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Na pandemia, somos todos Caipora
Crítica do espetáculo Caipora quer dormir

Caipora quer dormir, espetáculo com atuação de Giselle Rodrigues. Foto: Diego Bresani

Casa virou local de trabalho, que depois se transforma em restaurante, que vira academia, que pode ser também cinema, sala de teatro, boate de luzes coloridas, igreja e até consultório médico. E olhe que estamos falando de “casa” sendo mais generalistas já que, em terra de pandemia, quem tem espaço, varanda, quintal, ar puro, céu, sol e estrelas é rei. Caipora quer dormir – um espetáculo infantil para adultos estreou em 2017, em Brasília, bem antes dessa loucura que modificou tanto nossas vidas, os contextos familiares, as relações de trabalho. Mas é um espetáculo que, neste momento, expande seus contornos e possibilidades semânticas.

A gravação do espetáculo foi exibida no primeiro fim de semana do 27ª Janeiro de Grandes Espetáculos, uma edição que está acontecendo tanto em formato on-line quanto presencial. Confira aqui a programação.

Um dos elementos que mais nos chama atenção e desperta a curiosidade é a cenografia da montagem. Um apartamento rosa cheio de detalhes que pode ser comparado àqueles de revistas e contas de Instagram de decoração com chamadas “convidativas” do tipo: aprenda como viver “bem” em 10 metros quadrados, com o guarda-roupa que está escondido na parede, a cama que sai de num sei onde, a cozinha que é integrada e fica escondida em algum lugar. Das mágicas que construtoras e arquitetos conseguem fazer para que você ache que o lugar é maravilhoso, mesmo que toda sua extensão termine depois de três passos largos.

A casa de Caipora é exatamente assim – um espaço mínimo, mas com muitas soluções engenhosas, como se a vida se encaixasse perfeitamente em tudo que está disponível ali, naquele quadrado. Para amplificar as identificações que possam ter surgido ao longo dessa descrição, vai aqui mais uma informação: as plantas dispostas pelo cômodo dão a sensação de aconchego e de algum contato mínimo com a natureza.

O problema é que, no nosso caso (ou de muitas pessoas), estamos isolados em lugares mais ou menos assim por quase um ano. A sensação de claustrofobia, de não aguentar mais olhar para as quatro paredes, é gigantesca – ainda que a gente saiba que tragédia mesmo é morrer dentro de um hospital por falta de oxigênio como neste momento está acontecendo no Amazonas. Tragédia é viver num país que não tem governo e deixou que perdêssemos mais de 200 mil vidas numa pandemia.

Caipora volta do trabalho carregada de livros e, nesse intervalo, até que seja obrigada a sair de novo, uma vida inteira de tarefas acontece. Dobrar lençóis, fazer ginástica, estudar.  Só que Caipora está exausta, enclausurada nas obrigações cotidianas que nos acostumamos a tratar como normais na nossa vida. E que acabam preenchendo muito do nosso tempo. Como se a vida fosse só isso. Trabalhar, pagar boleto, lavar prato, ver a série que acabou de sair na Netflix, postar o por do sol no Instagram. Vamos nos habituando, resilientes que somos, e quando vemos, perdemos o controle. Levanta a mão quem não recebe mensagens de WhatsApp falando sobre trabalho depois do horário comercial ou quem não sente os efeitos da exposição prolongada às redes sociais. Se os limites já eram difíceis de serem mantidos, com a pandemia tornaram-se frágeis, esfumaçados.

Personagem está exaurida pelas tarefas do cotidiano

A montagem é uma parceria de dois nomes significativos na cena de Brasília: Giselle Rodrigues, coreógrafa, bailarina, atriz e professora, e Jonathan Andrade, ator, dramaturgo, professor, poeta, dançarino, cenógrafo.  Criação, direção, dramaturgia, cenografia e figurino de Caipora quer dormir são assinados por Andrade e a criação e atuação são de Giselle. Glauber Coradesqui fez colaboração dramatúrgica e assistência de direção.

O espetáculo quase não possui falas da personagem Caipora. O trabalho está baseado num trabalho elaborado de corpo de Giselle. São padrões de repetição, movimentações, uma cansaço que vai se tornando desesperador que ela consegue transmitir até na gravação da peça. A personagem é acompanhada por um narrador, como aqueles de desenhos animados, que conversa com a personagem, que pode ou não ser a nossa voz interior que não se cala nunca.

Por que não dormimos? Conseguimos descansar neste país? No limite da personagem, uma ruptura. Uma busca pelo que é inerente. Neste momento, mais do que nunca, precisamos de árvores plantadas no meio da sala. Precisamos nos reconectar com o que mais importa enquanto, tomara, meu Deus tomara, tudo isso passe.

Ficha técnica:
Caipora quer dormir – um espetáculo infantil para adultos
Criação, direção, dramaturgia, cenografia e figurino: Jonathan Andrade
Criação e atuação: Giselle Rodrigues
Colaboração dramatúrgica e assistência de direção: Glauber Coradesqui
Narração: Lupe Leal
Trilha sonora original: Quizzik
Iluminação original: Dalton Camargos
Ilustração e programação visual: Lucas Gehre
Fotografia: Diego Bresani
Produção executiva e gestão administrativa/financeira: Naná Maris
Cenotécnico: Kai Christian Kundrat
Operação de som: Micheli Santini
Operação de luz: Ananda Giuliani
Contrarregra: Jeferson Alves
Cinegrafista: Fernando Soares
Intérprete de libras: Isah Messias
Arte-educador: Wellington Oliveira
Projeto Escola: Lidi Leão

 

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