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Histórias que vêm do lixo
Chorume
#Dossiê Aldeia do Velho Chico 2022
# 7

Chorume Doc – Foto André Amorim / Diulgação

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

 

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume, da Companhia Ortaet, de Iguatu, é um espetáculo de teatro documentário que investiga as relações e repercussões na/da vida a partir do lixão a céu aberto daquela cidade no interior do Ceará. A força propulsora do trabalho está calcada nos relatos de experiência /depoimentos das catadoras do bairro Chapadinha.

Alguns documentos encontrados no local são disparadores dessa encenação de teatro documentário. O projeto de montagem foi composto por Cleilson Queiroz e José Filho, contemplado no laboratório de teatro do Porto Iracema das Artes 2020, com tutoria de Marcelo Soler. O trabalho também foi agraciado com o edital de criação artística Arte Livre – Secult Ceará, por meio da lei Aldir Blanc 2020.

É preciso pensar o local que inspirou a peça antes de analisar a cena. O lixão está situado às margens da CE 282, no bairro Chapadinha, um dos mais pobres de Iguatu e desprovido de políticas públicas eficazes.

Um lixão a céu aberto é uma prova irrefutável da incompetência e do descaso do Estado em qualquer cidade brasileira, poderia dizer do mundo, mas vamos ficar no território nacional. Iguatu do Ceará não tem aterro sanitário adequado. É desse terreno inóspito, o lixão, que alguns cidadãos iguatuenses garantem sua sobrevivência precária.

O Chorume do título é definido como um líquido que se constitui do acúmulo de lixo e se infiltra na terra. Esse fluido infectante de cor escura que escorre do lixão produz odor nauseabundo, é proveniente de uma série de processos químicos, biológicos e físicos de decomposição. Sua ação polui os mananciais, a terra e o ar.

O Lixão de Iguatu, seu odor e sua fumaça não estão nas pautas de debates públicos, apesar da gravidade da situação e ameaça para a saúde coletiva da cidade, principalmente dos catadores do lixo do local.

Chorume Doc – Foto André Amorim

Chorume Doc – Foto André Amorim

A Companhia Ortaet expõe cenicamente alguns aspectos do impacto da cultura consumista no Planeta Terra, nos agravamentos na economia, esfacelamento da vida social, os entraves da política e sem dúvidas, comprometimentos na cultura. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) escreveu muito sobre a “liquefação” da sociedade contemporânea. Em Vida para Consumo (2008), por exemplo, Bauman expõe o processo da conversão de pessoas em mercadorias.

Como elucida o sociólogo polonês, o que a sociedade consumista busca não é satisfazer necessidades, mas estabelecer relações de poder a partir do ato de consumir. Excesso, desperdício e a produção de lixo estão associadas a isso.

A peça traça metáforas dos riscos associados ao consumismo e ao descarte. E realça a alienação.

Na cena estão Aldenir Martins, Betânia Lopes, Carla Moraes, Cleilson Queiroz e Ronald Carvalho. As atrizes e os atores começam vestidos do que chamam de figurinos burgueses. Mas o material das roupas, dos ternos, dos vestidos, dos adereços e até das luvas não é da melhor qualidade. Isso cria uma boa dobra da imitação da burguesia, eles mesmos não sendo, já chega como uma crítica ao universo do consumo em alguma camada, pois mira uma certa elite local sem nenhuma empatia com o mundo além de si e que se alimenta de uma filosofia barata e que fabrica muito descarte.

Os burgueses da peça brindam, se comportam como se estivessem em uma festa. Uns falam ao microfone, enaltecendo seus papeis de exploradores. Uma delas apresenta a boneca Barbie. O jogo do elenco expõe as estruturas de dominação, os mecanismos de poder dentro do próprio grupo.

Os poderosos lavam as mãos na cena. O poder está normalmente nas mãos dos homens brancos. As mulheres pobres e oprimidas pelo sistema, no desenvolvimento do quadro, ficam com a tarefa de servir, em algum momento. Enquanto a madame de classe média assume uma compulsão consumista, o corpo da mulher das classes mais modestas sofre da objetificação e é tratado como descartável, como muitos objetos no sistema capitalista. A montagem reforça o caráter de humilhação nesse desequilíbrio na ocupação dos espaços. A mulher limpa o chão e isso é uma ação concreta.  

A peça avança e os atores entregam folhetos de publicidade ao público. Compre, exigem os folhetos lançados para convencer qualquer um cair nas malhas do consumo.

E a peça faz um giro com os dois rapazes da encenação se livrando de suas roupas burguesas. De sungas vermelhas, eles protagonizam um jogo libidinoso. Uma das mulheres, também já com as roupas de baixo, aciona uma máquina de fumaça ou de matar mosquito, remetendo ao vapor das queimadas do lixão.

Algumas cenas ou microcenas devem ter uma lógica interna própria para mover a peça, mas não projeta tanto para fora quadro, para além de seus criadores. Parece alguma senha de difícil acesso. Essas representações proporcionam pouco acesso ao núcleo duro da obra e parecem ilustrar alguma coisa, mas já como algo sobrando do circuito. 

Quando passam a narrar os relatos de vida dos moradores da região do lixão, os atores exibem retratos das catadoras e catadores de materiais recicláveis. Apresentam os documentos dessa realidade. Instala-se ou amplia-se o “pacto documental” com o espectador.

O lixão funciona, nesse caso, como arquivo a céu aberto, onde são descobertos materiais que guardam histórias, e dos seus resíduos são criadas narrativas. Com alguns desses objetos, a peça discute o descarte.

A boneca, com a cabeça arrancada, nas mãos do ator, cumpre a função de documento. Encontrada no lixão, ela carrega e projeta os processos de violência contra a mulher, que são debatidos no espetáculo Chorume.

O cruzamento das vivências das gentes que moram no bairro e trabalham no lixão com as experiências dos artistas do elenco amplia a humanização das narrativas e situa o corpo da cidade de Iguatu. Esses procedimentos envolvem a plateia com as conversas ao pé de ouvido, a exibição das fotos e a confidência de peculiaridades das personagens e materiais que simbolizam sonhos/realizações, como o vestido de noiva.

A Companhia Ortaet de teatro é um dos grupos mais antigos do interior do Estado do Ceará e desde 1999 vitaliza cenicamente a cidade de Iguatu. Em 2014, foi reconhecida como “Entidade de Utilidade Pública” pela Prefeitura Municipal e Câmara de Vereadores de Iguatu. Desde sua fundação já encenou mais de 15 espetáculos.

Enquanto teatro documental, a peça Chorume tem ambição de retribuir ao pessoal ligado ao lixão a gentileza de compartilhar as vivências. E interferir na transformação daquela realidade. Como o posicionamento crítico do espetáculo, o grupo lança sinalizações de saídas a partir do teatro.

Com direção, dramaturgia e tutoria de Marcelo Soler e assistência de direção de José Filho a montagem faz escolas estéticas do teatro documentário e do teatro épico. As armações apresentam os documentos e um pouco do processo criativo. As saliências políticas e o humor corrosivo funcionam bem para acionar o pensamento crítico.

Chorume se permite a compor vários fragmentos do documentário e da narrativa fabular do consumo. Uma série de cenas são encadeadas para tratar da exploração, da miséria, perpassadas pela desigualdade histórica, reforçadas no período neofascismo bolsonarista.

Alguns ajustes nas passagens, nas conexões de cena podem potencializar esse Chorume já tão perspicaz da crítica social, na afirmação de sua territorialidade, na conexão com seu entorno, no desejo de humanização das teias sociais, na chamada para a reflexão da realidade.  

Há pensamento crítico e inventiva composição estética na cena fora dos grandes centros. Talvez seja importante reforçar isso. Que compõe e recompõe imagens desumanizadoras na perspectiva de libertar o imaginário.  

 

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