permanecerão nos inspirando e nos fortalecendo para continuar essa caminhada, seguindo as diretrizes da Política Cultural do Sesc no Brasil.
Cordialmente,
Oswaldo Ramos